Catarina Gomes, in Público on-line
As pessoas com Alzheimer desaprendem todos os dias de viver. Esquecem nomes, caras, palavras, gestos e movimentos. Na Casa do Alecrim, unidade criada apenas para pessoas com este problema, todos os dias as ensinam a lembrar as suas próprias vidas. Hoje é dia mundial da doença.
Escrita na parede da Casa do Alecrim, a palavra Alzheimer não passa de mais uma das muitas palavras que perderam o significado para quem lá mora Daniel Rocha
Elena Pimentel é só candura, fala-lhes com tom calmo, faz-lhes festas, relembra-lhes os sítios de onde vieram, o nome dos pais, irmãos e filhos, que fez por memorizar. Convivem diariamente, alguns há quase dois anos e, no entanto, estão sempre a perguntar-lhe quem é ela, como é que se chama, o que faz ali. Todos os dias, várias vezes por dia, esquecem-se que ela é a Elena, que é só candura, que lhes fala com tom calmo, que lhes faz festas, que lhes relembra o sítio de onde vieram, o nome dos pais, irmãos e filhos, que fez por memorizar.
É como uma cena de um filme que se está sempre a ver de novo, em repetição contínua. Elena está habituada, faz parte da sua profissão, é terapeuta ocupacional na Casa do Alecrim, uma unidade no concelho de Cascais criada para pessoas com doença de Alzheimer. Basta-lhe que eles saibam que “é alguém importante nas suas vidas e que gosta deles”. Mas ser apenas isso, apenas isso, é muito mais difícil de pedir a um familiar.
Demora muito tempo, e alguns familiares nunca conseguem esse patamar que exige criar uma forma de “tolerância para não estar agarrado ao que a pessoa foi”, diz Fernanda Carrapatoso, directora desta unidade sem fins lucrativos da associação Alzheimer Portugal. É pedir a um filho que aceite que aquela mãe ou pai nunca mais vai saber que ele é seu filho, nem o nome com que escolheu baptizá-lo, nem nada do que viveu com ele, e que consiga aceitar ser apenas uma pessoa que reconhecem, que sentem que é familiar e que lhes traz bem-estar quando a vêem chegar. Em troca, não podem esperar mais nada. E, mesmo isso, a capacidade de os reconhecer como alguém significativo, irá, mais tarde ou mais cedo, desaparecer.
“Quem é que eu sou? És tu mesmo. Como é que eu me chamo? Com a boca. Quantos filhos tens? Dois. Como é que se chama o teu filho? Francisco José. Quem é que eu sou? És tu mesmo”. Esta é parte de um diálogo que se repete todas as vezes em que Francisco José Sequeira, filho de Natalina Sequeira, visita a mãe na unidade situada na Alapraia, próximo do Estoril. Ele sabe que ela o reconhece e que quando aparece sente uma emoção agradável, mas a interacção com a mãe, de 86 anos, limita-se a pouco mais do que esta troca de frases. Francisco deixou de lhe chamar mãe porque ela não responde ao chamamento e ainda lhe pergunta “’Qual mãe?’, como quem diz ‘Vai chamar mãe a outra’”, explica o filho, de 42 anos. Trata-a pelo nome, porque ela já não se lembra que é mãe dele, mas ainda sabe que se chama Natalina. “Anda, Natalina, vamos andar, faz-te bem o exercício”, diz-lhe, para darem mais uma volta ao edifício envidraçado, arquitectado para receber luz de todos os ângulos.
Também há dias em que Natalina identifica Francisco como “o mano”. Não sabe porquê é que por vezes ocupa esse lugar, afinal, um dos dois irmãos que Natalina tinha morreu, com o outro já não tem relações e nunca a visitou, ao contrário de Francisco, que o faz dia sim, dia não. Talvez ele seja “o mano” porque quando Francisco lhe voltou a aparecer na vida, vivia em Inglaterra desde 1997, já tinha umas mechas de cabelo grisalho “e um filho não tem cabelos brancos”, tentou explicar-se a si mesmo. Para Natalina “o Francisco é uma criança”.
No tempo em que cuidava de Natalina em sua casa havia noites em que Francisco adormecia a chorar e a pensar “a falta que me fazia ter aqui a minha mãe” e noites em que, na mesma casa, “a mãe vagueava à procura da criança, do filho”, que nunca conseguiu encontrar, apesar de habitarem ambos o mesmo espaço. É como se vivessem em tempos desencontrados. Natalina Sequeira procurava um filho que na sua cabeça ainda era pequeno, Francisco chorava uma mãe que começou a desaparecer há uns cinco anos. “Era superprotectora, andávamos sempre agarrados aos abraços e beijos. A preocupação dela por mim faz-me falta”; “agora é uma mulher distante, fria”.
Foi a mãe que ela foi que lhe serviu de combustível emocional para aguentar ser cuidador dela durante três anos, sozinho, antes de conseguir vaga na Casa do Alecrim, que abriu portas em Janeiro de 2013. A irmã tinha feito o mesmo, antes de ele ter de regressar. Para 30 vagas de utentes da segurança social há 400 pessoas em espera, só do concelho de Cascais, explica a directora da unidade.
Francisco Sequeira vivia já 16 anos em Inglaterra, emigrou quando ainda não era tendência, não arranjava emprego em Portugal. Lá ganhou vida estável, como professor de educação especial, mas teve de voltar para tentar arranjar uma solução para os pais. Tirou um ano de licença sem vencimento, pensou que em seis meses resolveria tudo, lhes arranjaria um lar. Só conseguia lugar em lares privados, o mínimo 1200 euros por mês e ele não tinha esse dinheiro. Teve de desistir da vida em Inglaterra para tomar conta da sua mãe em sua casa, e também do pai, que entretanto também ficou demente mas morreu há uns meses. Em Portugal há 153 mil pessoas com alguma forma de demência, cerca de 90 mil são casos de Alzheimer. Está em Portugal há 4 anos, “a vida destruída”.