Natália Faria, in Público on-line
João Ferrão, especialista em Ordenamento do Território, abre a porta à extinção de municípios, mas apenas se houver reforço das juntas de freguesia. Reforçar as competências e eleger o presidente das comissões de coordenação regional poderá ajudar a introduzir inteligência nas políticas do território, aponta.
Geógrafo e investigador no Instituto de Ciências Sociais, o geógrafo João Ferrão anda há anos a estudar as questões do ordenamento do território. Foi secretário de Estado do Ordenamento e das Cidades, no primeiro Governo de José Sócrates. Em 2013, apresentou um estudo sobre a geografia da crise. Largos meses de políticas de ajustamento depois, aponta os jovens nem-nem como um exemplo de efeitos económicos que perdurarão no tempo. Quanto a medidas como o encerramento das juntas de freguesia e dos tribunais, pecaram pela ausência de inteligência territorial e de diálogo e concertação entre ministérios. São as consequências de uma administração central “verticalizada e pouco democrática”, critica. Uma das soluções para evitar que o país se transforme num enorme queijo Gruyère (cheio de buracos) será reforçar as competências e legitimar democraticamente as comissões de coordenação e desenvolvimento regional.
Num estudo que liderou sobre a geografia da crise, e cujos dados foram recolhidos em 2010, concluía que havia quatro territórios com maior grau de exposição à crise: península de Setúbal, Algarve, Baixo Alentejo e lezíria. A austeridade produziu entretanto novas configurações?
Muitos dos efeitos da crise são diferidos no tempo e é isso que não conhecemos bem. As cidades médias, por exemplo, onde o peso da administração pública é relativamente grande, tinham uma prestação relativamente positiva e isso deve ter piorado entretanto. A classe média, ou média baixa, com uma grande presença da administração pública, tinha mecanismos de defesa que fizeram com que alguns aspectos relacionados com a crise tenham sido diferidos no tempo. Os chamados nem-nem-nem [não trabalham nem estudam nem estão em formação], por exemplo: nós não sabemos que consequências o fenómeno vai ter, mesmo depois de desaparecido o contexto de crise. Mesmo depois de se ter verificado uma expansão do mercado do trabalho, essas pessoas vão ficar marcadas para sempre. Porquê? Porque não foram normalmente socializadas quando o deviam ter sido, numa altura-chave de inserção na vida activa. Falta avaliar estes aspectos diferidos dos efeitos da crise e estudar o rasto que a crise vai deixar nos grupos mais afectados. E não só do ponto de vista da pobreza, porque estes 18% da população que são nem-nem-nem não são todos das classes mais desprivilegiadas: há uma parte da classe média. Até podemos dizer que, porque têm uma protecção familiar, não são casos tão imediatamente problemáticos, mas serão mais prolongados no tempo.
Que efeitos têm, nesta geografia e dinâmica da crise, medidas como o encerramento de 1168 juntas de freguesia?
Portugal é dos países europeus onde a confiança nas instituições é menor. E tem vindo a diminuir. É curioso verificar que, de entre as instituições em que os portugueses continuam a confiar, estão exactamente as juntas de freguesia e as autarquias, isto é, as instituições de proximidade. Porque se estiverem numa situação complicada é a elas que vão recorrer. Portanto, o encerramento das juntas levanta desde logo um problema que é simbólico: desaparece um elemento identitário muito importante. Mas desaparece também um agente de proximidade em que as pessoas confiam e que tem condições para, com o apoio das autarquias, prestar determinados serviços sociais. Por outro lado, este encerramento não pode ser desligado da racionalização das diferentes redes públicas. E o mais complicado é a convergência desses factores: às juntas de freguesia soma-se o encerramento das escolas, dos centros de saúde… O problema é que a dita racionalização de cada uma destas redes é feita de forma autónoma e não articulada e a sua incidência penaliza sempre os mesmos territórios. Não há uma visão de conjunto, territorial. As nossas políticas públicas continuam a ser excessivamente sectorializadas e muito pouco territorializadas. Para cada um dos sectores pode ter sentido, com os seus critérios estritamente sectoriais, a forma como racionalizam a suas redes, mas, se ninguém tem uma visão de conjunto, o resultado é transformar Portugal num queijo Gruyère, cheio de buracos que resultam de decisões tomadas separadamente.
Por que não se avançou ainda para a articulação prévia de políticas?
Porque não é fácil. Nós continuamos a ter uma administração muito centralizada, muito verticalizada, muito sectorializada, muito pouco democrática. E, para além do Governo que está em funções, se continuamos a ter a administração organizada desta forma não vamos conseguir encontrar soluções para muitos outros aspectos. Os vários ministérios não dialogam. Também não é fácil construir de um dia para o outro essa cultura de colaboração interministerial. Depois temos ainda outra questão muito penalizadora, que é o facto de a racionalização sectorial das várias redes ser feita com base no critério da eficiência, quando devia ser com base no jogo entre dois critérios: a eficiência e a justiça espacial, ou, se quiser, a coesão territorial. Não devia ser possível efectuar a racionalização da rede de serviços públicos exclusivamente com base em critérios de eficiência sem ter em conta a componente da coesão territorial.