Resposta legislativa à pandemia na área laboral é uma teia que já confundiu os próprios serviços do Estado. Entre leis, decretos, despachos e resoluções, saíram 88 documentos em cinco meses e meio.
Quando a Organização Mundial de Saúde declarou a pandemia a 11 de Março, Portugal tinha iniciado a produção legislativa da covid-19 nove dias antes, com um despacho das ministras do Trabalho e da Modernização Administrativa a ordenar aos empregadores públicos a elaboração de um plano de contingência. E, a partir aí, o fluxo legislativo não mais parou.
Até 15 de Agosto (decorridos 168 dias) já foram publicados 88 documentos legais com impacto no mundo laboral, o que representa quase um documento novo a cada dois dias nestes cinco meses e meio.
Uma compilação da Direcção-Geral do Emprego e das Relações de Trabalho (DGERT) permite ver todos os decretos-lei, leis, resoluções do Conselho de Ministros, despachos, portarias, declarações de rectificação, recomendações e decretos presidenciais criados desde 2 de Março. Nalguns casos, são diplomas que visam especificamente regras do mundo laboral ou medidas fiscais que afectam empresas e trabalhadores. Noutros, como os decretos presidenciais do estado de emergência, são textos mais genéricos de resposta à evolução da covid-19, mas que também afectam as relações de trabalho.
Mas se estes são tempos de excepcionalidade na produção de leis, são também de exigência para quem tem de lidar com todas essas alterações. “Não têm sido tempos fáceis para quem faz direito do trabalho, pelo momento de excepcionalidade”, diz o advogado na área do direito laboral Pedro da Quitéria Faria, da sociedade Antas da Cunha Ecija & Associados, para quem a quantidade de legislação e informação procedimental produzida deve ser encarada com uma “dose de tolerância” excepcional, pois, vinca, “não havia nenhum legislador que tivesse as ferramentas necessárias para, com eficácia e sucesso, lidar com estes efeitos”..
O advogado frisa, no entanto, que, nalguns casos, houve erros que poderiam ter sido evitados ou corrigidos mais cedo — refere-se, por exemplo, à exclusão inicial dos microempresários dos apoios da covid-19 ou aos “lapsos” nos apoios aos trabalhadores independentes, onde “nem sempre existiu um alinhamento” da prática com a lei.
É disso que se queixam empresários, trabalhadores, patrões, sindicatos, partidos da oposição: nalguns casos importantes, como o layoff simplificado, a resposta de emergência confundiu as partes, exigiu correcções, clarificações, alterações e, em situações extremas, deu origem a diplomas revogados em poucos dias.
Corrigir a correcção
O melhor exemplo será a portaria 71-A/2020, de 15 de Março, assinada pela ministra do Trabalho, Ana Mendes Godinho, que criou apoios como o layoff. Um dia depois, a 16 de Março, surgiu uma primeira declaração de rectificação, para corrigir erros de remissão para artigos da portaria – algo simples mas necessário para o texto fazer sentido; e logo dois dias depois surge uma nova portaria para “alterar e clarificar algumas situações”.
Depois de queixas dos patrões, o executivo reduziu (de três meses para dois) o período de referência para calcular as quebras de facturação. E ouvindo os sindicatos, eliminou a alínea que referia que um trabalhador em layoff poderia, mesmo assim, ser obrigado a trabalhar “a título temporário” em “funções não compreendidas no contrato de trabalho”.
Além disso, limpou a referência às férias dos trabalhadores quando definiu que o layoff seria prorrogável mensalmente, “até um máximo de seis meses”.
Porém, esta portaria já rectificada e modificada só sobreviveria mais oito dias. Acabou revogada, a 26 de Março, e substituída por um diploma que significou uma correcção à correcção. Mas este mesmo diploma seria corrigido logo dois dias depois, porque o original não era claro sobre o despedimento de trabalhadores. O decreto proibia despedimentos de “trabalhadores abrangidos” pelo layoff, mas não se referia aos outros. E, por isso, o Governo apressou-se a publicar uma declaração de rectificação, estendendo a proibição a todos, enquanto durasse o layoff e nos dois meses após o fim do apoio.
Acertar à terceira
As mudanças continuaram: entre Abril e Junho, teria mais quatro versões diferentes, modificadas por outros tantos decretos que alteravam um ou mais pontos do diploma original. A alteração mais recente, de Junho, serviu para prolongar a medida por mais um mês, até 31 de Julho – o que foi feito através de um decreto que, ele mesmo, teve uma alteração. É que o mesmo diploma criava o complemento de estabilização, um apoio de 100 a 351 euros para cada trabalhador que esteve um mês em layoff. Acontece que a prática assente no texto inicial levou à exclusão de trabalhadores cujo mês de layoff não coincidisse com um mês civil completo, algo que o executivo acabou por corrigir (“clarificar”, nas palavras do Governo) no último Conselho de Ministros.
Descodificar todos estes textos é como abrir matrioscas: quando se destapa um texto legal podem descobrir-se ligações a outros. Se os 88 textos legais em 168 dias são reveladores da pressão a que o mundo laboral ficou sujeito por causa da pandemia, o emaranhado de ligações cruzadas na produção legislativa ajuda a explicar a dificuldade de interpretação e informação que, por vezes, afecta os próprios serviços do Estado.
O melhor exemplo é a própria Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT). Inspectores disseram a trabalhadores que era ilegal serem enviados para férias durante o layoff, mas as direcções da ACT e a DGERT tiveram um entendimento diferente depois de o PÚBLICO ter noticiado essa prática – que continua a ser contestada pela CGTP, pelo jurista Fausto Leite e pela própria presidente do Sindicato dos Inspectores do Trabalho.
