Isabel Lucas, in Público on-line
A pandemia apareceu num momento em que José Gil estava a pensar a morte, o que o fez partir para a escrita com urgência, olhando o vírus ligado à crise ambiental e a políticas que tornam o futuro do homem insustentável. Fala de um apocalipse pela primeira vez anunciado pela ciência e não por seitas religiosas. E tem esperança que a mudança de política nos Estados Unidos dê uma ajuda.
À partida há perguntas sobre 2020 e o que virá depois. Por exemplo, se vier uma vacina, e depois da euforia natural de um fim de pandemia, em que espécie de mundo estaremos? Será ainda um mundo de catástrofes naturais, talvez atenuado por uma mudança de política nos Estados Unidos, mas poderemos falar de uma estabilidade duradoura a propósito do que aí vem? E se não, como é que nos vamos adaptar à instabilidade? “Temos de inventar”, responde José Gil, filósofo, de 81 anos, que afirma que aquilo a que chamamos normalidade não virá e o que vivíamos antes é mitificado.
Esperançado com a vitória de Joe Biden e as implicações que isso poderá ter no mundo, o autor de obras como Portugal, Medo de Existir ou Caos e Ritmo aplica ao momento actual temas que tem estudado ao longo da sua vida, entre eles o medo, o corpo, as alterações climáticas. É a linguagem, num momento em que lhe parece que a pandemia nos deixou sem ela, numa espécie de tactear performativo onde falta o essencial ao humano: o toque, a espontaneidade. Isso gera uma angústia que é mais do que intelectual. Tem a ver com a liberdade da vida.
Lendo muito do que tem escrito ultimamente, e também no seu livro anterior, Caos e Ritmo, há uma ideia subjacente, a incerteza do mundo contemporâneo. Nunca sentimos essa incerteza tão grande quanto neste momento?
Parece-me que é a evidência de todos os dias. A incerteza é o eco subjectivo de uma caotização, de uma não-ordenação do mundo cada vez maior. O que vivemos e o que ainda estamos a viver neste ano de 2020 confirma e mostra isso ainda mais. A pandemia mostrou-nos uma série de coisas que pressupúnhamos e víamos mais ou menos, desde as enormes desigualdades sociais, que conhecíamos, mas não sabíamos como eram planetárias, até à fragilidade e, ao mesmo tempo, ao imperialismo do sistema económico mundial. E esse sistema é o único sistema. É ele que rege as vidas planetárias inteiras, desde os países com sistemas económicos mais subdesenvolvidos aos mais industrializados.
Num desses ensaios, em Abril, escrevia que a luta pela sobrevivência física não tinha gerado até então nenhum sobressalto político nem sequer espiritual, que não gerou esperança no futuro. Passados oito meses, acha que se pode falar de alguma transformação?
Não houve mudança nenhuma, continuamos na mesma, excepto num ponto ao qual eu dou hoje uma importância fundamental, que é o facto de a democracia ter sido vitoriosa nos Estados Unidos.
Essa é a grande alteração?
Para mim, é. Ainda não nos demos conta da importância que teve esta mudança. Porquê? Porque não nos damos conta do que seriam quatro anos mais de trumpismo a mandar no mundo. Politicamente era uma experimentação de uma nova forma de fascismo – na ordem política, na ordem social. Há estudos a ser publicados nos Estados Unidos que mostram que não é só um protofascismo, é uma versão nova que não conhecíamos — que não conhecemos — de um tipo de autoritarismo e totalitarismo. O facto de a Constituição [Americana] e a relação dos americanos e das autoridades americanas com a Constituição ainda não se ter deteriorado e ter saído vitoriosa de todas as tentativas de Trump a derrubar é um facto único. Acho que a vitória de Biden e a pandemia são os acontecimentos de 2020.
Isto a que se chama apocalipse é, pela primeira vez na história, anunciado pela racionalidade científica e não por seitas milenaristas, proféticas, religiosas. Agora é a ciência que está a anunciar a possibilidade do fim da espécie
E acha que a vitória de Biden é consequência da pandemia?
Parece que não, não se sabe bem. Os estados que antes e no momento da eleição estavam mais atingidos pela pandemia votaram Trump. Digo que aparentemente não teve influência, por outro lado, vai-se dizendo que na opinião geral, mais ou menos subliminar, da população americana isso contou e conta ainda. A maneira incapaz, desordenada, criminosa como Trump lidou com a pandemia e com a doença que atingiu e está a atingir cruelmente os americanos parece que está a contar.
