Joana Gorjão Henriques, in Público on-line
David, Cláudia e Cristina estão sem trabalhar. São jovens e fazem parte de um dos grupos mais afectados pela pandemia. Sem alternativa nas suas áreas, há quem tenha ficado num limbo: com formação a mais para alguns postos de trabalho, mas sem experiência suficiente para esses mesmos lugares. “É horrível a sensação de impotência”
Até Março, David Alves, 23 anos, ficava à espera que o telemóvel tocasse com alguém do outro lado a chamá-lo para fazer uma visita guiada ao Museu do Aljube, em Lisboa. Tudo parecia encaminhado: a recibos verdes, e pago à hora, iria trabalhar para poupar dinheiro e sair de casa dos pais. Mas o museu fechou assim que começou a pandemia. Desde então que está à procura de emprego.
Cláudia Marques, 27 anos, terminou o curso de Ciências da Comunicação em plena pandemia, e já está à procura de trabalho noutras áreas, mas nem para postos menos qualificados a chamam. Trabalhadora estudante, ficou sem um part-time que tinha no aeroporto mal as fronteiras fecharam.
Cristina Paiva, 32, há 11 anos que é guia-intérprete oficial e estava habituada a períodos de trabalho menos intensos, mas nunca pensou que, um dia, iria ficar parada tanto tempo. “Não sabemos quando vamos voltar a ter trabalho. É completamente uma incerteza. Não vemos uma luz ao fundo do túnel”, desabafa.
Além de estarem sem emprego, estes jovens têm em comum a angústia expressa por Cristina Paiva. São alguns dos rostos de um “grupo” que mais está a sofrer as consequências da pandemia. Segundo dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), a taxa de desemprego dos jovens no segundo trimestre de 2019, entre os 15 e 24 anos, era de 18,1% e passou para 19,9%; já entre quem tem 25 e 34 anos subiu de 5,8% para 7,7%. Também subiu o número de jovens abaixo dos 35 anos que não trabalha, nem estuda: era de 8,7% no segundo trimestre de 2019 e passou para 12,8% no período homólogo deste ano.
Desde Março que David Alves enviou, persistentemente, currículos para vários locais. Nem na sua área, nem noutra lhe dão resposta: tentou papelarias, livrarias, lojas de vários tipos, supermercados. Licenciado em História pela Universidade Nova de Lisboa, está prestes a começar o mestrado em Sociologia no ISCTE. Sem apoios do Estado, vive com os pais no Seixal, algo que está longe de ser o seu objectivo. São eles que o ajudam a pagar o mestrado. É perto da baía que nos encontramos, numa manhã de dia de semana. “Pelo menos um ano antes da pandemia estava a fazer planos com a minha namorada para vivermos juntos”, desabafa.
A mãe é educadora de infância e o pai militar reformado. Reconhece que a família tem uma situação económica que lhe permite “dar-se ao luxo” de estudar. “Mas sinto, cada vez mais, que sou um peso. O trabalho antigamente servia para retirar o peso económico aos meus pais; agora é uma questão de autonomia, de querer alugar uma casa. Parte de mim sabe que não sou o único e que há pessoas em piores condições que eu. Mas este pensamento positivo não dura muito tempo porque uma pessoa sente necessidade de melhorar as suas condições. A minha namorada tem ordenado, e está bem, e agora sinto que sou um peso para ela — estávamos a fazer planos para mudar e coloquei um ponto final nisso porque não recebo.”
À medida que o tempo passa, sente que “os pensamentos são cada vez mais pessimistas”. Houve até uma altura em que desistiu de enviar currículos porque “estava de rastos”. “Em Junho voltei a mandar para muitos dos mesmos.” A determinada altura ponderou guiar um tuk tuk — aquele tipo de trabalho que sempre achou que podia fazer um dia se não encontrasse mais nada — só que este sector foi um dos grandes afectados.
O plano agora é continuar à procura de trabalho. Para não se sentir inactivo, tem feito pesquisa em temas que lhe interessa investigar, de forma “autodidacta”. “O único pensamento positivo que tenho é que vou começar o mestrado.”
Se antes da pandemia pensava que não iria aceitar qualquer emprego na perspectiva de arranjar um dia algo na sua área, hoje esse raciocínio deixou de fazer sentido. Enfrenta o dilema, comum a outras pessoas na sua situação: por um lado, tem formação a mais para alguns postos de trabalho, por outro, não tem experiência suficiente para esses mesmos lugares. “Vou a uma livraria e querem pessoas com dois anos de experiência, numa loja de roupa é a mesma coisa…”, desabafa. “Há pessoas muito mais experientes que eu e a empresa despediu-as, pessoas mais velhas e com mais formação, e estão com o mesmo paradigma.”
Entre estas tentativas, surgem também angústias. Ainda chegou a pensar “mentir” no currículo, escrevendo que tinha menos formação. Mas depois confronta-se com o dilema: “Se calhar há mais gente na mesma situação, com menos formação, que precisa mais do trabalho do que eu…”
Enviar “uns 30 currículos"
Sem respostas na área de jornalismo e da comunicação onde se licenciou, também Cláudia Marques começou a concorrer para call centers, lojas, trabalhos como administrativa e até de recepcionista só que se tem deparado com o mesmo problema de David Alves: “O maior entrave que colocam é a experiência profissional.”
Aos 27 anos, Cláudia Marques terminou agora a licenciatura em Ciências da Comunicação, pela Universidade Autónoma de Lisboa (UAL), à distância. Era suposto usar os estúdios de rádio e televisão da universidade para experimentar as diversas formas de jornalismo, mas com o ensino à distância Cláudia Marques teve que trocar os microfones profissionais pelo do telemóvel.
