14.12.20

Pobreza energética: porque está Portugal entre os piores da UE?

Ana Horta, in Público on-line

Num momento em que se começa a reconhecer a gravidade do problema da pobreza energética, importa compreender como, num país com um dos climas mais amenos da União Europeia, a população sofre tanto de excesso de frio ou de calor na sua própria casa.

Apesar do clima ameno, Portugal é um dos países da União Europeia (UE) em que mais cidadãos estão expostos ao frio em casa. Apesar da evolução positiva na última década, Portugal continua a ser um dos países em que o número de indivíduos a declarar não ter capacidade financeira para manter a sua casa aquecida de forma adequada é mais alto: 18,9% da população em 2019, quando a média dos países da UE é 7% (EU-SILC). Mas, no caso de Portugal, a realidade do desconforto térmico em casa é ainda mais grave.

O aquecimento da casa é considerado pela UE um indicador básico para caracterizar o bem-estar das famílias. Mas enquanto na generalidade dos países da UE existem equipamentos de aquecimento central na maioria das habitações, em Portugal, segundo o Eurostat, apenas 13,3% possuem sistemas deste tipo.

Estes números relativos a Portugal são ilustrativos de uma cultura em que se privilegia o aquecimento corporal de cada indivíduo (através de agasalhos, por exemplo) em detrimento do aquecimento da casa. Trata-se de uma cultura bem diferente da dos países nórdicos em que as expectativas sociais relativamente ao aquecimento dos espaços interiores são altas, a ponto de ser frequente o custo do aquecimento estar incluído na renda paga (o que deixa os arrendatários sem incentivos económicos à redução do uso do aquecimento).

Pelo contrário, em Portugal a utilização de aquecedores elétricos tem como consequência faturas energéticas excecionalmente altas, o que contribui para um uso muito comedido e pontual destes equipamentos e, em contrapartida, o recurso abundante a agasalhos e outras formas de conservar o calor corporal em vez de aquecer o ar. Mas embora este comportamento seja geralmente justificado com o elevado custo da eletricidade usada pelos aquecedores portáteis, está também relacionado com práticas e condições mais profundamente imbricadas na forma como a sociedade portuguesa se tem construído nas últimas décadas.

Um país em transformação

O desenvolvimento assimétrico do território, baseado no abandono das povoações rurais no interior do país em busca de melhores condições de vida nos centros urbanos do litoral criou, sobretudo a partir dos anos 1960, uma enorme pressão nas cidades, onde escasseava a habitação. Esta pressão seria agravada pela população vinda das ex-colónias em meados dos anos 1970. Face a um papel muito limitado do Estado em termos de política de habitação, a autoconstrução de casas e os bairros clandestinos proliferaram.

O período de crescimento económico que se iniciou em meados dos anos 1980, após a adesão à UE, acentuaria ainda mais o processo de urbanização do país e a procura de habitação nas cidades e suas periferias. Entre 1970 e 2001 registou-se em Portugal um forte aumento do número de habitações, com taxas de crescimento mais altas que noutros países europeus, ultrapassando o próprio aumento da população. Esta dinâmica de crescimento conduziu a uma situação em que grande parte das habitações mais antigas ficaram vagas, e muitas vezes deterioradas, enquanto a maioria da população passou a habitar edifícios construídos desde 1971 (INE).

Nas povoações rurais, as casas eram geralmente pobres e frequentemente não dispunham de água canalizada ou de casa de banho. Em contrapartida, os modernos edifícios de betão representavam uma significativa melhoria nas condições de vida dos habitantes, dispondo de infraestruturas de saneamento básico e eletricidade. No entanto, e apesar de as técnicas de construção terem evoluído, muitos destes edifícios foram construídos sem isolamento térmico.

Apenas em 1990 foi publicado em Portugal o primeiro regulamento das condições térmicas dos edifícios, quando nalguns países europeus já existiam regulamentos a esse respeito desde os anos 1950 e 60. Assim, a maior parte dos edifícios em Portugal foi construída antes da adoção destas normas. Como resultado, o desempenho energético da maioria dos edifícios do país é fraco. De entre os edifícios de habitação cujos certificados energéticos já foram emitidos até ao momento, 69,9% obteve uma classificação entre C e F, que são as classes mais baixas numa escala em que A+ é a mais favorável.

