Iva Tendais, in Público on-line
Este artigo é sobre um projeto de investigação centrado nos valores das crianças e dos adolescentes, bem como nos fatores que os influenciam e que são por eles influenciados. Esta é a história de um projeto marcado pela pandemia de covid-19 e no qual participaram já mais de 4000 pessoas.
Oque nos move? A justiça social ou o prestígio pessoal? O risco ou a segurança? A busca de prazer ou o cumprimento das normas sociais? Estas são algumas motivações que estão na base dos valores — objetivos desejáveis que servem como princípios orientadores da vida para a generalidade das situações. Por isso, os valores assumem um papel central, influenciando uma grande variedade de esferas da vida como relações sociais, pertença a grupos, comportamento moral, orientações políticas, religiosidade, hábitos de consumo ou educação dos filhos. Ou seja, os valores tanto influenciam as atitudes e os comportamentos presentes como os seus efeitos se projetam no futuro através da socialização das crianças e dos jovens.
Muito recentemente, a investigação científica fez importantes avanços no estudo dos valores das crianças com o desenvolvimento de métodos de recolha de informação através de jogos, que são adaptados às suas capacidades e formas de captar a realidade social. Isto tem permitido saber a partir de que idade se definem os valores, como se organizam entre si e como mudam ao longo da vida.
Em Portugal, uma equipa de investigadores — na qual me integro — do ICS-ULisboa e do Iscte-Instituto Universitário de Lisboa, responsáveis pelo projeto Clave, está a estudar a formação, o desenvolvimento, a organização e a hierarquização dos valores humanos durante a infância e a adolescência (dos seis aos 14 anos) e o seu impacto, nomeadamente, no bem-estar pessoal.
A tipologia de valores do Clave tem por base o modelo de Shalom Schwartz (1992). Dez valores básicos organizam-se numa estrutura circular (ver gráfico) em quatro valores “macro”, numa lógica de maior ou menor compatibilidade entre si e com diferentes motivações subjacentes: 1) Autotranscendência — preocupação com o bem-estar dos outros; 2) Autopromoção — preocupação com o sucesso individual; 3) Abertura à mudança — recetividade ao imprevisto, independência na maneira de pensar e de agir; 4) Conservação — preservação das tradições, da ordem e da estabilidade pessoal e social. Por exemplo, as motivações que estão na base dos princípios do universalismo, valor que se inscreve na categoria da “autotranscendência”, são contrárias às motivações que estão na base do valor “poder”, que se situa no valor “macro” da “autopromoção”. Significa isto que, quanto mais importante for para uma pessoa o valor do universalismo, menos importante será o valor do poder. Por exemplo, se o bem-estar da generalidade das pessoas na sociedade for muito importante para uma pessoa, ela tenderá a dar pouca importância ao exercício do poder e do controlo sobre as outras pessoas.
O Clave noutras regiões e países
Poucos meses antes do surgimento da pandemia de covid-19, o trabalho que realizámos com 218 alunos do 1.º ciclo de escolas públicas de Lisboa (entre os seis e os dez anos) permitiu-nos tirar três conclusões fundamentais: 1) é possível medir os valores das crianças portuguesas de forma fidedigna e válida recorrendo a instrumentos desenvolvidos e testados com crianças de outros países; 2) a estrutura circular de valores das crianças portuguesas é semelhante à de crianças de outros países; 3) as crianças portuguesas apresentam uma estrutura e hierarquização de valores semelhante à dos adultos, sendo os valores da autotranscendência os mais importantes e os da autopromoção os menos importantes.
Com o estado de emergência e o encerramento das escolas, foi necessário encontrar uma alternativa ao contacto presencial, mantendo o objetivo de ter uma participação superior a 1000 crianças, adolescentes e pais. Recolher os dados online foi a solução encontrada e, apesar de se tratar de um plano de recurso, permitiu chegar a um maior e mais diversificado número de pessoas. Graças ao envolvimento de diretores de estabelecimentos de ensino público e privado em Portugal continental e nas regiões autónomas dos Açores e da Madeira, responderam ao inquérito do Clave 1744 crianças e adolescentes dos seis aos 14 anos e 2385 encarregados de educação, na sua maioria, mães.
A decorrer também em Espanha e no Brasil, os próximos resultados vão permitir comparar os valores de crianças e pais em três contextos culturais diversos, bem como identificar diferenças e semelhanças na forma como viveram (e continuam a viver) a pandemia.
A pandemia mudou os valores das crianças?
Apesar de o grupo de crianças que participou no Clave antes e durante a pandemia não ser o mesmo, a hierarquização dos valores das crianças nos dois momentos foi comparada. Para as crianças entre os seis e os dez anos, os valores considerados como mais importantes são os mesmos antes e durante a pandemia. Em primeiro lugar, surge a benevolência, valor que indica a preocupação com o bem-estar das pessoas mais próximas (família, amigos e colegas). Em segundo lugar, o universalismo, que traduz a preocupação com o bem-estar da Humanidade, bem como com a preservação do meio ambiente. E em terceiro lugar a segurança, um valor central para quem aprecia a estabilidade nas relações pessoais e na sociedade. O que também não mudou com a pandemia foi o valor menos importante — o poder. Este valor reflete a motivação para alcançar prestígio pessoal e um estatuto social facilitador do controlo de pessoas e recursos materiais.
