31.8.20

Em cinco meses, mais de 600 sem-abrigo passaram pelos centros de acolhimento de Lisboa

Cristiana Faria Moreira, in Público on-line

Reposta de emergência à população sem-abrigo da capital vai manter-se. Nas ruas nota-se um aumento de pessoas em situação de sem-abrigo, ainda que não seja exponencial. Associações pedem mais coordenação e temem os próximos meses.

Enquanto um país se fechava em casa com o desígnio comum de combater um inimigo invisível, centenas de pessoas permaneciam nas ruas, sem paredes, sem tecto, sem sustento. Com as cidades desertas, deixou de haver a quem pedir dinheiro, a quem fazer recados a troco de umas moedas ou de uma refeição. Deixou de haver com quem trocar umas palavras. Para alguns, terá faltado comida, porque as associações se viram, de repente, desprevenidas, com equipas desfalcadas e mais pessoas a pedirem alimento.

Em poucos dias, a Câmara de Lisboa criou uma resposta de emergência para tentar responder a algumas destas carências, montando, primeiro, um centro de acolhimento temporário no Pavilhão do Casal Vistoso, no Areeiro, onde quem não tem um tecto pode pernoitar, comer e tomar banho e ser acompanhado por técnicos sociais, especialistas em dependências e enfermeiros. Como a procura por este espaço foi grande, o município foi abrindo outros espaços: Casa do Lago, em Benfica, para acolher mulheres, o Pavilhão da Tapadinha, cujos utentes foram entretanto reencaminhados para a Pousada da Juventude do Parque das Nações e o Clube Nacional de Natação, onde podem pernoitar 48 homens. Neste momento, há capacidade para acolher 220 utentes nos quatro centros, mas segundo os números da autarquia, já passaram por estes espaços 626 pessoas desde meados de Março.

Ao longo dos últimos meses, em que a Grande Lisboa se viu com tremendas dificuldades para quebrar as cadeias de transmissão do novo coronavírus, os centros de emergência mantiveram a actividade. Antecipando uma possível segunda vaga, a Câmara de Lisboa garante que manterá estas respostas, podendo, em caso de necessidade, serem alargadas. “Manteremos a resposta e, tal como anunciámos no passado, mantemos a procura activa de novos espaços, no âmbito do património das Forças Armadas que constituam uma solução adequada à emergência, favorecendo a segmentação da resposta e a sua qualidade”, diz o gabinete do vereador dos Direitos Sociais, Manuel Grilo, em resposta ao PÚBLICO.

160 pessoas receberam alojamento

Quem ali entra tem contextos, histórias de vida, e nalguns casos, que não a maioria, de dependências, muito diferentes entre si. Ainda que os consumos estejam proibidos dentro dos centros, são acolhidas pessoas alcoólicas ou toxicodependentes. Para reduzir a permanência na rua ou as deslocações, a unidade móvel de consumo assistido e a unidade móvel de metadona, — ambas financiadas em parte pela Câmara de Lisboa e pelo Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD) — começaram a ter paragens junto de alguns centros.

Foto Imagem do centro de acolhimento montado no Pavilhão do Casal Vistoso, quando o PÚBLICO o visitou no final de Abril Nuno Ferreira Santos

Segundo revela a autarquia, o programa de consumo vigiado nos centros está a acompanhar 22 utentes. Pelo programa de substituição opiácea de baixo limiar – que recorre à “metadona” – já passaram (ou ainda passam) 70 pessoas. Foi também disponibilizado um tratamento preventivo de Síndrome de Privação Alcoólica para grandes consumidores de álcool, que 22 utentes integraram.

O acolhimento nestas respostas de emergência acabou por ser “um veículo para a sua orientação para respostas consistentes” e uma forma de conhecer melhor esta população, nota a autarquia. Ao nível da saúde mental, uma centena de pessoas está a ser seguida em articulação com o Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa e com os centros hospitalares Lisboa Norte, Oriental e Central. Foram também realizados 238 rastreios de tuberculose e 117 utentes foram testadas ao VIH e Hepatites Virais.

“Tirando situações muito pontuais de manifestação da vontade própria das pessoas acolhidas ou de incumprimento das regras estabelecidas, ninguém voltou para a rua” nestes seis meses, diz a autarquia ao PÚBLICO. O vereador dos Direitos Sociais, Manuel Grilo, fixara o ambicioso objectivo de garantir que quem entrasse nestes centros não voltasse para a rua e fosse encaminhado para respostas de alojamento no âmbito do programa Housing First ou da Santa Casa da Misericórdia. Pelas contas do município, cerca de 160 pessoas foram encaminhadas para novos alojamentos e 40 conseguiram um emprego. Houve ainda cerca de duas dezenas que regressaram às famílias ou aos países de origem. 

