14.12.20

Pandemia de covid-19 espalha tristeza entre pessoas com deficiência e deixa-as mais expostas a discriminação

Ana Cristina Pereira, in Público on-line

Observatório da Deficiência e Direitos Humanos lançou dois inquéritos e recolheu relatos de desajustes e até de discriminação. “O meu filho não consegue usar [máscara] e não me deixaram entrar no supermercado, mesmo mostrando o atestado multiusos que comprova que ele tem 90% de incapacidade”, relatou, por exemplo, a mãe de um rapaz de 25 anos.

A pandemia de covid-19 está a deixar as pessoas com deficiência mais tristes e deprimidas. As respostas têm sido mais lentas do que para o resto da população e nem sempre ajustadas, aponta Paula Campos Pinto, coordenadora do Observatório da Deficiência e Direitos Humanos (ODDH). Quem cuida acusa forte cansaço, embora aliviado pelo desconfinamento.

Procurando perceber como a crise pandémica está a ser vivida, por duas vezes o ODDH lançou um inquérito na Internet. Na fase do confinamento, entre 27 de Abril de 10 de Maio, responderam 725 pessoas. No desconfinamento, entre 9 e 27 de Outubro, 326.

Nesta fase, mais de dois terços (67,4%) dos inquiridos têm a impressão que a pandemia expõe mais as pessoas com deficiência a situações de discriminação. E alguns (12,3%) reportaram ter tido essa experiência.

Covid-19: pessoas com deficiência dão nota negativa a escolas, universidade e serviços


“O meu filho não consegue usar [máscara] e não me deixaram entrar no supermercado, mesmo mostrando o atestado multiusos que comprova que ele tem 90% de incapacidade”, relatou a mãe de um rapaz de 25 anos.“O meu filho é autista e a GNR não respeitou o facto de ir com ele passear”, declarou outra cuidadora. "Não têm qualquer conhecimento sobre o assunto.”

“Quando reporto a amigos, professores ou outros que o meu irmão de 18 anos está em isolamento desde Abril com a minha mãe, a resposta que recebo, em grande maioria, é que ele deveria ser colocado numa instituição”, comentou ainda outra. “É assustador este pensamento e é pela falta de informação pública nos meios sociais que a discriminação ainda existe, que este pensamento retrógrado ainda é aceite.”
Demorado regresso dos serviços de apoio

A vida deu uma cambalhota quando, no dia 16 de Março, encerraram escolas e centros de actividades ocupacionais e as terapias foram reduzidas ou suspensas. Começaram a regressar, de forma gradual, a partir de 18 de Maio. Tornaram a fechar no Verão. E o início das aulas, agendado para 21 de Setembro, sofreu com os atrasos na colocação de professores do ensino especial e de terapeutas e no arranque do transporte escolar.

Em Outubro, quando o segundo inquérito foi lançado, muitos cuidadores (86,2%) responderam que os apoios e os serviços utilizados pela pessoa a quem prestam cuidados tinham sido retomados integralmente (41,4%) ou parcialmente (44,8%), mas 13,8% ainda não podiam dizer o mesmo. É uma amostra pequena, mas indicativa: 88 cuidadores, 83% das quais mulheres.

Na primeira fase, quando tudo estava fechado, 73,4% das cuidadoras sentiam-se “muito ou bastante” cansadas e 64% mesmo “muito ou bastante” exaustas. Com a reabertura, essas percentagens desceram, a primeira para 47,7% e a outra para 41,9%. Mas a ansiedade, sinalizada por 75,4% na primeira fase, pouco baixou (7,7%).

“Mantive a minha actividade profissional a partir de casa, tive que trabalhar quase todas as noites para compensar o tempo em que durante o dia estava a prestar cuidados ao meu filho”, declarou uma cuidadora de um menino de dez anos. “O meu filho tem 80% de incapacidade, pelo que necessita de vigilância constante. Fui obrigada a pedir jornada contínua e a irmã mais velha pediu para fazer os turnos da noite e, assim, entre as duas, asseguramos a vigilância. Uma ficava com ele de manhã e a outra ficava à tarde e à noite”, relatou outra, que cuida de um rapaz de 14. “Tive de suspender a empresa para poder cuidar do meu filho e como sou sócia-gerente não me deram nenhum apoio”, queixou-se ainda outra, que cuida de um menino de sete.

Ao que se pode ler no relatório Deficiência e covid-19 em Portugal, da autoria de Paula Campos Pinto e Patrícia Neca, metade das pessoas com deficiência (51%) dizem que se têm sentido mais tristes ou deprimidas. Mais de metade (58,4%) admitem estar mais ansiosas e algumas (39,3%) até têm maiores dificuldades em dormir. A maioria (67,7%) revela preocupação com um possível agravamento da sua situação económica.

“Uma vez que tentávamos entrar numa aula no Zoom e não conseguimos, alguns colegas de turma do meu filho disseram no grupo da turma do Messenger que um deficiente também não fazia falta.”Cuidadora de um rapaz de 15 anos.

Persiste avaliação negativa da escola obrigatória

Paula Campos Pinto coloca a tónica no “descontentamento com as soluções encontradas”. “A insatisfação é mais forte na fase do confinamento.”

Veja-se o exemplo da educação. No ensino obrigatório, na primeira fase, “77,9% dos inquiridos classificaram as modalidades de ensino disponibilizadas aos alunos com deficiência como nada ou pouco adequadas”. Na segunda fase, essa percepção desceu só ligeiramente: 64,7%. Contudo, no ensino superior, a avaliação era negativa (69,3%) e inverteu-se. Passou a ser globalmente positiva (66,7%), embora ainda houvesse uma insatisfação expressiva (33,3%).

“Quando passamos subitamente para o ensino à distância, a resposta aos alunos com necessidades especiais foi ainda mais lenta do que para o resto da população”, salienta aquela investigadora do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa. Na fase de desconfinamemento, arrastou-se o desencontro entre a resposta e as necessidades destes estudantes.

Há relatos que espelham o desastre da primeira fase. “Uma vez que tentávamos entrar numa aula no Zoom e não conseguimos, alguns colegas de turma do meu filho disseram no grupo da turma do Messenger que um deficiente também não fazia falta”, queixou-se, por exemplo, a mãe de um rapaz de 15 anos. “Se eu o estava a tentar entusiasmar [para ir] às aulas às quais sempre reagiu mal e não é capaz de assistir, com essa discriminação, desisti”, reconheceu.

E há relatos que revelam os desajustes da segunda fase. ​Queixou-se a cuidadora de outro rapaz, de 14 anos: “Deixou de frequentar as poucas aulas a que ia ficando confinado na unidade de autismo, porque não consegue usar máscara”. E a de um de 12: “Já começou a trabalhar com o professor de ensino especial, mas os terapeutas ainda não estão colocados.”

Paula Campos Pinto teme que isto contribua ainda mais para o abandono escolar. Como se pode ler no relatório Pessoas com deficiência em Portugal – indicadores de direitos humanos 2020, de que este estudo sobre o impacto da pandemia é um acrescento, o abandono escolar tem estado a diminuir, mas em 2018 ainda estava nos 21,9%, bem acima do verificado entre alunos sem deficiência (12,4%).