22.8.20

“A varanda que me deram como quarto já não existe”: reportagem na rua que se tornou casa das quenianas escravas no Líbano

Ana França, in Expresso

É uma realidade de milhares de trabalhadoras domésticas no Líbano: chegam principalmente de África para trabalharem como empregadas domésticas e amas em casas de famílias libanesas, mas rapidamente se deparam com uma vida de escravas. Os seus passaportes estão nas mãos de quem lhes patrocinou o visto de trabalho até que cumpram o contrato, mas muitas fogem antes de isso. Dormem em varandas, banheiras, no chão, em armários, comem a comida que os patrões rejeitam. Há meses que não recebem salário. Com a explosão até as "madames" ficaram sem casa e a situação destas mulheres é feita só de desespero e urgência de regressar a casa. "Passo fome aqui, passo fome lá, lá passo fome com os meus"

A rua do consulado do Quénia em Beirute, no bairro de Badaro, está encerrada ao trânsito. A polícia tem um jipe em cada ponta e só deixa passar peões. Estes poucos metros são agora a casa de cerca de 30 mulheres quenianas que ficaram sem trabalho e sem casa durante este ano negro. “Queremos ir para casa, queremos ir para casa”, gritam de tempos a tempos, enquanto sobram uns apitos estridentes. Os clientes que estão nos cafés aqui à volta viram-se para olhar, os carros param e perguntam à polícia o que se passa.

Os colchões velhos e manchados alinham-se no passeio e à frente de cada um há uma pequena mala com os pertences da mulher que o ocupa. Um lençol pendurado na parte de baixo de uma varanda é toda a privacidade. Como elas há milhares de trabalhadoras migrantes cujos destinos estão presos a quem lhes patrocinou os vistos de trabalho, um sistema conhecido por “kafala”, que efetivamente legitima a servitude no Líbano. “O meu quarto era numa varanda, uma varanda, no inverno e tudo, e agora está completamente destruída. Eu estava no quarto do fundo, a limpar, se não tinha morrido [na explosão], claro, não resta nada da parte da frente do prédio da madame”, conta ao Expresso Esther Melobe, de 21 anos. Chegou-lhe um ano para entender que não quer mais viver aqui. “Há seis meses que não me pagavam, eu só estou aqui há um ano e desde fevereiro que não envio nem um dólar ao meu filho, que está com os meus pais num apartamento perto de Mombassa. Era eu que pagava a renda. Agora estão a ser ameaçados de despejo todos os dias e eu prefiro estar lá com eles. Passo fome aqui, passo fome lá, lá passo fome com os meus".

O primeiro impacto foi a crise económica que estourou em outubro e fez desvalorizar a libra libanesa em mais de 70% - ao mesmo tempo que os bens de primeira necessidade saltaram para valores 50% mais altos. Muitas destas mulheres foram despedidas aí e tiveram de sobreviver da caridade de organizações não governamentais, alugando apartamentos onde chegam a viver 40. Outras ficaram a trabalhar em troca apenas de alojamento, sem salário. Depois veio a pandemia e as famílias que as mantinham como empregadas internas reduziram despesas despedindo o pessoal. E agora, com a explosão, as poucas que ainda tinham onde viver, mesmo sem serem pagas há meses, ficaram sem casa, tal como os patrões. Esther pede-nos um saco de plástico grande para colocar as roupas que tem feitas num novelo ao canto de um dos colchões, onde agora dorme à espera de um bilhete para casa. “A minha senhora empurrou-me para fora de casa e atirou as minhas roupas para o meio da rua, tive de andar a apanhar as minhas coisas na rua mas não encontrei tudo, estava tudo destruído”, explica a queniana, empurrando o ar à sua frente para explicar como lhe fizeram.

