Tiago Soares, in Expresso
O Estado português não consegue garantir famílias a 97% das crianças que mais precisam delas. Não há outro país na Europa que seja assim tão incapaz. Este ano houve mais adoções iniciadas mas menos adoções bem-sucedidas que no ano passado. Há nova legislação que promete colmatar as falhas - e “não há direito a errar”
“Portugal é uma anomalia.” Especialistas de todo o mundo reuniram-se em setembro de 2018 no Porto e concluíram isto mesmo: “Portugal é uma anomalia”. A ocasião era o 15º congresso bianual da European Scientific Association on Residential & Family Care for Children and Adolescents (EUSARF) e o assunto era sério: os sistemas nacionais de adoção de crianças.
Os números não mentiam: cá, só cerca de 3% das crianças retiradas às famílias estavam em famílias de acolhimento e 97% encontravam-se institucionalizadas. A situação não tem paralelo na Europa: países como a Irlanda e a Noruega só dependem de instituições para cerca de 10% das suas crianças retiradas aos pais pelo Estado. E mesmo nos países onde o sistema pende mais para a institucionalização, como a Alemanha ou a Itália, essas percentagens são de 54% e 50% respetivamente, bem longe dos 97% portugueses. “Ninguém entendia como é que em Portugal, um país supostamente desenvolvido, isto acontecia. E a diferença continua a ser abissal”, diz ao Expresso Maria Barbosa Ducharne, docente na Faculdade de Psicologia da Universidade do Porto que participou nesse congresso.
Os números não mentiam em 2018, também não mentem em 2020: esta quarta-feira o Instituto da Segurança Social (ISS) divulgou o último Relatório da Adopção Nacional, Internacional e Apadrinhamento Civil e os dados mostram que no ano passado foram iniciados 418 processos de crianças até aos 15 anos com vista à adoção mas apenas 231 dessas adoções aconteceram - em 2018 houve menos processos (366) mas mais adoções plenas (271). Como se explicam estes números?
Primeiro porque, apesar de estas crianças não terem perspetivas de voltarem à família biológica e serem encaminhadas para adoção por um juiz, a adoção só pode ser consumada se os pais biológicos derem autorização. “Vivemos numa sociedade que privilegia muito os laços de sangue e sobrevaloriza muito esses laços em detrimento dos laços emocionais. Isto faz com que exista discriminação para com os pais que consentem a adoção do seu filho, muitas vezes levando essa luta até às últimas consequências [tribunais]”, explica Ducharne, também investigadora no Grupo de Investigação e Intervenção em Acolhimento e Adoção (GIIAA).
“Esta crença nos laços biológicos e na recuperação à força do sangue faz com que os profissionais protelem as tomadas de decisão, quer nos tribunais quer na assistência social. O juiz opta por dar mais uma oportunidade à família para se reorganizar, para tratar os comportamentos aditivos ou ter formação em violência doméstica”, diz a especialista, antes de concluir: “Falta coragem para dizer que a família já teve todas as oportunidades que podia ter tido. Há crianças com dois anos que podiam ser adotadas, mas como ficam neste limbo isso só acontece aos seis ou sete anos. Esse tempo é crucial porque uma casa de acolhimento, por muito boa que seja, não é o sítio ideal”.
O arrastar das decisões não é o único problema. Há três semanas, a Santa Casa da Misericórdia iniciou uma nova campanha com o mote “acolher uma criança é devolver-lhe a infância”, lembrando que tem 1.250 crianças até aos seis anos à espera de uma família com quem possam crescer. “Temos um problema radical de falta de famílias de acolhimento”, corrobora Ducharne. A idade não é um pormenor e está na base de todos os entraves a um sistema de adoção eficaz: dois terços das crianças à espera de uma família adotiva têm entre sete e 15 anos mas menos de 5% das famílias candidatas é que as procuram, diz o relatório do ISS.