Antes de se licenciar tirou um curso profissional em multimédia na Escola Profissional de Imagem. Trabalha desde 2014: esteve no centro de informática da UAL como técnica, num call center, num quiosque de produtos açorianos e, mais recentemente, em part-time no aeroporto a fazer check-in, nas portas de embarque, no apoio a passageiros. O seu contrato terminava em Abril, e não lhe fizeram um novo. Na altura, o objectivo “era concorrer a uma coisa na área ou continuar ali [no aeroporto] e tentar trepar para um cargo mais interessante”, confessa.
Tudo mudou, conta num centro comercial em Oeiras, onde vive com os pais. Desde que perdeu o emprego que já enviou “uns 30 currículos”. “Acaba por ser ingrato terminar o curso no meio de uma pandemia. Sinto que antes de ser licenciada tinha mais oportunidades de emprego do que agora. Sei que a área é muito concorrida mas a pandemia veio piorar tudo. Não há maior frustração do que um jovem cheio de sonhos, que acabou esta etapa, não ter emprego, ter uma grande barreira à frente: não há emprego e mesmo na área foram dispensadas muitas pessoas ou postas em layoff””.
O pai trabalha na navegação aérea e Cláudia Marques tem uma paixão pela aviação civil, por isso esta seria uma segunda escolha. Só que também aqui as oportunidades escasseiam: “O problema é que, como não há voos como antes, não abrem concursos para nada”, desabafa.
Não tem qualquer ocupação neste momento, e diz que tem saudades das aulas: “É uma sensação muito estranha começar um ano a estudar e a trabalhar ao mesmo tempo, quase à beira de um esgotamento mas a sentir-me útil ao quadrado, depois ficar sem emprego e neste momento não estar a fazer nada.”
Entretanto tem feito a gestão das redes sociais da mãe, agente imobiliária, de modo a ter alguma coisa para mostrar em marketing digital. Vai continuar a enviar currículos; se não tiver respostas, quer fazer formação numa língua estrangeira. Assusta-a a ideia de ficar parada muito tempo. “É horrível a sensação de impotência, de querer mostrar o meu potencial, de querer fazer mais, destacar-me e não ter nem uma porta, nem uma janela aberta. É o não saber onde estou amanhã, não poder ter grande ambição.”
Ainda ponderou inscrever-se num mestrado mas reflectiu: “Tinha que pensar num muito especializado… Não vale a pena investir em mais formação para ficar igual, para ficar desempregada na mesma. Nós, recém-licenciados, estamos no limbo entre aceitar o mínimo que apareça, abaixo da nossa formação, ou ficar sem fazer nada.”
O congelamento do turismo
Guia intérprete oficial, Cristina Paiva, 32 anos, está sem qualquer rendimento desde Março, além do apoio do Governo para profissionais independentes. Quem trabalha em turismo está habituado a poupar, a trabalhar no Verão para viver no Inverno, nota. É preciso gerir a economia familiar com base nessa sazonalidade: “Não sabemos se vamos começar a trabalhar em Março ou Abril.” Mas este ano, a “queda abrupta de rendimento” aconteceu numa altura, Março, em que era suposto “estar a subir o trabalho”, ou seja, o esforço do Inverno prolongou-se para a tradicional época alta. E não sabem “até quando”, lamenta.
Descreve o que faz como turismo cultural, um trabalho que muitas vezes passa “invisível"; os seus clientes-tipo são reformados ou perto da reforma, com “background cultural” e poder económico, pessoas que procuram visitas guiadas para ter um melhor contexto sobre o país que visitam. O guia recebe-os como “anfitrião”: “Somos a cara do país”, diz.
A sua função é acompanhar e dar o contexto histórico e cultural aos grupos, num percurso previamente desenhado e que pode durar vários dias ou até semanas; também faz visitas locais mais curtas, na zona de Lisboa, Sintra, Oeste ou Alentejo. Ao longo do tempo Cristina Paiva foi criando a sua carteira de clientes, que chegam sobretudo dos Estados Unidos e do México, Brasil ou Argentina, regiões onde neste momento há fortes restrições. “Se não trabalhar, não ganho.”
Neste período de paragem aproveitou para fazer formação: inscreveu-se num curso de língua gestual portuguesa, tem ido a alguns monumentos que estão a fazer visitas gratuitas para os guias. Mas este período tem sido desafiante: “Apesar de parecerem férias, para nós é apenas estar sem trabalho. É uma sensação de incerteza, de preocupação, porque não sabemos até quando vamos aguentar, se quando começarmos a trabalhar vai ser com quantidade suficiente para fazer vida do turismo e quando é que isso vai acontecer.”
Prevê que possa aparecer algum trabalho nos próximos meses mas “muito pouco”. Pensa que talvez em Março de 2021 o turismo volte a mexer. Mas não está, para já, a ponderar procurar trabalho noutra área. Tem conseguido reduzir os gastos ao mínimo e descreve com paixão o que faz. “É difícil abandonar 11 anos de construção de carteira de clientes, de formação, para começar de novo e numa situação que, por si, não é boa.”
Quem trabalhava no turismo e convivia quotidianamente com o crescimento do sector, sabia que, mais tarde ou mais cedo, teria que existir um travão, comenta. “Estávamos a ver este crescimento desenfreado, que teria que parar para bem de todos. Mas nunca ninguém imaginou esta paragem total, este congelamento.”
Não esconde que “a gestão” do momento actual “é complicada”. Como David, como Cláudia, questiona-se: “O que se faz agora? É uma grande incerteza.”