Há pelo menos 250 mil trabalhadoras migrantes no Líbano, principalmente de países africanos como a Etiópia e o Quénia mas também de países asiáticos, muitas do Bangladesh. Nenhuma das mulheres aqui em protesto tem um passaporte, e são as organizações não-governamentais que estão a tentar resolver o problema mas para isso é preciso que as pessoas que detêm os direitos sobre estas mulheres assinem um papel a libertá-las. “Quando eu cheguei ao aeroporto a minha dona foi buscar-me, com o visto, e o guarda carimbou o passaporte e deu-lho diretamente a ela. Não adianta ter alguém que me pague o voo se não tenho forma de sair daqui”, conta Rosemary Nyambura, queniana de 25 anos que veio para o Líbano há seis anos. Essa é a grande frustração destas mulheres que lutam agora por uma quebra compulsiva dos seus contratos e por um salvo-conduto. O Diretório Geral de Segurança do Líbano já confirmou que está a tratar do caso destas mulheres mas até agora ainda não obtiveram qualquer resposta e estão há 15 dias aqui reunidas.


"Eles desapareceram"

“No início ainda ganhava algum dinheiro. E até tive numa casa de uma família que não me tratava mal, depois regressei ao Quénia em 2016 mas como não tinha forma de sustentar o meu filho regressei no fim de 2017. Desde aí tem sido uma vida horrível. Na última casa onde estive dormia na casa de banho mais pequena da casa, na banheira, e por vezes batiam-me porque não sabia ainda fazer algumas das comidas.” Quando o Líbano fechou por causa da pandemia, a família para a qual Rosemary Nyambura trabalhava deixou-a em casa sozinha. “Eles desapareceram, eu não tinha ordenado desde a crise de outubro, então fugi para a rua, a sério, desesperada, não conhecia sequer a rua onde estava.” Mas fugir é ilegal para estas mulheres. Se a dona do passaporte de Rosemary tivesse feito queixa à polícia, a jovem seria presa e obrigada a regressar. “Agradeço a Deus todos os dias que ela não queira saber de mim.” Desde os primeiros dias de abril que tem vivido em casas partilhadas ou em albergues de associações que se dedicam a ajudar estas mulheres. Tem um filho de oito anos numa aldeia perto de Nairóbi, a mãe tem 60 anos e é diabética: “Ela diz que uma clínica ambulante tem ido lá dar os medicamentos mas eu sei que ela me está a mentir porque o meu filho me diz que avó chora. Só quero um bilhete para voltar”.

O consulado não está a ajudar. A CNN investigou durante vários meses as atividades do cônsul queniano, Sayed Chalouhi, e do seu assistente, Kassem Jaber, ambos libaneses e as alegadas teias de corrupção montadas com o dinheiro destas mulheres. Chalouhi não quis falar para a reportagem da CNN - e ninguém atendeu do consulado quando o Expresso ligou - mas Jaber garantiu à cadeia de televisão norte-americana que as mulheres não são de forma alguma maltratadas nem lhes são pedidos valores exorbitantes por qualquer serviço consular. Até se ofereceu para mostrar as câmaras de segurança, apenas não para o dia específico sobre o qual a CNN tinha recebido a denúncia de uma mulher. “Todas nós já tínhamos vindo aqui antes pedir a dissolução dos contratos mas a cada vez ele dizia para irmos trabalhando, para termos paciência que ele estava a tentar negociar com as madames o fim do contrato. Ao mesmo tempo ia ficando com o pouco dinheiro que elas nos iam pagando, com a desculpa de que estava a guardá-lo para os nossos bilhetes de regresso. A cada vez que lhe ligava ele dizia que eram mais 250 dólares, ou mais 300 ou mais 500”, diz Rosemary.

“Abriu a porta do carro e deixou-me aqui”

“Estou no Líbano há um ano e há seis sem receber”, diz Milceh Koeich, queniana de 25 anos. A casa onde vivia ficou danificada com a explosão e então a mulher para quem trabalhava veio aqui trazê-la. “Abriu a porta e atirou-me para aqui e acelerou”, conta a jovem. “Ela comprava comida diferente para mim, uma pão seco, uma fatia de queijo às vezes e água e quando não havia esse pão eu tinha de esperar que eles acabassem de comer para ir ao lixo buscar o resto. Ninguém faz ideia do que é ser empregada doméstica neste país.” Como as outras mulheres com quem falámos, tem um filho de sete anos no Quénia e não quer tentar encontrar um outro emprego aqui. “Com a covid as pessoas deixaram de nos dar aqueles trabalhos diários de limpeza que pagavam o suficiente para comermos qualquer coisa ao longo da semana, e então agora com a explosão acabou mesmo tudo, os hotéis e restaurantes onde podíamos limpar ou fecharam ou não têm clientes.”