Foi nos valores considerados como moderadamente importantes que se registaram mudanças, ainda que pouco expressivas. Os valores do hedonismo (procura de prazer e gratificação individual), da autonomia (independência na maneira de pensar e de agir), do conformismo (cumprimento das normas sociais) e da estimulação (abertura à novidade e aos desafios da vida) ganharam importância no contexto da pandemia. Isto ao contrário do valor da realização (valorização pessoal através da demonstração pública das capacidades pessoais), que perdeu importância. A excepção a este padrão de pequenas mudanças foi a tradição (respeito pelos costumes e pelas tradições culturais e religiosas da família de origem), que passou a ter uma relevância muito menor no actual contexto que vivemos (passou da quarta para a sétima posição).
A benevolência, o universalismo e a segurança são também os valores prioritários para os pais que participaram no Clave durante a pandemia. Crianças e pais concordam que o poder é o valor menos importante. Apesar das crianças/adolescentes e dos adultos, enquanto grupos, estarem de acordo sobre os valores mais e menos importantes, dentro da mesma família o grau de acordo não é tão grande como se poderia esperar. Isto é, não é pelo facto de os pais darem muita importância, por exemplo, à realização, valorizando a demonstração social das suas capacidades individuais, que os filhos irão atribuir o mesmo grau de importância a este valor.
Pandemia, bem-estar e valores
Com a pandemia, também o âmbito do Clave teve de ser adaptado. Para além dos valores e do bem-estar, o inquérito passou a incluir questões sobre o impacto do confinamento na atividade escolar das crianças e dos adolescentes, na atividade profissional dos pais e nos relacionamentos sociais.
Como indicador adicional de bem-estar quisemos saber se as crianças e os adolescentes tinham medo do coronavírus. A maioria (63%) disse ter “algum” ou “muito medo”, tendo os mais novos (seis a dez anos) mais medo do coronavírus do que os mais velhos (11 a 14 anos).
E será que os valores se relacionam de algum modo com a percepção de risco face ao coronavírus? No caso das crianças e dos adolescentes, os resultados do inquérito indicam que, independentemente da idade, as crianças e os adolescentes que consideram a segurança o valor mais importante têm uma probabilidade duas vezes maior de ter muito medo do novo coronavírus do que as que valorizam mais a estimulação.
As dificuldades durante a pandemia em números
Das crianças e adolescentes:
22% considerou que foi mau ou muito mau estar em casa devido ao encerramento da escola e para 46% não foi bom, nem mau;
51% a 65% achou que os contactos sociais foram piores ou muito piores quando comparados com o período antes da pandemia (51% avós; 54% outros familiares próximos; 65% amigos);
80% dos pais indicou as saudades dos amigos como uma das maiores dificuldades sentidas pelas crianças/adolescentes.
Dos pais:
61% achou muito difícil conciliar trabalho, ensino, cuidado das crianças e tarefas domésticas;
58% apontou a preocupação com pessoas idosas da família como uma das maiores dificuldades;
54% indicou a falta de contacto com outras pessoas como uma das maiores dificuldades que sentiu.
O bem-estar das crianças e adolescentes durante a pandemia em números
84% sentiu-se saudável sempre ou muitas vezes;
82% achou que as coisas corriam sempre ou muitas vezes bem nas aulas;
73% achou que as coisas corriam sempre ou muitas vezes bem em casa;
66% achou que as coisas corriam sempre ou muitas vezes bem com os amigos.
O contributo do Clave nas escolas
O conhecimento produzido pelo Clave pode ser muito relevante para as escolas, facilitando-lhes o mapeamento dos valores na sua comunidade educativa. Este contributo é particularmente importante num momento em que as escolas são desafiadas a organizarem o seu currículo e as práticas pedagógicas com vista ao desenvolvimento do Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória. Neste perfil, os valores constituem uma dimensão central a promover e a desenvolver, onde se incluem os valores da liberdade, curiosidade, reflexão e inovação (valores com motivações muito próximas aos valores da abertura à mudança do modelo de Schwartz), responsabilidade, integridade, cidadania e participação (valores próximos da autotranscendência) e, finalmente, a excelência e exigência (valores próximos da autopromoção).
O Clave tem previsto um novo inquérito, aberto a novas participações. Para quem participou no primeiro e aceitou ser novamente contactado, os dados recolhidos irão permitir identificar mudanças (ou estabilidade) nos valores, na vida quotidiana de crianças, adolescentes e pais, e perceber em que medida essas tendências poderão estar relacionadas com a evolução da pandemia.
Psicóloga, ICS-ULisboa
A equipa do Clave agradece a participação entusiasta e generosa de todos os intervenientes no primeiro inquérito (escolas, alunos e pais) bem como daqueles que venham a participar nos futuros inquéritos. Agradeço à equipa do projeto Clave, designadamente à Alice Ramos, à Evelia Alvarez e ao Ricardo Borges Rodrigues pelos valiosos contributos para este artigo
O Clave é financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (PTDC/SOC-SOC/30635/2017)
Ciências Sociais em Público
O Instituto de Ciências Sociais (ICS) é uma escola da Universidade de Lisboa e um Laboratório Associado do Sistema Científico Nacional dedicado à investigação, aos estudos pós-graduados e à divulgação de ciência nas áreas de Antropologia, Ciência Política, Economia, Geografia, História, Psicologia Social e Sociologia (www.ics.ulisboa.pt). Durante um ano, todos os domingos, investigadoras e investigadores com diferentes formações, idades e percursos académicos partilham o seu trabalho com os leitores do P2.