10.8.20

Idosos sozinhos à espera de reabertura de centros de dia. “Se estou triste? Estou. Isto anda muito difícil”

Ana Cristina Pereira (texto), Paulo Pimenta (fotos), in Público on-line

Centros de dia preparam-se para começar a abrir a partir de dia 15. No Centro Social de São Martinho de Aldoar, no Porto, como em muitos outros, houve um esforço para domiciliar os serviços mais básicos, mas isso não apagou os efeitos do isolamento prolongado.

Rosário Abreu não vê a hora de voltar ao centro de dia. Pode estar dias inteirinhos sem trocar uma palavra a não ser com o funcionário que lhe traz a comida que leva à boca. É assim há quase cinco meses. “Sou muito pouco de ir à rua”, diz, numa voz vagarosa e profunda. “Sou muito caseira. Limpo a minha casinha. Trato da minha pessoa também. Faço um bocadinho de croché. Penso muito.”

Uma enorme imagem de Maria parece guardar a entrada no pequeno apartamento térreo, no bairro das Campinas, na zona Ocidental do Porto. À esquerda, o quarto limpo e arrumado. À direita, a sala. No armário, molduras com fotografias de filhos e netos sorridentes e bem vestidos. Na mesa, folhas espalhadas. Conforme vai pagando as contas que lhe vão chegando, vai estendendo os papéis ali, para se lembrar que aquelas estão despachadas.

O silêncio pode tornar-se ensurdecedor. Estão longe os filhos desta mulher de 71 anos, que viveu grande parte da vida na Venezuela. Mora um filho na ilha da Madeira, uma filha em Madrid e outro filho nos arredores dessa cidade espanhola. E cada um é capaz de estar sem lhe telefonar uma, duas, três semanas. Por vezes, ainda pergunta à filha: “Porque não chamas?” “Porque sei que estás bem”, responde-lhe.

“Tive uma depressão muito grande”, revela, convidando quem chega a sentar-se nas cadeiras que rodeiam a mesa. “Fiquei muito mal. Ainda estou lutando contra isso. Devo ao centro a minha saúde. Foi muito bom para mim entrar nessa casa. As senhoras falam. A gente vê as senhoras a falar. Falamos de tudo um bocadinho – do nosso passado, da nossa juventude. Cantamos. Brincamos umas com as outras. Às vezes, até nos arreliamos. Mas é muito bom.”

Há quem esteja sentado, para ali, a cabecear em frente ao televisor, mas há muito que fazer no Centro Social de São Martinho de Aldoar - ginástica, sessões de cinema, de discos pedidos ou de leitura, culinária, pintura, oficina motora, actividades de estimulação cognitiva, festas temáticas e muita conversa. Privada disso tudo, de volta aos dias vazios, sempre iguais, Rosário sente-se a murchar por dentro. “As profissionais que trabalham lá, passo a passo, vêm aqui a casa trazer a comida. Mas tenho muitas saudades delas...”
“Acomodação aprendida”

Será a última resposta social a abrir. Retomarão o funcionamento a partir de dia 15 deste mês, conforme consigam cumprir as medidas de prevenção e controlo definidas pela Direcção-Geral de Saúde. Não será um alívio apenas para Rosário. “Para muitos idosos, sobretudo os mais pobres, menos diferenciados culturalmente e com redes sociais mais débeis, é a única oportunidade de estarem com outro ser humano”, sublinha António Fonseca, professor da Faculdade de Educação e Psicologia da Universidade Católica Portuguesa especializado em envelhecimento.

A sociedade portuguesa está cada vez mais envelhecida. As estimativas do Eurostat apontam para 512 mil idosos a viver sozinhos em Portugal em 2019. São mulheres, sobretudo (417 mil). Um número que “não surpreende” António Fonseca. “Nos censos de 2011, já havia 400 mil idosos a viver sozinhos e 804 mil exclusivamente com outros idosos.”

Cada um ao seu modo tem enfrentado dificuldades acrescidas no seu quotidiano. Os mais dependentes inspiram maior preocupação. Nem todos têm familiares ou amigos que assumam alguns cuidados. E nem todos os centros de dia domiciliaram os serviços essenciais desde que fecharam as portas, no dia 16 de Março (embora esteja prevista desde o dia 3 de Abril uma majoração da comparticipação da Segurança Social para esse efeito). Mesmo que o tenham feito, sublinha António Fonseca, não retiravam as pessoas da solidão. O serviço domiciliário é quase sempre limitado a tarefas instrumentais, como a limpeza, a higiene ou a alimentação. Desempenhada a tarefa, a pessoa fica para ali, sozinha.