Como consequência, não só muitas casas em Portugal são demasiado frias no inverno, como muitas são também demasiado quentes no verão.

Pobreza habitacional

Uma outra característica do desenvolvimento da sociedade portuguesa nas últimas décadas deve ser referida: a persistência de elevados níveis de pobreza e de desigualdades económicas, durante muito tempo superiores aos da média da UE. Apesar da evolução positiva nos últimos anos, em 2019 Portugal continuava a ter mais de 2,2 milhões de habitantes em risco de pobreza ou exclusão social (Eurostat). Milhares de famílias continuam a viver em barracas, bairros sociais degradados, acampamentos e outras construções sem condições mínimas de habitabilidade.

Os baixos rendimentos da maioria das famílias refletem-se no estado de conservação deficiente de muitos dos edifícios do país. Segundo o Eurostat, na última década Portugal tem estado entre os quatro países da UE em que mais famílias (24,4% em 2019) têm declarado viver em casas com infiltrações, humidade ou apodrecimento nas janelas ou pavimentos. Para este estado de degradação da habitação no país terá contribuído a baixa qualidade de construção e a falta de manutenção.

Além da incapacidade financeira para fazer obras em casa, há também bastante desconhecimento acerca do que pode ser feito para melhorar o conforto térmico e de quais os materiais e as técnicas mais adequados a cada caso. A incerteza quanto à relação custo-benefício e ao resultado final de tais investimentos também trava a ação.

Por outro lado, algumas práticas sociais acabam por ser penalizadoras, como é o caso do fechamento das varandas. Pressionadas pela falta de espaço, muitas famílias têm transformado as varandas em marquises. Porém, estas são geralmente muito quentes no verão e muito frias no inverno e ainda escurecem a casa, agravando assim o desconforto em vez de ajudar a arejar.

Também a qualidade dos equipamentos domésticos disponíveis nas casas de muitos portugueses corresponde ao seu baixo nível de rendimentos. Alguns eletrodomésticos, como os frigoríficos, podem ter consumos bastante mais altos se forem antigos e pouco eficientes, mas, muitas vezes por incapacidade de comprar um melhor, as famílias continuam a usá-los até deixarem de funcionar.
Energia cara para uma população pobre

Além de tudo isto, a energia em Portugal é das mais caras da UE. Apesar de, desde a liberalização do mercado de eletricidade, os portugueses terem passado a ter a possibilidade de escolher entre vários fornecedores, os preços não desceram. Pelo contrário, entre 2008 e 2016 o preço da eletricidade para os consumidores domésticos aumentou constantemente, passando a ser superior à média da UE.

Na segunda metade de 2018, cálculos do Eurostat que tomaram em consideração as diferenças de poder de compra entre os países mostraram que Portugal foi o país da UE com a eletricidade mais cara para as famílias. Estes preços deveram-se em grande parte (55%) à inclusão de impostos e taxas nos preços da eletricidade cobrados aos consumidores, sendo que em média na UE esta proporção de impostos e taxas é consideravelmente mais baixa (37%). Também relativamente ao gás, ajustando os preços ao poder de compra das populações, os quatro países onde foram registados preços mais altos foram a Suécia, Espanha, Itália e Portugal.

Esta falta de sensibilidade política em relação ao preço da energia para as famílias, num país em que a maior parte da energia usada em casa diz respeito às mais básicas das tarefas domésticas, como à alimentação e higiene (e não ao aquecimento da habitação, como acontece na UE), parece também reveladora de como está entranhada na sociedade portuguesa uma cultura de desvalorização do frio.
Pobreza energética: definição e efeitos

A conjugação destas várias dimensões — baixa eficiência energética da habitação, salários baixos e preços elevados da energia — é geralmente considerada como estando na origem da pobreza energética. Segundo o Observatório da União Europeia para a Pobreza Energética (EPOV), mais de 50 milhões de famílias estão nesta situação no conjunto dos países membros da UE. Isto significa que essas famílias estão privadas de usar nas suas casas de forma adequada serviços energéticos tais como aquecimento, arrefecimento, preparação de refeições, iluminação ou entretenimento e informação através de equipamentos eletrónicos. Estas formas de privação têm consequências que podem ser graves para a saúde, afetando também o bem-estar e a plena participação dos indivíduos na sociedade.

