O caso remonta ao último sábado quando nacionalistas se reuniram no exterior da associação antirracista, em Lisboa, com máscaras brancas e tochas em punho. A SOS Racismo está a ultimar uma queixa a apresentar ao Ministério Público. Mas o que diz a lei sobre o que aconteceu - a Constituição foi violada? Mamadou Ba, da SOS Racismo, diz que recebeu a 6 de agosto um email a anunciar “a formação de uma nova milícia de extrema-direita que se iria encarregar do seguinte: sempre que um nacionalista fosse preso um antirracista seria morto”
Um grupo de nacionalistas da autodenominada ‘Resistência Nacional’ reuniu-se no último sábado junto à sede da SOS Racismo, em Lisboa, com máscaras brancas a cobrir-lhes o rosto e munidos de tochas. A SOS Racismo descreve a ação como uma “parada Ku Klux Klan” e os seus juristas estão a preparar uma queixa para apresentar ao Ministério Público por ameaças à integridade física, ofensas morais, danos patrimoniais e incitamento ao ódio e à violência. “Não me apanharam na sede porque aquilo foi à noite. Mas a vizinhança relata que não só fizeram a parada como entoaram ameaças e cânticos racistas, nomeadamente dirigidos a mim e à SOS Racismo”, conta ao Expresso o dirigente Mamadou Ba.
O objetivo da ação dos nacionalistas era protestar contra o “racismo antinacional” e prestar “homenagem aos polícias mortos em serviço”, segundo o que o grupo anunciou na sua página de Facebook, acrescentando: “A sede da SOS Racismo recebeu hoje uma visita nossa”. A ação foi o corolário de uma série de outros episódios descritos por Mamadou Ba como “ameaças diretas”. Na noite de 17 para 18 de julho, recorda, a fachada da sede foi “pichada” com a inscrição ‘Guerra aos Inimigos da Minha Terra’, uma inscrição “muito parecida com as que apareceram um mês antes noutras zonas da Área Metropolitana de Lisboa, com ameaças racistas e explícitas de morte”.
A 6 de agosto, prossegue o dirigente, a associação recebeu um email a anunciar “a formação de uma nova milícia de extrema-direita que se iria encarregar do seguinte: sempre que um nacionalista fosse preso um antirracista seria morto e sempre que um nacionalista fosse morto dezenas de estrangeiros seriam mortos”. O email, entretanto “descontinuado”, garantia que “o medo mudaria de lado”, ou seja, que “o medo passaria a estar do lado dos antirracistas”. Dois dias depois do primeiro email deu-se a “parada Ku Klux Klan”, uma designação que a ‘Resistência Nacional’ rejeita.
“Não foi nenhuma manifestação nem nenhuma ‘parada do KKK [Ku Klux Klan]’, mas sim uma vigília em honra das forças de segurança mortas em serviço e para protestar contra o racismo antinacional”, escreveu o grupo no Facebook. De acordo com o jornal “Público”, a ‘Resistência Nacional’ inclui elementos da Nova Ordem Social, criada e suspensa por Mário Machado, dos Portugal Hammer Skins, do núcleo de adeptos 1143, afeto ao Sporting, do Partido Nacional Renovador e ainda do Chega, partido do deputado André Ventura.
“Estas manifestações não gozam da proteção da Constituição”
Questionado sobre se a “vigília” poderá ter respaldo constitucional, o constitucionalista Jónatas Machado é taxativo. “A minha opinião é que esse tipo de manifestações não goza da proteção da Constituição. Ao contrário dos EUA, na Europa enfatizamos mais o valor da igual dignidade da pessoa humana e portanto somos mais restritivos a um discurso que é claramente de incitamento ao ódio, à violência, à desumanização, à humilhação e que é contrário à igualdade de toda a pessoa humana”, declara ao Expresso.