Há um antes e um depois da chegada da pandemia. Antes, quem podia saía de casa, dava as suas voltinhas. Depois, o medo de contágio alastrou-se até aos mais autónomos – se não se fecharam em casa, não lhes terá faltado pressão para o fazer. “Correr alguns riscos é essencial”, avisa António Fonseca. Isso é evidente na infância. “A cerca altura, uma criança tem de atravessar a rua sozinha. Se não correr riscos, não se desenvolve.” Nas idades mais avançadas, também. “Se não correr alguns riscos, perde independência.” O psicólogo fala em “acomodação aprendida”. “A pessoa habitua-se a estar em casa. Tem menos vontade de sair, faz menos esforço para sair, arranja justificações para não sair. E a solidão, em idades mais avançadas, é um potenciador de sintomas depressivos, o que leva a um pior funcionamento cognitivo.”
Um ou dois banhos por semana

O Centro Social de São Martinho de Aldoar terá de ponderar a reabertura com a Segurança Social e a autoridade de saúde local. Como qualquer instituição que tem um centro de dia acoplado a um lar. Quanto mais tempo passa mais a directora técnica do centro de dia, Sofia Monteiro, nota os efeitos do encerramento daquela resposta. “Ou por não terem um acompanhamento tão grande, mesmo na toma de medicações, ou por estarem mais parados, têm menos mobilidade.” Vários sofreram quedas. Uns já tornaram a casa, “embora mais debilitados”, mas há quem tenha ficado no hospital, à espera de vaga num lar.

Sofia Monteiro dá dois exemplos: “Uma senhora caiu, partiu a bacia. Apesar de ter um sobrinho que lhe dava algum apoio, o hospital assumiu que ela não podia continuar a viver sozinha. O sobrinho encontrou uma vaga num lar. Um senhor diabético tinha sido operado para tirar um dedo de um pé, já era muito dependente, já ia ao centro de dia de cadeira de rodas, caiu em casa, abriu a cabeça, está no hospital a aguardar vaga num lar.”

Numa destas manhãs, Rosa da Conceição caiu e ficou no chão à espera que um dos funcionários do centro viesse trazer-lhe a alimentação, abrisse a porta, a visse ali e a ajudasse a levantar-se. A mulher de 85 anos tem duas filhas a morar perto, mas ambas trabalham. “Quando vêm de trabalhar, vêm aqui. Se for preciso fazer alguma coisa, fazem. A mais velha limpa-me a casa de 15 em 15 dias.”

Antes das 12h, um funcionário chega à sua casa com a marmita.

– Bom dia – diz Ângelo Torres, um funcionário ainda jovem que ela viu crescer.

Imagem seguinte Paulo Pimenta

– Entre, se faz favor.

– Então, dona Rosa, tudo bem?

– Tudo bem.

– Vou pôr aqui no microondas.

Não se põe na conversa. É só o tempo de passar para um recipiente o rancho à portuguesa, que naquele dia lhe servirá de almoço, e para outro a sopa, que ela guardará para o jantar. E de deixar o reforço, como faz a qualquer utente do centro de dia. Um leite e um pão ou umas bolachas para o pequeno-almoço e o lanche.

– Até amanhã, dona Rosa.

– Até amanhã.

Há muito que fazer. As duas equipas distribuem as refeições por 30 utentes do centro de dia e 23 do serviço de apoio domiciliário.

Do Centro Social de São Martinho de Aldoar também tem vindo uma equipa ajudar Rosa da Conceição a tomar banho duas vezes por semana. Foi o que ela pediu. “Não quero mais, porque não tenho esterco. Não faço nada. Sou uma senhora aqui.”

Mesmo no prédio em frente, mora Alfredo Soares, que recebe um banho semanal e comida diária. Não quer mais banhos e come tudo ao almoço. “Ele tem problemas de cabeça”, explica Esmeralda Mateus, presidente da Associação de Moradores do Bairro de Aldoar, que lhe oferece lanche e jantar. Já começou a estragar o apartamento, como fazia antes de frequentar o centro de dia. Arrancou as portas do armário, o cilindro, o fogão... “Tenho de o levar para a sede da associação, se não estraga tudo. Não pode estar fechado em casa.”

Rosa da Conceição costuma vê-lo. Esforça-se para sair. À tarde, devagar, devagarinho, caminha até à associação. Está “cheia” da pandemia. “Nunca mais acaba!”, exclama. “Vou fazendo o que eu sei para não parar. Mas já não adianta nada. Melhor era ir para aquele sítio. Já não me importo nada de ir. Se estou triste? Estou. Isto anda muito difícil. Para as pessoas doentes que estão sozinhas, ainda pior.”