Carmo Afonso, in Expresso
Numa entrevista recente à TSF o filósofo francês Bernard-Henri Lévy, entre muitos e bons temas, falou de racismo e da luta antirracista. Afirmou que estaria sempre na primeira linha de combate ao racismo e que foi fundador da associação SOS Racismo, em França e que esse é um dos grandes orgulhos da sua vida
Esta parte da entrevista é um possível ponto de partida para uma reflexão sobre o racismo e a atual luta antirracista.
Existe um movimento antirracista com um alcance e um radicalismo sem precedentes – Black Lives Matter (BLM) – e são impressionantes os relatos do que tem conseguido junto de uma comunidade que à partida não pareceria tão sensibilizada para o tema, junto de estruturas capitalistas. Os seus ativistas, como forma de luta, entre várias ações de rua e nas plataformas digitais, partiram montras e não numa linguagem metafórica. Resultado: marcas como a Marc Jacobs, que viram as suas lojas danificadas, vieram dizer que uma vida é que não poderia ser substituída e que racismo sim é violência. Mais, contribuíiram com donativos para a causa. Este é um aspeto importante: “open your purse” ou “put their money where their mouth is”. Este movimento quer menos conversa e mais ação efectiva. Querem mudar as coisas? Façam donativos. Estão a conseguir ambos.
Parte da comunidade que sempre se colocou, mais ou menos ativamente, ao lado da luta antirracista, sobretudo brancos, contesta a virtude destas reivindicações, a sua fundamentação e sobretudo os métodos e a da forma de luta. Estas pessoas reconhecem a existência de racismo, e por isso a necessidade e pertinência da luta, mas não se reveem nos novos movimentos.
Já lá vamos.
É que existem ainda pessoas que negam a própria existência de racismo. Em Portugal esta negação não é um mero: “Ah, eu não acredito que exista racismo” mas sim um “Eu asseguro que não existe racismo”. Qual é a relevância desta diferença? É que quem assegura que não existe racismo não aceita a luta antirracista e classifica-a, não de inútil mas sim de provocatória. Quem assegura que não existe racismo silencia as vítimas, encontra justificações para comportamentos discriminatórios, tantas vezes criminosos, e abre caminho para a sua perpetuação.
Parte do grupo que assegura que não existe racismo propõe-se neste momento, por cada manifestação antirracista, ir igualmente para as ruas e dizer: o que vocês, negros, relatam e dizem sentir, não tem razão de ser.
Uma pista: se não detetas que existe racismo em Portugal, não serás negro, podes não estar atento ou podes simplesmente ser racista.
Imaginemos uma manifestação de mulheres que se dizem vítimas de violência doméstica ou que querem denunciar casos de violência doméstica que conhecem e que a resposta dos visados agressores é irem igualmente para a rua fazer a sua própria manifestação. Dirão: não existe nenhuma violência doméstica, estas mulheres que dizem existir tal coisa não merecem credibilidade.
Se essas pessoas consideram que não existe violência doméstica será então um tema que não lhes diz respeito: se não são vítimas, se não são agressores, se não reconhecem a existência de vítimas quanto mais a necessidade de as auxiliar, que papel ativista lhes resta nesta luta?
Esse ativismo é apenas uma boa concretização da sua ligação à violência doméstica. Porque quereria um homem que é contra a agressão de mulheres ir para a rua manifestar a sua indignação por existirem mulheres que afirmam que existe e que são vítimas dela? Porque entendem a verificação da existência de violência doméstica como uma afronta pessoal? Mais: como podem demonstrar que não existe?
A existência de racismo em Portugal é um facto e este artigo não é de todo sobre essa discussão.
Voltemos à entrevista, é ela que levanta a discussão que poderá persistir: será o movimento BLM um movimento extremista e ele próprio racista? Esta análise é de extrema importância pois não se pode falhar outra vez. Não se pode voltar a ignorar quem luta pela igualdade.
A luta antirracista, como outras lutas que se desenrolam há séculos - e aqui é mesmo inevitável a sua comparação com a luta feminista, com a luta dos trabalhadores e, mais recentemente, com a luta LGBTQIA+ – é a luta natural dos próprios, dos que sofrem a discriminação e de quem luta pelos direitos em causa.
Estranho seria ter um sindicato de mineiros representado pelos donos das minas. Claro que existe um papel para quem está na posição de reconhecer direitos e um papel para quem, não sendo vítima de racismo, não aceita que outros o sejam e sim estes papéis são fundamentais.
Mas recuemos:
Todas estas lutas começaram pela tentativa de reconhecimento de questões básicas e que estão ultrapassadas Alguns exemplos são o direito de voto das mulheres, o direito a férias no caso dos trabalhadores e a abolição da escravatura.
À distância parece fácil pelo nível de injustiça que estava instituído e que permitia uma violação de direitos que hoje ninguém toleraria.
Parece fácil mas não foi.
Mulheres, operários e homens negros perderam a vida na luta por direitos de elementar justiça. Existiu sempre uma oposição por parte de quem os deveria reconhecer. Uma curiosidade: se fizermos uma retrospetiva esteve sempre no topo desta cadeia o homem branco, heterossexual e abastado. É um facto e é incontornável. Ainda hoje assim é.
Adiante.
A questão é que essas lutas continuaram e os seus objetivos nunca se deram por alcançados. Mais, os seus objetivos foram ganhando ambição e à medida que isso aconteceu encontraram sempre bolsas de resistência. É como se quem o deve fazer insistisse historicamente num “já chega, o que querem mais?”
O reconhecimento de direitos exigiu sempre luta. Depois da abolição da escravatura, a comunidade branca não teve a iniciativa de considerar que somos todos iguais. Cada passo em frente foi suado, exigiu dedicação e sacrifícios, às vezes da própria vida, de muitos.
O movimento Black Lives Matter é mesmo protagonizado por ativistas negros e diz-nos que é assim que deve ser. Trata-se de um movimento coletivo e para o coletivo não existe outra alternativa que não a de ir ler e ouvir o que têm para dizer. A história ensina-nos que temos de o fazer.
Este artigo é um incentivo, pretende ser, à pesquisa e leitura do que dizem e escrevem os ativistas deste movimento, de quem pensa e trava esta luta. E porque não fazer um resumo desses conteúdos e uma análise crítica do que representam? Porque não é essa a sua vontade. Não querem ser interpretados e que a sua mensagem triunfe através de um porta-voz branco perante a comunidade branca. Há que entrar pela internet e usá-la no que tem de melhor: a disponibilização de conhecimento. Vão à fonte.
Se desse conhecimento ainda resultar uma discussão sobre a bondade deste novo ativismo, ela que tenha lugar, mas tenham presente que quem está mesmo na linha da frente não a quer ter. A violência e a morte fazem perder a paciência.
Se a discussão continuar no “existe ou não existe racismo em Portugal” então boa sorte, o racismo continuará a matar. Estar na Constituição e no Código Penal não basta. Que se afixem cartazes em todas as esquinas das cidades, em todas as escolas, em todas as esquadras de polícia, em todos os tribunais, à entrada das praias e das salas de espetáculo. Que esses cartazes mostrem as imagens do que pode causar o racismo e que diga as palavras todas. E que tenha nomes. Existe um novo: Bruno Candé.