Entretanto, o decreto do layoff simplificado foi substituído porque, a 1 de Agosto, entrou em vigor o apoio à retoma progressiva, que tem um decreto próprio, o 46-A/2020. E embora este ainda não tenha sido alterado, a DGERT e o ministério já se viram obrigados a prestar informações complementares para dissipar dúvidas sobre o regime aplicável da TSU, sobre as condições de acesso e sobre o cálculo dos salários e o apoio ao pagamento dos subsídios de Natal.
No caso do layoff simplificado, o advogado Pedro Quitéria de Faria considera que teria sido mais vantajoso estender ou recriar a medida inicial, em vez de criar a nova medida de apoio à retoma progressiva, porque, antecipa, isso criará entraves às próprias empresas. E diz que o Governo ainda está a tempo de “emendar a mão”, sendo preferível fazer novas alterações do que deixar tudo tal como está pensado hoje e que, adverte, poderá levar muitas empresas a decidirem não entrar nesta nova medida e a avançarem com despedimentos.
O caso dos recibos verdes
Há outros exemplos desta teia complexa de diplomas. Um caso singular dessas mudanças foi o que se passou com o apoio extraordinário à redução da actividade económica dos trabalhadores independentes, que já vai na sexta versão desde Março e até já mudou de nome.
Além das modulações que foi conhecendo ao longo dos meses, ao seu lado surgiram mais três apoios complementares que, nalguns aspectos, são uma extensão desse primeiro, pois pretenderam cobrir as situações em que os trabalhadores não podem aceder àquela primeira prestação.
Até agora, as quatro medidas criadas para os trabalhadores a recibos verdes, desprotegidos, profissionais liberais e empresários em nome individual já conheceram dez mudanças. E quando se olha para cada uma das versões encontram-se várias alterações de pormenor que fazem toda a diferença e que, nalguns casos, vieram alterar os requisitos de acesso e dificultar a compreensão.
Veja-se o que se passou com o apoio à quebra da actividade dos trabalhadores abrangidos exclusivamente pelo regime dos trabalhadores independentes, o tal instrumento que está agora na sexta versão em cinco meses e meio.
O Governo começou por criar uma medida que afunilava a possibilidade de os trabalhadores independentes serem apoiados, ao ver que afinal havia um universo significativo de pessoas excluídas, e foi alargando as possibilidades de entrada, ora alterando a primeira medida (cinco alterações), ora criando, ao lado dessa norma, três outras medidas de apoio diferentes (na prática representaram mais três mudanças). E duas delas, por sua vez, também já sofreram alterações (duas alterações).
Por exemplo, na primeira versão, de 13 de Março, o Governo entendeu que ficariam abrangidos apenas os trabalhadores que tivessem cumprido a obrigação contributiva “em pelo menos três meses consecutivos há pelo menos 12 meses”, deixando logo de fora muitos trabalhadores a recibos que trabalham de forma intermitente (como acontece na área da cultura).
Logo nos primeiros dias de Abril, fez uma primeira correcção: mudou a redacção da norma, passando a incluir quem tivesse descontado para a Segurança Social “em pelo menos três meses seguidos ou seis meses interpolados há pelo menos 12 meses”. Na mesma altura surge outra alteração de monta: em vez de incluir quem estivesse em paragem da actividade (pois estavam excluídas quedas de 80% ou 90%), passou a abarcar todos os que tivessem uma quebra de facturação igual ou superior a 40%. E a meio de Abril, uma nova alteração: nas situações de quebra da actividade, o apoio é proporcional a essa redução, com os limites já então definidos.
Quando chega o início de Maio, o apoio passa a abranger os gerentes de sociedades por quotas e é alargado o universo de PME abrangidas. Julho chega com mais mudanças: desta vez, a lei passa a fazer referência a “gerentes das micro e pequenas empresas” que “tenham ou não participação no capital da empresa” e aos empresários em nome individual.
A quinta alteração surge em Agosto: o apoio deixa de se aplicar apenas aos cidadãos abrangidos exclusivamente pelo regime dos trabalhadores independentes (e os gerentes de PME), para abarcar aqueles que passem recibos em complemento do trabalho por conta de outrem “e não aufiram, neste regime, mais do que” 438,81 euros, ou seja, o valor do Indexante de Apoios Sociais.
Enquanto decidia estas modificações, o Governo criava, em paralelo, as tais três medidas complementares. No início de Maio, na mesma altura em que fazia a terceira alteração à primeira medida, o Governo criou a “medida extraordinária de incentivo à actividade profissional” — e embora tenha este nome, pretende apoiar quem estivesse em quebra de actividade, dirigindo-a também para os trabalhadores independentes, mas para aqueles que não preenchessem as condições de acesso ao primeiro apoio, porque tinham iniciado a actividade há menos de 12 meses ou porque, embora tenham começado há mais de 12 meses, não têm descontos suficientes. Medida esta que, entretanto, também sofreu uma alteração, em Agosto.
Naquela mesma altura de Maio, é posta em marcha uma outra medida, com o nome “enquadramento de situações de desprotecção social”. Desta vez, pretendeu abranger as pessoas que não se encontravam obrigatoriamente abrangidas por um regime de Segurança Social. Também sofreu uma alteração, estando agora na segunda versão.
Um terceiro apoio, que ainda está a ser operacionalizado, chama-se “apoio extraordinário a trabalhadores” e destina-se a cobrir quem não tem “acesso a qualquer instrumento ou mecanismo de protecção social” nem a qualquer uma das três medidas anteriores.