Destas consequências, os efeitos sobre a saúde de viver numa casa fria são conhecidos há muito tempo. Consistem quer no aumento do risco de mortalidade, quer no agravamento de doenças preexistentes, afetando também a saúde mental. A exposição ao frio pode fazer aumentar o risco de problemas respiratórios e cardiovasculares, mas outros problemas de saúde (como, por exemplo, a diabetes) podem também sofrer complicações. Por outro lado, foram também encontradas evidências fortes de que em especial o sistema respiratório, a diabetes e a saúde mental são afetados quando as pessoas estão expostas a temperaturas altas.

O excesso de mortalidade no inverno é aliás uma das consequências mais dramáticas da pobreza energética, uma vez que está relacionado com a qualidade da habitação e a capacidade da família para aquecê-la adequadamente.

De facto, tem-se verificado que não é simplesmente nos países mais frios que o excesso de mortalidade no inverno é mais alto, pois os países em que a habitação é energeticamente mais eficiente têm menos mortes em excesso no inverno. É, antes, nos países em que as pessoas têm mais frio em casa que a mortalidade no inverno é superior. Em 2014, Portugal continuava a ser um dos países da UE em que o excesso de mortalidade no inverno é mais elevado.
Da resignação à ação

Há cerca de uma década, Portugal criou tarifas sociais para a eletricidade e para o gás natural que visavam apoiar os consumidores mais vulneráveis. Tratou-se sem dúvida de uma medida positiva, sobretudo a partir do momento em que estas tarifas passaram a ser atribuídas automaticamente, sem necessidade de os cidadãos terem de o solicitar. A partir de janeiro de 2021, estas tarifas deverão permitir um desconto de 33,8% sobre o valor da energia consumida (não incluindo impostas e taxas). Falta ainda estender este apoio ao gás engarrafado (GPL), que é utilizado pela maioria das famílias com rendimentos mais baixos.

No entanto, embora importantes, estes apoios não resolvem o problema da pobreza energética. Para isso, um passo fundamental será promover a melhoria das condições de habitabilidade e a eficiência energética das casas e dos equipamentos domésticos das famílias mais pobres. Porém, isto terá custos que não podem ser suportados por essas famílias, dado não disporem de capitais próprios suficientes. O desafio de reabilitar o parque habitacional do país torna-se ainda maior num contexto de crise económica associada à pandemia de covid-19.

No entanto, combater a pobreza energética é uma necessidade urgente, sobretudo num país com um envelhecimento da população tão acentuado como Portugal. Se, por um lado, os idosos são mais vulneráveis ao frio e ao calor em termos de saúde, por outro, têm mais dificuldade em realizar obras em casa ou instalar novos equipamentos.

Também as alterações climáticas tornam indispensável combater a pobreza energética. Com o aumento da frequência e da intensidade das ondas de calor, se nada for feito, será cada vez mais difícil para os cidadãos mais vulneráveis sobreviver ao calor em casa. Mas as próprias políticas de mitigação das alterações climáticas e de transição energética, embora indispensáveis, podem vir a agravar a pobreza energética se não forem acauteladas as necessidades dos grupos mais vulneráveis. Eventuais aumentos nos preços da energia, por exemplo, poderão ser fortemente injustos para parte da população.

Outros desafios se colocam no plano sociocultural. Se bem que muitas pessoas sejam afetadas quer pelo frio quer pelo calor em excesso em casa, tendem a resignar-se com essa situação, como mostrou uma investigação realizada pelo ICS-ULisboa no âmbito de uma medida da ADENE. É, assim, necessário alargar o reconhecimento do problema e sensibilizar sobretudo os que lidam de perto com os cidadãos mais vulneráveis.

Ciências Sociais em Público

O Instituto de Ciências Sociais (ICS) é uma escola da Universidade de Lisboa e um Laboratório Associado do Sistema Científico Nacional dedicado à investigação, aos estudos pós-graduados e à divulgação de ciência nas áreas de Antropologia, Ciência Política, Economia, Geografia, História, Psicologia Social e Sociologia (www.ics.ulisboa.pt). Durante um ano, todos os domingos, investigadoras e investigadores com diferentes formações, idades e percursos académicos partilham o seu trabalho com os leitores do P2.