Isto leva-me à relação que estabelece entre a crise gerada pela pandemia e a crise das alterações climáticas. Estando Trump fora da Casa Branca a partir de Janeiro e chegando Biden, estamos perante a tal mudança em matéria de política global?
Evidente. Gostava de lembrar um artigo [Hello From the Year 2050. We Avoided the Worst of Climate Change — But Everything Is Different, de Bill McIbben] publicado na Time Magazine, um longo estudo, política-ficção, de um homem que falava dos Estados Unidos a partir de 2050. Supunha ele que a luta contra as alterações climáticas tinha sido mais ou menos atenuada para um estado quase de estagnação. Porque é que isso tinha sido possível quase para o planeta inteiro? Porque tinha mudado a ordem política? O que vamos certamente viver será uma euforia com o fim da pandemia, com o princípio da retoma económica. Uma espécie de efusão de progresso e de estabilidade na vida pessoal, social, nas expectativas para o futuro. Voltar-se-á, como já se diz, à normalidade, que não existe. Não virá a normalidade. Virão outras maneiras de viver, mas o capitalismo numérico, com toda a obrigação de teletrabalho, da cibereconomia em todos os domínios, vai expandir-se enormemente. Nesse clima de alegria geral as pessoas vão descompensar e vão entrar em grande animação. Isso já aconteceu com a pandemia de 1918. A capacidade que temos — nós a sociedade — de absorver a desgraça, de esquecer e de metabolizar e de ir para a frente é enorme. A médio prazo é outra coisa. A médio prazo não é bem uma retoma, vai haver cada vez mais uma série de catástrofes climáticas mais próximas umas das outras. E climáticas significa muita coisa. Significa deslocações de populações e sistemas de agricultura devastados. Há uma coisa que acho necessário acentuar: isto a que se chama apocalipse é, pela primeira vez na história, anunciado pela racionalidade científica e não por seitas milenaristas, proféticas, religiosas. Agora é a ciência que está a anunciar a possibilidade do fim da espécie.
Isso é um dado positivo, por um lado, por ser a ciência, e por outro preocupante.
A forma do anúncio é um dado positivo. O facto real, a possibilidade objectiva, não é um dado animador. É um aumento de angústia, mas é a única possibilidade de nós podermos fazer face a isso, de sabermos o que devemos enfrentar. Não é uma crença do tipo em que se baseia muitas vezes um certo discurso antiambientalista ou mesmo os negacionistas dos Trumps e dos Bolsonaros.
O que se mostrou com a pandemia é que temos medo e o outro pode ser um perigo. Isso é muito mau.
E que passa pelo que referia há pouco, uma espécie de recusa do regresso à chamada normalidade. Ou seja, diante desta confirmação científica, resta-nos recusar o regresso a essa “normalidade”.
Estou de acordo consigo. Mas é muito complexo, não basta dizer “temos que fazer”.
Tem que se dizer como é que se faz?
Sim, como e quem. Quem vai tomar a decisão política, como é que se conjugam interesses tão diferentes, tão divergentes, como os interesses económicos, ambientalistas, ecológicos e sociais. A ecologia não é unicamente uma ecologia ambiental. Tem aspectos societais extremamente importantes, e espirituais. É o nosso destino que está em jogo. Como é que essas divergências todas vão poder resolver-se na vida social normal, no plano político, por exemplo, entre ambientalistas, entre correntes cada vez mais poderosas da extrema-direita, antiecológica, etc.. E depois há a pressão cada vez maior das catástrofes ambientais que se vai fazer sentir numa consciência ecológica global que não estamos ainda a formar como consciência colectiva. O que precipitará uma convergência de interesses tão diferentes para que o homem dê conta que tem que mudar completamente? Mudar completamente significa mudar completamente os sistemas ecológicos, até que a própria economia tenha interesse em substituir as energias fósseis por energias renováveis. A própria evolução da política económica levará a uma mudança dos espíritos. As pessoas habituar-se-ão a ter mais em conta o interesse da comunidade em vez do interesse pessoal e do interesse de uma facção. Como é que se vai chegar aí? O que está em jogo é: ou nós soçobramos ou, para não soçobrar, mudamos radicalmente. Mudar radicalmente não temos bem ideia do que significa; ninguém tem.
Esta pandemia poderia ter sido — ou pode ainda ser — o gatilho para essa mudança? Ou ainda estamos muito manietados pelo medo do contágio imediato?
