22.12.20

Em 2021 “vai haver uma crise de desemprego, de fome, e instabilidade do ponto de vista social”

Natália Faria (Texto) e Paulo Pimenta (Fotografia), in Público

Padre Rubens Marques, 59 anos, é pároco no Marquês, no Porto. E lida com “a grande vaga dos desempregados da pandemia”, num projecto que fornece refeições a quem precisa (e a fila é cada vez maior, diz). “Espero que venha aí um programa estrutural de combate à pobreza.” Este é o seu testemunho.

A minha linguagem não será a mais acertada. Vários colegas descreveriam melhor o impacto da pandemia na vida das pessoas e na sua relação com Deus. Falo apenas daquilo que vejo. E o que vejo todos os dias são pessoas desesperadas, ao frio e à chuva, em filas crescentes para uma refeição. Quando a minha paróquia, da Senhora da Conceição, no Marquês, no centro do Porto, criou o projecto “Porta Solidária”, estávamos vocacionados para os sem-abrigo e preparados para servir 40 refeições. No pico da última crise, em 2013, tínhamos atingido médias diárias de 300 refeições, sobretudo a sem-abrigo e reformados cujas pensões mal chegavam para pagar o quarto, a água e a luz. Desde que esta pandemia começou, logo em Março, os números dispararam para uma média de 550 refeições diárias. Nas filas, vejo jovens ligados à restauração, às esplanadas, que tinham contratos precários ou que não tinham qualquer contrato, e que, de repente, ficaram sem nada. E vejo muita gente ligada ao pequeno comércio dos cabeleireiros, das esteticistas, vejo os personal trainers dos ginásios.

É a grande vaga dos desempregados da pandemia. As filas para o jantar, que começou a ser em regime de take away, porque não tínhamos como garantir o distanciamento entre as pessoas, começam a formar-se por volta das 16h30 ou 17h00. E já aparecem famílias com bebés nos carrinhos. Quem arrasta os filhos atrás de si e se expõe ao frio e à chuva para conseguir uma refeição é porque tem mesmo necessidade disso. Não há aqui oportunismo. Há tempos, apareceu-nos uma família com três filhos, ambos desempregados, e em risco de perderem a casa. Conseguimos criar uma pequena liga de amigos e reunir o dinheiro para lhes pagar a renda.

Estes não são sítios agradáveis para se vir com crianças. Por isso procuramos que quem tenha um fogão possa receber cabazes de comida em casa. Estes cabazes familiares foram uma resposta nova e estamos neste momento a servir 101 famílias por mês de cabazes familiares. São menos 553 pessoas nas filas. E só o conseguimos fazer porque a fila dos apoios também tem aumentado. Até agências de seguros e outras religiões, como os irmãos muçulmanos e judeus, nos têm feito chegar os seus apoios. Está criado um grande desequilíbrio de tesouraria nas paróquias, mas esta crise também tem servido para percebermos como as pessoas podem ser generosas.

Curiosamente, na população que cá vem nunca se fala em casos positivos para a covid-19. Foi uma surpresa. Será porque estão assintomáticas ou então porque não vão fazer o teste. Mas nunca ouvimos falar de alguém que deixou de vir por ter ficado contaminado. A nossa preocupação é garantir que ninguém espera na fila sem máscara. E por isso anda sempre alguém a distribuir uma máscara a quem não a tenha.

Mantivemos a igreja aberta todos os dias, porque as pessoas quando saíam para irem à farmácia ou ao supermercado podiam querer entrar um bocadinho. E entraram sempre muitas pessoas. Creio que precisavam de um espaço sossegado para rezar, para se sentirem protegidas por Deus, ou simplesmente para poderem meditar. As pessoas ficaram mais necessitadas dessa fé. E nunca lhes fechámos as portas.

Muitos terão despertado mais para a relação com Deus. Mas outros mostram-se zangados, sobretudo quando passaram pela situação delicada de terem visto partir um familiar ou amigo com quem não puderam estar, às vezes durante meses. O sacramento da reconciliação (confissão) foi sempre o mais procurado, e tivemos de nos adaptar para o conseguirmos manter. Mudámos para uma sala, ampla e arejada, onde o distanciamento era possível.

Esta pandemia está a gerar muita ansiedade e a espoletar depressões. E o SNS vai ter de abrir as portas dos psicólogos e psiquiatras, porque esta gente não tem dinheiro para pagar ajuda especializada, e estes problemas não podem ficar nas mãos dos padres. A minha formação incluiu três semestres na área da psicologia, mas não me posso atrever a ser psicólogo.

Procuro dar-lhes algum apoio espiritual, que a reconciliação seja um momento de libertação, não uma sala de tortura, mas acontece-me muitas vezes no final incentivar as pessoas a procurarem ajuda técnica, e às vezes química, para conseguirem alcançar de novo a paz interior e o equilíbrio emocional. Ainda há tanto estigma em relação a isto. Procuro desmistificá-lo, lembrar que se trata uma depressão do mesmo modo que uma perna partida. Mas não garanto que o façam. Há casos em que me sinto completamente impotente.

A minha maior tristeza é a ausência junto dos doentes e dos idosos nos lares.

A minha maior tristeza é a ausência junto dos doentes e dos idosos nos lares. Costumava ir mensalmente aos lares de idosos e a casa dos doentes, aos quais garantíamos também a comunhão todas as semanas. Claro que percebo todas as cautelas que têm de haver em relação à transmissão da doença, mas esta impossibilidade de proximidade magoa.

No Natal, para compensar, vamos distribuir uma pen com uma mensagem da paróquia. Vai ser o nosso modo de lhes mostrarmos que continuamos a gostar deles.

Não ter a assembleia da família paroquial reunida aos domingos também foi um desafio. Foi preciso esforçarmo-nos para não desanimarmos. Mas nunca deixei de celebrar a eucaristia, juntamente com três celebrantes, o que me confortou. E acredito que as pessoas passaram a rezar mais em casa, apesar de algumas me terem dito que, quando voltou a ser possível assistir à eucaristia, se sentiam como se estivessem a sair das catacumbas.

O ano de 2021 vai ser um ano muito conturbado do ponto de vista económico e muito provavelmente vai gerar-se muito desemprego, mesmo porque as eventuais ajudas europeias passam sempre por processos burocráticos muito demorados. Vai haver uma crise de desemprego, de fome, e até instabilidade do ponto de vista social. Penso que aqui a prioridade deveria ser capitalizar as pequenas e médias empresas, que constituem uma grande rede de empregabilidade. Mas, no imediato, não vamos ter grandes soluções. E muitos pequenos comerciantes que ainda não fecharam vão fechar.

Espero que venha aí um programa estrutural de combate à pobreza, que se vai agravar ainda mais. As respostas de emergência como a nossa nem deveriam ser necessárias. Não é aceitável termos cidadãos portugueses que não têm o que comer nem casa para morar.

Para a Igreja, o desafio será conseguir transmitir uma mensagem de confiança, de espírito de luta e resiliência. Estamos todos no mesmo barco e temos de ser capazes de cuidarmos uns aos outros. Estou na expectativa de que este distanciamento forçado não tenha agravado o distanciamento das pessoas em relação à Igreja. Vamos ter de ser capazes de convocar as pessoas, de as motivar, não por proselitismo nem para captar sócios, mas para que saibam que Deus não exclui e que está presente. Mesmo numa pandemia.

Texto escrito a partir de uma conversa com Rubens Marques