“A Constituição também deve ser interpretada em função dos compromissos internacionais que assumimos e dos direitos humanos”, prossegue Jónatas Machado. “Desde a Convenção sobre o Genocídio, passando pela Declaração Universal dos Direitos do Homem, pelo Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, pela Convenção Europeia dos Direitos do Homem, entre outros, há sempre um princípio de igual dignidade e uma proibição geral de um discurso claramente racista e que visa humilhar e desumanizar as pessoas, degradar o seu igual estatuto cívico e político em função designadamente da quantidade de melanina que a sua pele produz”, sublinha.
O constitucionalista defende o direito de as pessoas discutirem “questões como a imigração”, por exemplo, mas afirma que “devem fazê-lo sempre no respeito por princípios fundamentais de igual dignidade da pessoa humana”. Daí que a ação do último sábado seja, na sua opinião, “um absurdo” que não pode apoiar-se “numa Constituição que quis precisamente acabar com todas as formas de opressão e que se manifesta claramente no sentido da igual dignidade”. “No fundo, os direitos de liberdade são também direitos de igual liberdade e de igual dignidade. Esses são os pilares da Constituição que não podem ser postos em causa”, remata.
“O direito à manifestação não é um direito ilimitado”
Paulo Otero, constitucionalista e professor catedrático de Direito, tem uma interpretação idêntica do artigo 45.º da Constituição, que refere que “os cidadãos têm o direito de se reunir, pacificamente e sem armas, mesmo em lugares abertos ao público, sem necessidade de qualquer autorização”. “O direito à manifestação pressupõe uma série de formalidades, incluindo informar as autoridades administrativas de que a manifestação vai ser feita”, explica ao Expresso.
Neste caso, a Câmara Municipal de Lisboa devia ter sido informada pela organização do protesto de que este iria acontecer. O Expresso tentou confirmar se a autarquia foi ou não informada mas, até ao fecho deste texto, não obteve qualquer resposta. E depois, realça o constitucionalista, “há regras que têm de ser cumpridas” e que, caso não sejam, podem incorrer em ilícitos administrativos (por exemplo, caso a autarquia não tenha sido informada) ou ilícitos criminais. “Se há ameaças, se há violência ou se há ameaça de violência, isso pode ser um ilícito criminal”, diz Paulo Otero. “O direito à manifestação não é um direito ilimitado.”
Ao que o Expresso apurou, uma manifestação com estas características é normalmente encarada como qualquer outra forma de protesto. Porém, as autoridades mantêm-se mais atentas pela possibilidade de associação a movimentos extremistas e à divulgação de mensagens de ódio.
“Não queremos mártires. Os mártires não resolvem o problema”
A SOS Racismo pretende apresentar queixa ao Ministério Público “o quanto antes porque a situação é demasiado grave para perdermos tempo”. “O tempo corre contra nós. A escalada já é de um outro nível. Temos interesse em que a queixa entre o mais rapidamente possível para que as autoridades possam ter suporte para intervir e para a responsabilidade passar para quem de direito. Quem tem de investigar e atuar é o Estado, não somos nós”, frisa Mamadou Ba. O dirigente assume que a associação tem tomado medidas para “garantir o mínimo de segurança dos ativistas”.
“Há uma consciência de que pode acontecer algo imprevisível a qualquer momento porque o nível de acrimónia e de ódio que se nota não apenas nas redes sociais, mas inclusive no debate público, merece que tenhamos o máximo de cuidado”, acrescenta. No entanto, reconhece que as “cautelas” que têm adotado não garantem “absolutamente nada”. “Não somos polícias, não podemos policiar terroristas que nos queiram fazer mal. Não queremos mártires. Os mártires não resolvem o problema”, defende.
Ainda assim, Mamadou Ba diz que a SOS Racismo terá de “conviver com isto”. “São também os riscos inerentes àquilo que fazemos. Não há outra maneira de lidar com isto senão esta: informar as autoridades sempre que aconteçam coisas como estas e esperar que as autoridades façam o seu trabalho de apertar a vigilância e a repressão de grupos terroristas que estão a emergir agora com mais força”, junta. Mas o dirigente espera igualmente que “a consciência coletiva ganhe maior dimensão porque isto também é uma forma de segurança para todos nós”. “Quanto maior consciência coletiva sobre a ameaça que representa a extrema-direita, mais protegidos estaremos todos”, conclui.