A pandemia fez-nos descobrir, não digo o pior de nós, mas muita coisa que nos impediu de ter uma acção conjunta em prol das tais igualdades. A hostilidade que existe entre uma pessoa e outra, o não podermos tocar, a maneira como obedecemos ao Estado. O estado de emergência fez-nos escolher uma coisa muito má: estamos prontos a obedecer a uma instância que entra nas nossas vidas. Temos que confinar, temos que fazer isto e aquilo e obedecer. Os efeitos estão lá e são a criação de hábitos de aceitação de que uma autoridade estatal ou um governo possam intervir e mandar na nossa vida pessoal. Isso muda completamente a nossa consciência e a própria democracia. A pandemia já mudou o campo completo de acção no espaço público, no espaço comunitário em que todos se cruzam. Já não olhamos para os outros com a espontaneidade de nos aproximarmos porque somos da mesma espécie, porque gostamos uns dos outros. O que se mostrou com a pandemia é que temos medo e o outro pode ser um perigo. Isso é muito mau.
Está a referir dois campos que também se sobrepõem, o da experiência colectiva e a experiência mais individual e mais doméstica, e nesses dois campos está o corpo. Até que ponto esta pandemia alterou a percepção do corpo?
A relação com o corpo alterou-se. Tenho a convicção de que quando chegarmos a um desconfinamento total voltaremos a seguir a vocação interna do nosso corpo, dos nossos movimentos corporais, que é a de se juntar, de se relacionar uns com os outros. O que mudou foi pior. Reduziu-nos a espontaneidade da liberdade da vida dentro dos parâmetros de segurança que distinguem os homens dos robots. A vida é livre e isto é uma espécie de antivida.
Falou da linguagem. Parece que andamos à procura de uma linguagem para nos adaptarmos a este momento, e que temos falhado. Se olharmos este ano por fases, primeiro houve uma espécie de silêncio como resposta ao vazio. Depois pediu-se a ficcionistas que escrevessem, como se só eles estivessem na posse de uma gramática possível de ser aplicada à nova realidade, e leram-se livros sobre crises anteriores. Até que ponto a linguagem se tem vindo a ajustar para falar do que está a acontecer?
Acaba de explicar muito bem aquilo que que aconteceu. Eu diria de uma outra maneira. Não é só para explicar o que nos acontece que necessitamos de uma linguagem. É [também] pelo poder performativo de toda a linguagem. Se se pediu a escritores, não era só para explicar; era para que a linguagem deles, para que a escrita deles pudesse convocar a própria realidade estranha. Para animar, para ir até à realidade. A performatividade da linguagem é essa: a linguagem convoca a realidade e convoca-nos para lidar com a realidade. Não é só a distância. Isso é a grande perda da pandemia.
O que é que o instigou a escrever sobre este momento, foi uma urgência de reflexão?
Foi certamente uma urgência. Escrevi numa certa pressão interna. Eu estava a sentir que o meu discurso já não era capaz de atingir o real, tendo a ilusão de que anteriormente o atingia. Depois outras coisas. Estava a trabalhar também na morte, e verifico que a morte é um campo de pensamento, ou não pensamento, sobre o qual muito pouco se disse. Os filósofos disseram muito pouco. É curioso. Tem a ver com a dificuldade de pensar a morte. A morte é o impensável por excelência, mesmo para os que acreditam na imortalidade da alma, na medida em que entre viver e o tempo do pós-morte há uma diferença que nos faz sempre lamentar perder a vida. Isso aponta para aquilo de que temos uma consciência mais ou menos confusa. A morte é a morte-nada, nada acontece, é o não-acontecimento absoluto. É o impensável. Se não é pensável, então faz-nos pensar e temos que pensar. O grande escrito da filosofia ocidental é o Fédon, de Platão. Mas depois do Fédon não houve muita gente que retomasse o tema. E o Fédon surgiu para negar que a morte fosse um nada. Houve imagens que me impressionaram muito, dos cadáveres empilhados, anónimos, em Manaus, São Paulo, no Irão, em Nova Iorque. Levou-me a pensar não só na morte, mas na morte através do cadáver e no que é um cadáver. Não posso precisar o que me levou até às alterações climáticas e à associação com a morte-nada. Porque há uma morte-nada na extinção colectiva.
Houve todo um novo pensamento, uma estética da morte, porque ela entrou-nos em casa através dos meios de comunicação social. O medo da morte foi o que nos manteve em casa e todos os dias há uma contabilidade de cadáveres no mundo inteiro.
E fazendo aparecer os mortos pela janela obscura e mais atroz: o cadáver anónimo. Desligado totalmente do que foi uma vida.