Associações pedem mais coordenação

De acordo com a última contagem conhecida, que data de Janeiro de 2019, dormem nas ruas da capital 361 pessoas. No entanto, há mais 1967 que estão em quartos, centros de acolhimento temporário e alojamentos específicos para pessoas sem casa ou projectos Housing First.

No entanto, as associações que percorrem todos os dias as ruas de Lisboa não têm dúvidas de que o número de pessoas a pernoitar e a pedir refeições está a aumentar. Entre quem vai chegando à rua estão imigrantes brasileiros, africanos, asiáticos que tinham empregos com vínculos precários em restaurantes ou empresas de transporte, por exemplo, e que, de repente, se viram sem protecção e sem sustento. “Não tem havido de todo uma diminuição”, nota Nuno Jardim, director-geral do Centro de Apoio ao Sem-Abrigo (CASA).

Por dia, o CASA está a distribuir cerca de 550 refeições entre entregas na rua à população sem-abrigo e as que fornecem também nos centros de emergência do município. Além das pessoas que estão sem tecto, “há famílias que têm as suas casas, mas que devido à situação de perda de emprego ou ao layoff têm de arranjar soluções”, e recorrem ao apoio das associações, explica Nuno Jardim.

Nas suas rondas, a Comunidade Vida e Paz confirma o cenário. “Vão aparecendo pessoas novas, pessoas que perderam o emprego e que estão em risco de perder a casa”, conta Celestino Cunha, coordenador das equipas de rua da Comunidade Vida e Paz.

Depois de um “pico inicial” em que as equipas da Comunidade Vida e Paz chegaram a encontrar quase 900 pessoas por noite, o número acabou por estabilizar, devido à retoma do trabalho de outras associações e à abertura dos centros de emergência, e agora anda à volta das 550. No período pré-pandemia encontravam cerca de 430 pessoas por noite.
Receio pelo que ainda vem aí

Os próximos meses são encarados com algum receio e com pouco optimismo. Com o fim das moratórias das rendas no início de Setembro, mais pessoas poderão perder as suas casas. Como alternativa, para alguns, sobrará a rua. “Chegando o Inverno, chegando alguns despejos que existirão porque as pessoas não estão a conseguir pagar a renda e nem todos terão protecção para elas — e quem diz isso diz outras dívidas —, acredito que as coisas se compliquem. Se calhar estou a ser pessimista. Espero que sim”, prevê Celestino Cunha.

Medindo o pulso a quem tem na rua a sua casa, a “insegurança” domina mais do que nunca. Se este sentimento sempre esteve presente nas suas vidas, mais intenso é agora. Anseiam pelo momento em que a carrinha chega. “A insegurança vai a estas questões mais básicas, como a água”, nota Celestino Cunha. A Comunidade Vida e Paz passou a distribuir água, que apesar de sempre ter sido uma necessidade, é agora mais difícil de alcançar por quem vive na rua. Para pedirem um copo de água num café, por exemplo, precisam de ter uma máscara, quando muitas vezes não têm uma.

Para os próximos tempos, as associações pedem mais coordenação à Câmara de Lisboa, sobretudo no que à alimentação diz respeito. No pico da pandemia a autarquia contou com o apoio das Forças Armadas na distribuição de refeições no Cais do Sodré, Santa Apolónia e Arroios. A resposta acabou por ser reestruturada em meados de Julho, passando para os Núcleos de Apoio Local (NAL) de Arroios e São Vicente porque, segundo a autarquia, muitas das pessoas que chegaram a formar filas imensas à espera de uma refeição tinham casa e, por isso, a distribuição passou a ser feita “por instituições, com trabalho local”, como as juntas de freguesia e a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.

No entanto, alerta Celestino Cunha, estas respostas estão concentradas numa zona central de Lisboa — onde existem mais pessoas em situação de sem-abrigo, é certo —, mas há “zonas periféricas da cidade onde ninguém vai”. E, por isso, pede mais coordenação ao município para estruturar as respostas que existem no terreno, porque há ainda muita gente a querer ajudar. “Nisso, o trabalho da autarquia fica muito a desejar.”