A violência sofrida por estas mulheres é comum e, para muitas, insustentável. A organização de ajuda This is Lebanon, que tem vindo a documentar as vidas destas mulheres, estima que pelo menos uma por semana decida acabar com o sofrimento pondo fim à própria vida. A Amnistia Internacional descreve o sistema “kafala” como “um sistema de imigração patrocinada inerentemente abusivo, que aumenta muito o risco de exploração laboral destas mulheres, o trabalho forçado e o tráfico de seres humanos”. A prática é contudo bastante comum por todo o Médio Oriente.

Catherine, mais uma das mulheres em protesto, tem medo de dar o último nome porque já se envolveu em confrontos com o pessoal consular e não quer perder a oportunidade de ir para casa, de ser excluída. Como 31 anos, já não vive em casa dos seus donos, vive num quarto partilhado com uma amiga queniana que também fugiu de casa. Ambas querem juntar dinheiro para pagar o que resta do seus contratos mas é impossível encontrar trabalho depois desta explosão.

Catherine esteve a viver na casa da mulher que patrocinou o seu visto apenas algumas semanas, depois disso foi enviada para casa do irmão da sua patroa, um homem com 52 anos que por diversas vezes tentou violá-la. Ela nunca deixou porque era mais forte do que ele e passou a andar com uma faca amarrada ao tornozelo mas também nunca pôde ir embora. “Sem permissão da minha madame não podia sair de casa dele, era ali que ela me queria e num dia em que o foi visitar ainda me perguntou se me custava alguma coisa dormir com ele. Perguntei se ela estava maluca e ela bateu-me com o sapato e com a mala.” Um dia pegou no pouco que tinha, colocou tudo em sacos de plástico pretos e disse ao homem com quem tinha de viver que ia despejar o lixo. Nunca mais voltou mas está em quebra de contrato e por isso o consulado pede-lhe 1200 dólares (cerca de mil euros) para pagar os prejuízos da "madame". “Eu nem sempre tenho o que comer, como é que vou juntar 1200 dólares neste país onde os salários até de um médico ou de um polícia estão perto dos 250 dólares por mês?”

Catherine tem um filho aqui, diz que o pai não quer ter contacto com ela nem com David, a criança - que tem seis anos. Quer voltar para o Quénia mas por um lado tem medo do que possa acontecer quando chegar. Como Esther Melobe, era Catherine quem pagava a renda onde a mãe idosa vive com as duas meninas que tem em Maragua, no sul do Quénia, mas como deixou de pagar - apenas promete e adia, promete e adia - tem pesadelos com o senhorio a retirá-los todos à força de casa. “Enquanto eu estiver aqui ele ainda vai pensando que a situação pode melhorar, que eu estou a juntar dinheiro, que eventualmente vou enviar. Se eu voltar e ele me vir pode ser muito pior para a minha família.”

A primeira coisa que se vê quando se acede à página do consulado do Quénia em Beirute é um grande quadrado amarelo com letras vermelhas a anunciar o esforço de repatriamento a ser empreendido por esta dependência mas as mulheres dizem que, se depender do cônsul, nada vai acontecer. Têm de ser os vários países que vieram ajudar o Líbano por causa da explosão a pressionar as autoridades para que o caso delas não fique esquecido. “O dinheiro que aquele tipo faz com o nosso desespero, da nossa vontade de regressar, é tanto que é pouco provável que nos liberte. Tem de ser muito acima dele, têm de ser vocês na Europa”, intervém Milceh Koeich, que vai distribuindo as fraldas, leite em pó e comida que as pessoas que passam vão deixando para estas mulheres. “É melhor aqui do que em casa da madame.”