As crianças que nascem em famílias com níveis de escolaridade e rendimentos mais baixos e com profissões menos diferenciadas têm níveis mais elevados de índice de massa corporal, de pressão arterial e de inflamação
As crianças que nascem em contextos sócio-económicos menos favorecidos apresentam já aos sete e aos dez anos alterações biológicas que indicam que estão a crescer numa trajectória de saúde mais adversa e que poderão, assim, ter um maior risco de desenvolvimento de doenças na idade adulta, indicam dois estudos do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto (ISPUP) recentemente publicados, que evidenciam a necessidade de intervir numa fase bem precoce.
Os investigadores quiseram perceber de que forma as condições socioeconómicas dos pais no altura do nascimento das crianças poderiam influenciar alguns dos seus marcadores da saúde cardiometabólica - como a pressão arterial, o perímetro da cintura e o índice de massa corporal (IMC), que são indicadores habitualmente utilizados pelos médicos para avaliar o estado de saúde cardiovascular das pessoas na idade adulta.
Os resultados são preocupantes: as crianças que nascem em famílias com níveis de escolaridade e rendimentos mais baixos e com profissões menos diferenciadas têm, já aos sete e aos dez anos, níveis mais elevados de IMC, tal como de pressão arterial sistólica e de perímetro de cintura, sintetiza Sara Soares, que é a primeira autora dos dois artigos assinados por uma equipa de investigadores do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto (ISPUP).
Para as duas investigações foi utilizada informação dos exames e análises das crianças que integram a coorte Geração XXI - um estudo longitudinal do ISPUP que segue, desde 2005, cerca de 8600 crianças que nasceram nas maternidades públicas da Área Metropolitana do Porto.
Já se sabia que as doenças cardiovasculares e os piores resultados em saúde são mais frequentes em adultos com um estatuto socioeconómico mais baixo. Mas os investigadores, no estudo intitulado Early life socioeconomic circumstances and cardiometabolic health in childhood: evidence from the Generation XXI cohort e publicado na edição de Abril da revista Psychoneuroendocrinology, quiseram ir mais longe e perceber se havia alterações na biologia logo nos primeiros anos de vida. Para este estudo foram analisados os dados de 2962 participantes no projecto Geração XXI.
Se aos sete e 10 anos este fenómeno é claro, “mesmo aos quatro anos de idade também já se verificam alterações”, destaca Sara Soares. “Estes resultados mostram-nos que o ambiente socioeconómico em que a criança nasce parece condicionar alterações biológicas já na infância. Ainda que isto não signifique necessariamente que estas crianças irão desenvolver doenças mais tarde na vida, o estudo parece evidenciar que as que nascem em contextos mais desfavorecidos podem estar a crescer numa trajectória de saúde menos favorável”, acentua.
Num segundo estudo, intitulado How do early socioeconomic circumstances impact inflammatory trajectories? Findings from Generation XXI, que vai ser publicado na edição impressa de Setembro da mesma revista, os investigadores comprovaram que as condições socioeconómicas têm igualmente impacto noutro tipo de marcadores biológicos.
Para este estudo foram avaliados os níveis de proteína C-reactiva - um marcador inflamatório indicador de risco para o desenvolvimento de doenças cardiovasculares - de 2510 crianças. E as que têm pais mais escolarizados, com profissões mais diferenciadas e rendimentos mais altos apresentaram também, neste caso aos 10 anos idade, níveis mais elevados de HDL (o chamado colesterol bom) em comparação com crianças de famílias menos favorecidas.
Níveis de inflamação elevados
Nesta investigação foi possível concluir que as crianças que nascem em famílias com condições socioeconómicas menos favorecidas apresentam níveis de inflamação mais elevados logo na primeira década de vida. Este impacto até agora apenas “tem vindo a ser demonstrado em estudos realizados em adultos”, enfatiza Sara Soares.
O estudo permitiu perceber que os níveis de proteína C reactiva vão aumentando e atingem o valor máximo aos 10 anos. Em síntese, os resultados indicam que já é possível observar em idades muito precoces alterações biológicas olhando para o contexto de adversidade socioeconómica das crianças.
Poderá este processo de inflamação ser revertido mais tarde? “Não sabemos se as crianças vão conseguir ultrapassar esta trajectória menos favorável durante a adolescência ou a idade adulta”, responde a investigadora. O que se percebe é que “o estatuto socioeconómico dos pais provoca, logo nos primeiros dez anos de vida, alterações biológicas nos filhos”, repete.
Os resultados dos dois estudos evidenciam, assim, “a importância de reduzir as desigualdades socioeconómicas para prevenir desigualdades em saúde”, enfatiza. Há uma imagem que tem sido utilizada para ilustrar o impacto das desigualdades sociais e económicas no percurso das pessoas: as crianças que nascem em famílias mais desfavorecidas partem já atrás das outras na “corrida” ao longo da vida.
Só uma sociedade “mais igualitária ajudará a ultrapassar as desigualdades em saúde que se iniciam e manifestam bem cedo”, defende a investigadora, para quem esta estratégia terá que ser definida pelos políticos, mas poderá passar, eventualmente, pelo “aumento da escolaridade obrigatória, dos rendimentos e dos apoios à família”. Esta intervenção, conclui, “deve acontecer numa fase precoce, é necessário garantir que todas as crianças têm bom um início de vida para reduzir as desigualdades em saúde”.