Bárbara Reis, in Público on-line
Nova ronda à volta do vídeo negacionista de Christina Hoff Sommers e alguns argumentos para desfazer o mito de que a desigualdade salarial é um mito.Uma das mais célebres defensoras da ideia de que a desigualdade salarial não existe é a professora norte-americana Christina Hoff Sommers. O seu vídeo mais popular teve seis milhões de visualizações no YouTube e por isso vale a pena desmontá-lo. Sommers diz que as feministas “não são más a matemática, mas sim más a dizer a verdade”. Eu diria que o seu vídeo mostra como é fácil enganar as pessoas. Vamos por pontos.
1. Dantes, o trabalho infantil também era “normal” e uma “tradição”.
Quem fala da desigualdade salarial — Banco Mundial, ONU, governos progressistas e conservadores, Fórum Económico Mundial, etc. — não está a ceder à pressão do “activismo identitário moderno”, como um leitor aqui defendeu, mas a falar de uma injustiça. O gender pay gap fez um percurso semelhante ao de outras injustiças. Proibir as mulheres de votar é uma aberração, mas já foi a regra. Que empresa em Portugal contrataria hoje crianças para as vindimas? É inaceitável e ilegal. Mas nas vindimas mantém-se a tradição de os homens receberem mais do que as mulheres. Dirão: sempre foi assim e eles é que carregam os cestos, é a tradição. Justamente. A tradição é valorizar o esforço físico de carregar os cestos das uvas. Porque será que a tradição é desvalorizar o esforço físico de cuidar de idosos acamados? Porque será que levantar, carregar, lavar e vestir pessoas sem mobilidade vale pouco? Será que é por os cuidados sociais serem uma profissão sobretudo ocupada por mulheres? São ambos mal pagos, os trabalhadores das vindimas e os dos lares. A questão é outra: num caso, o esforço físico é valorizado, no outro o esforço físico é desvalorizado.
2. As profissões “tradicionalmente femininas” são mal pagas porque são tradicionalmente femininas.
Hoff Sommers diz que as mulheres ganham menos porque escolhem profissões mal pagas. Num tweet, fez até uma piada: “Queres acabar com a diferença salarial? Passo um: muda o teu curso de terapia de dança feminista para engenharia electrónica.” Palmas. Não lhe ocorre perguntar porque é que o mercado desvaloriza quase todas as profissões maioritariamente ocupadas por mulheres. Isso é visível nas profissões muito competitivas e nas pouco competitivas. Alguém acredita que é por acaso que as especialidades médicas mais mal pagas nos EUA são as que têm sobretudo mulheres? Falo da pediatria, psiquiatria infantil e obstetrícia. Estas são as três especialidades mais escolhidas por mulheres e as três especialidades mais mal pagas. Devem ser mesmo tontas estas mulheres que escolhem profissões tão irrelevantes para a sociedade. Agora a sério: Sommers vê o problema do avesso. Alguma coisa está errada numa sociedade que acha que cuidar da saúde das crianças é menos importante do que tratar dos dentes ou da perna partida de um adulto.
Acontece o mesmo nas profissões que exigem poucas qualificações. Porque é que “os funcionários dos parques de estacionamento que trabalham a tempo inteiro (geralmente homens) são mais bem pagos para tomar conta de carros do que os cuidadores de crianças a tempo inteiro (geralmente mulheres) são pagos para tomar conta de crianças”? Encontrei esta pergunta no site da American Association of University Women (AAUW), a organização que Sommers cita no vídeo como fonte do argumento central — deve ser credível.
3. É estranho citar estudos obscuros e sem rasto.
A propósito da AAUW, ao minuto 1’12, Sommers diz: “Até um estudo da AAUW mostra que o verdadeiro gap salarial reduz para 6,6 cêntimos quando se introduzem [nos cálculos] as diferentes escolhas que os homens e as mulheres fazem.” Tradução: diz-se por aí que as mulheres ganham menos 23 cêntimos em cada dólar que os homens ganham, mas até as feministas dizem que a diferença é só de 6,6 cêntimos. Caro leitor, não é isso que a AAUW diz — ou, se diz, está muito bem escondido. O mais próximo dessa ideia que vejo no site da organização é um estudo onde, ao fazer cálculos incluindo variáveis como o nível de escolaridade e o sector económico, a AAUW diz que há uma diferença de 7% nos rendimentos dos homens e das mulheres. Bingo para Sommers? Não me parece. Na frase seguinte percebe-se que é um inquérito a recém-licenciados sobre o salário no primeiro emprego e que “o hiato salta para 12% dez anos depois”.
4. Todos sabem que para calcular o gender pay gap é preciso incluir variáveis.
Sommers diz: isto é muito complicado, é preciso incluir variáveis para calcular o gender pay gap, não podemos ser simplistas. A professora faz de conta que descobriu que o tema é complexo e que faz o favor de nos revelar a verdade. Amigos: há anos que toda a gente séria calcula o gap salarial em subgrupos — idade, educação, antiguidade, características das empresas e sector económico. Estas são as variáveis mais comuns, mas há outras. Uns atrás dos outros, estudos e relatórios dizem que é preciso ir além dos cálculos simples das disparidades salariais e que é preciso ver de forma pormenorizada as disparidades em subgrupos homogéneos.
5. Quando incluímos as variáveis, o hiato salarial é ainda maior do que os “números simplistas”.
Estudo atrás de estudo — da OIT à Câmara dos Comuns britânica — mostram que os cálculos “ajustados” revelam um gender gap maior do que os cálculos simples. “Quando o diferencial é ajustado” e se observam de forma isolada os salários em subgrupos por idade, nível de escolaridade e antiguidade, “o diferencial (ganhos mensais e por hora) é consideravelmente elevado — cerca de 21% e 20%” (para tempo inteiro e todos os trabalhadores), lê-se num estudo coordenado pelo ISEG-Universidade de Lisboa, em parceria com o Centro de Matemática Aplicada à Previsão e Decisão Económica e o Centro de Estudos para a Intervenção Social, que acaba de ser apresentado. No cálculo simples, o gap em Portugal é de 17,7% e 20,6%.
6. E mesmo depois de calcular as variáveis, o “não explicado” é enorme.
Tendo lido tantos estudos, Sommers deve ter reparado nas tabelas que dizem “não explicado”. O fleumático Banco de Portugal diz no trabalho Sobre a discriminação sexual na formação de salários (Ana Rute Cardoso, Paulo Guimarães, Pedro Portugal e Pedro S. Raposo) que a “componente não explicada do diferencial salarial [...] é a convencionalmente associada à noção de discriminação sexual”. O que é o “não explicado”? Duas coisas: é a subvalorização do trabalho das mulheres — que recebem menos pelo mesmo trabalho, menos por trabalho equivalente e menos nas empresas “altamente feminizadas” — e é a disparidade salarial na maternidade. As mulheres que são mães recebem menos do que as que não são mães. A OIT diz que a diferença salarial na maternidade varia entre 1% (Canadá) e 30% (Turquia). De novo, há variáveis a equacionar: os salários mais baixos para as mães podem ser explicados pela interrupção da licença de maternidade, redução das horas, preferência por empregos “mais amigos da família, que pagam menos” (palavras da OIT) ou “decisões estereotipadas de contratação e promoção que penalizam as carreiras das mães”. Não sabemos. Portugal não é excepção. Num relatório recente da OIT, a maior fatia para explicar o gender gap português é “inexplicado”.
Tudo isto são pormenores maçadores que não interessam à professora Sommers. No próximo sábado, proponho mais seis argumentos. O primeiro é o mito da bravura.