18.9.14

Europa não agiu apesar de todos os sinais de tragédia no Mediterrâneo

in Amnistia Internacional

Antes mesmo dos naufrágios nos últimos dias, estimava-se que pelo menos 1.800 pessoas morreram ou desapareceram já este ano na tentativa de atravessarem o Mediterrâneo, vindas do Norte de África.

Mais 700 terão morrido nestes mais recentes incidentes, ocorridos nas duas primeiras semanas de setembro.

O ano de 2014 vai ficar marcado por um recorde cruel e sombrio com o mais elevado número de mortes de migrantes e refugiados jamais registadas no Mar Mediterrâneo. Isto está relacionado com o aumento muito significativo do número de pessoas que tentam fazer esta viagem. E é tão mais trágico por ser totalmente previsível.

Qualquer pessoa que acompanhe com atenção o que se está a passar no Médio Oriente e no Norte de África reparou nos sinais de alarme – e é de partir do princípio que os responsáveis pelas políticas de imigração na União Europeia (UE) estão atentos.

Metade daqueles que fazem a travessia marítima para a Europa são oriundos da Síria e da Eritreia, e a esmagadora maioria são refugiados de zonas mergulhadas em conflito ou que fogem de perseguição. Em 2013 registou-se um aumento acentuado no número de pessoas que atravessaram o Mediterrâneo e essa tendência revelava-se duradoura devido à guerra na Síria, à continuada repressão na Eritreia e à deterioração política e de segurança na Líbia.

A guerra na Síria provocou um dos maiores êxodos forçados de civis em muitas décadas. Quase dez milhões de pessoas, mais de 40 por cento da população do país, viram-se obrigados a abandonar as suas casas. A vasta maioria daqueles que partiram do país – mais de três milhões de pessoas – está agora em campos de refugiados no Líbano, na Jordânia e na Turquia.

O impacto desta crise sente-se sobretudo no Líbano, país com uma população de quatro milhões que acolheu mais de 1.2 milhões de refugiados sírios: isto representa um aumento de 25 por cento da população em menos de três anos.

Ser refugiado jamais será uma experiência agradável, mas torna-se ainda pior quando as necessidades humanitárias – expressamente identificadas por agências internacionais especializadas – são cronicamente financiadas abaixo do que é preciso. O apelo feito pelas Nações Unidas à comunidade internacional para prestar apoio ao Líbano no acolhimento dos refugiados recebeu apenas 36 por cento daquilo que era pedido.

Líbano, Jordânia e Turquia carregam o fardo sozinhos

A comunidade internacional, incluindo a UE, abandonou o Líbano, e também a Jordânia e a Turquia – deixou estes países sozinhos a carregarem o fardo da maior crise mundial de refugiados.

Os pedidos para que outros países, de fora daquela região, acolhessem um maior número de refugiados caíram em orelhas moucas. Com exceção da Alemanha, apenas números não mais do que simbólicos foram prometidos, num total global de menos de 40 mil refugiados a serem bem acolhidos.

Somos questionados com frequência sobre as razões pelas quais outros países devem avançar para reinstalar refugiados sírios: não ficarão eles melhor num outro local, onde conheçam a língua e estejam mais perto do país de origem? Isso até pode fazer sentido, mas a verdade é que a maior parte dos refugiados da Síria enfrentam gigantescas dificuldades apenas para subsistirem e defrontam-se com imensos obstáculos na educação, na saúde e em arranjar habitação. Ano após ano, a situação está a agravar-se e não a melhorar.

O acolhimento de refugiados pode ser uma tábua de salvação para estas pessoas, permitir-lhes recomeçarem as suas vidas com dignidade e aliviar alguma da pressão sobre os principais países que os estão a receber. Uma iniciativa global de reinstalação na ordem dos cinco aos dez por cento do total de refugiados sírios daria essa oportunidade de vida a umas 150 mil a 300 mil pessoas que se encontram vulneráveis.

A UE é obviamente uma região fundamental para os fluxos de refugiados do Médio Oriente. Mas outros países também têm de fazer mais. Por exemplo, a Arábia Saudita não se comprometeu a receber nem um refugiado. A Rússia o mesmo, e, aliás, contribuiu apenas com uns miseráveis 1.8 milhões de dólares para o apelo humanitário de doações feito pelas Nações Unidas que tem como objetivo seis mil milhões de dólares.

Número de refugiados e deslocados inédito desde a II Guerra Mundial

Em 2013 registavam-se mais de 50 milhões de pessoas no mundo inteiro forçadas a abandonar as suas casas – foi a primeira vez desde a II Guerra Mundial que este limiar simbólico foi ultrapassado. Com a continuação e mesmo o agravamento dos conflitos na Síria, Iraque e na República Centro Africana, entre outros, é muito provável que se mantenha esta tendência de aumento no número de refugiados e deslocados.

As tragédias no Mediterrâneo vão continuar a não ser que muito mais seja feito para dar assistência às pessoas que fogem dos horrores dos conflitos. A UE e toda a comunidade internacional têm de oferecer mais lugares de acolhimento e mais financiamento humanitário para as crises de refugiados. Mais ainda: face o nível de desespero que conduz as pessoas a arriscarem as vidas nestas perigosas viagens, a UE tem também de investir nas operações de busca e salvamento no mar.

É que os sinais de alerta são claros. Sem ação, muitas mais pessoas vão morrer.

Artigo de Sherif Elsayed-Ali, responsável de Direitos dos Refugiados e Migrantes da Amnistia Internacional

A Amnistia Internacional tem em curso desde 20 de março de 2014 a campanha "SOS Europa, as pessoas acima das fronteiras", iniciativa de pressão a nível global para que a Europa mude as políticas de migração e asilo, no sentido de migrantes, refugiados e candidatos a asilo serem tratados com dignidade à chegada às fronteiras europeias.