Isso leva-me a outro conceito trabalhado por si, o do sujeito digital que se afirmou neste tempo. Sobre isto, sobre este tempo, quem acha que tem estado a pensar melhor?
Sobre a realidade do corpo numa era digital não há muita coisa. Há autores que segui, o Bernard Stiegler, o Michel Serres. Os dois morreram há pouco tempo. Há outros autores muito importantes, pouco conhecidos. Foi publicado pela Relógio d’Água um livro de um especialista muito conhecido internacionalmente, Nick Bostrom, Superinteligência. Um livro terrível. Só tem uns cenários, cenários que ele faz e que são hiperinteligentes, sobre o pior que há no homem. Como se mata outro, como um ganha ao outro, como se chega ao topo, e tudo extremamente bem formulado e estudado. Simplesmente as premissas são de uma ideia horrível do homem e do que vai acontecer. Para ele é evidente que o que vai acontecer pressupõe certos instintos e pulsões no homem que são universais, que sempre existiram e que vão determinar a evolução da inteligência artificial.
Como é que viveu pessoalmente este tempo, o que o angustiou mais?
O que me angustiou mais, e me angustia, é uma espécie de dissolução das existências comuns, corporais das pessoas. Isto não é intelectual. Angustiava-me e angustia-me. Já não se têm as mesmas relações com as pessoas. Nós fazemos por pressupor sempre que isto é provisório; temos a máscara, mas é só por uns tempos, mais tarde havemos de tirar a máscara e falar e estar juntos. Mas não é a mesma coisa. E depois o facto de eu levar muito a sério as alterações climáticas e as consequências possíveis. O que António Guterres diz de tempos a tempos é para mim evidente. Está sempre a gritar de angústia porque está a viver a possibilidade real de nos afundarmos e de vivermos os piores sofrimentos. Inomináveis. Insisto, volto a isso, esta vitória do Biden e a derrota do Trump — sobretudo a derrota, que ele desapareça, mas não vai desaparecer, claro – é uma esperança enorme para a luta contra as alterações climáticas.
Há outra esperança relativamente à pandemia mais evidente, a vacina. Com a vacina entrou-se numa nova fase ou transformação?
Há uma imagem que circula por todo o planeta. É curioso. A imagem da luz ao fundo do túnel. Depois o túnel é mais ou menos comprido segundo as esperanças. Significa que se vai poder viver aquilo que já se vê, que parece tangível, a normalidade. Ou seja, o que nós vivíamos anteriormente. Mas o que vivíamos anteriormente é mitificado. Se se reportar a esse tempo, que é um ano, estávamos cheios de medo. De vários tipos de medo. Esse medo da morte que apareceu com a pandemia, no meu entender, veio absorver aquele medo que já estava antes a ser instigado nas populações. A vacina está a alimentar uma esperança, vai animar muita gente que precisa de ser animada, porque há um grande desânimo, um grande desencorajamento, depressões. E vai contribuir para a tal euforia de que falei há pouco. Se há um efeito mágico da vacina é este. Depois há um efeito real, que não é esse. Ainda não se sabe bem, mas vai contribuir para uma imunidade de grupo e, como queremos ver eliminado o perigo da covid-19, isso é bom, é óptimo. Mas não significa que a esperança que ela traz de cura de uma pandemia seja também esperança para a cura dos nossos males sociais.
Ou seja, voltarmos à normalidade ou a essa expressão que entretanto surgiu, à “nova normalidade”.
Tenho impressão que a nova normalidade queria dizer uma coisa que parece controversa mas é mesmo importante. Quando se dizia nova normalidade, o que se queria dizer é que as coisas serão diferentes, mas que teremos uma normalidade no sentido de viver de modo estável. Com certezas e não incertezas, com segurança e não insegurança, com previsibilidade e não com imprevisíveis. Será diferente, mas estaremos seguros e estáveis? Quer dizer, duradouramente estáveis? A médio prazo, e mesmo a curto prazo, não sabemos se vamos poder instaurar uma nova estabilidade duradoura ou se o nosso futuro vai ser cada vez mais instável por razões que têm a ver com as alterações climáticas, com as recessões económicas, com os conflitos políticos e as tensões, se vamos ser levados a uma coisa impensável na nossa história que é viver na instabilidade. Como é que nos vamos adaptar a uma instabilidade? Temos que inventar. A questão é saber encontrar as interrogações que estão nas coisas. As coisas chocam umas com as outras e quando chocam nasce uma interrogação. É preciso é apanhar essa interrogação.