“Existe uma discrepância entre as características das crianças que podem ser adotadas e o perfil pretendido pelos pais - e aí a idade é crucial. Um adolescente de 15 anos viveu mais tempo do que um bebé de dois numa família disfuncional, por exemplo, e por isso a sua vulnerabilidade é maior, exige um esforço diferente da parte dos pais adotivos”, explica Ducharne. As crianças no sistema têm a experiência da disfuncionalidade, da adversidade, muitas vezes dos maus-tratos: no momento da adoção podem existir atrasos globais de desenvolvimento, doenças crónicas, doenças neurológicas - e tudo isto torna muito difícil o sucesso do processo. “Algumas situações podem ser controladas e recuperadas mas isso exige muito das famílias, logo o número de candidatos é menor.”
NOVA LEGISLAÇÃO: “NÃO HÁ DIREITO A ERRAR”
Ou seja: as crianças dos anúncios das marcas de fraldas são uma minoria. “Há alguma fantasia relativamente ao projeto de adoção. O que leva os adultos a candidatar-se é normalmente a infertilidade ou o risco genético de uma doença”, diz Ducharne. “Imaginam que vão ter uma criança que não podem gerar e essa imagem é perfeita. Mas o conceito do bebé perfeito, rechonchudinho, lourinho e de olhos azuis não existe aqui. Estas crianças têm perfis e necessidades muito diferentes.”
E por isso a importância da preparação: não há um perfil de competências único, algumas famílias estão mais capazes de acolher bebés, outras serão melhores com crianças em idades escolares ou adolescentes. Mas para tudo isto é preciso formar, selecionar e acompanhar estas pessoas. “As vítimas de maus-tratos, por exemplo, não choram nem procuram ajuda quando se magoam porque não acreditam que o adulto possa ser protetor e cuidador - e os pais adotivos têm de estar preparados para lidar com essa expressão emocional”, diz Ducharne. “Há o mito de que o amor basta. Isso não é verdade”, avisa. E não sendo verdade o poder legislativo português falhou.
Falhou porque em 2015 a lei de proteção de crianças e jovens em perigo (de 2011) foi revista: estipulava que as crianças retiradas às famílias deviam “preferencialmente” ir para famílias de acolhimento e não para instituições, mas não adiantava como é que isso podia acontecer. Quatro anos depois, em setembro de 2019, foi produzido um decreto-lei que regulava esse acolhimento familiar, mas regulamentou os seus aspetos práticos para uma portaria futura. “Passaram cinco anos desde a publicação da lei e a definição do quadro legal. Nesse tempo, o recrutamento, a formação e o acompanhamento das famílias esteve bloqueado por falta de legislação”, explica Ducharne. E se o Estado não ajuda as famílias que querem adotar como é que pode esperar que elas o façam?
A resposta chegou este ano: a portaria foi publicada em novembro, as regras são boas. “Houve a preocupação de acautelar que a formação das famílias candidatas seja feita antes da avaliação. Esta medida é essencial para aumentar o número de famílias disponíveis. Anteriormente a seleção era feita antes da formação, o que é bizarro - é como se os exames nacionais passassem a ser feitos no início do ano”, avalia Ducharne.
Agora Portugal tem mais condições para pôr o sistema de adoções a funcionar e inverter a relação 97% / 3% entre crianças institucionalizadas e acolhidas - e “não há direito a errar”. “Estas crianças não votam, não geram grande interesse da parte dos políticos, mas cada erro tem consequências enormes a longo prazo porque serão os adultos de amanhã”, diz a especialista. Há estudos internacionais que mostram que crianças institucionalizadas têm mais probabilidades de se tornarem jovens que não trabalham nem estudam.
Para que o plano funcione a 100% não basta conseguir adoções, é preciso apoiar esses pais em todos os momentos, dúvidas e problemas - e esses recursos são escassos. “Se essa rede de apoio existisse, provavelmente só não teriam competências adequadas os pais que não quisessem. Mas estes serviços não estão acessíveis à comunidade, e quando os pais pedem ajuda a situação já está tão degradada que é muito difícil recuperar a relação”, diz Ducharne. O Instituto de Apoio à Criança anunciou esta quarta-feira a criação de uma linha telefónica gratuita e confidencial e isso “é um bom primeiro passo”. Outro bom passo começa a ser dado em 2021: a Universidade do Porto e o ISCTE vão criar um sistema para monitorizar 270 famílias no período da pós-adoção durante três anos e assim identificar as necessidades que vão surgindo ao longo do processo e orientar na direção de ajuda especializada.