O Instituto de Apoio à Criança juntou-se ao coro de críticas à medida que prevê o isolamento por 14 dias das crianças e jovens retirados às famílias. Quem conhece o terreno não tem dúvidas: “A directora-geral de Saúde está a ser inflexível porque não conhece a realidade.”
Multiplicam-se as vozes contra a orientação da Direcção-Geral da Saúde que ordena o isolamento de crianças em perigo retiradas às famílias e acolhidas em instituições, mesmo com um teste negativo à covid-19.
Ana Perdigão, coordenadora do Serviço Jurídico do Instituto de Apoio à Criança, usa a palavra “brutal”. “Já basta a retirada”, começa por dizer, sublinhando a importância dos primeiros dias para a equipa fazer a criança sentir-se bem-vinda, acolhida, segura. “É suposto o acolhimento atenuar a retirada, não agredir mais.” Estranha que não se tenha em conta a idade das crianças. “Para as crianças de tenra idade, isso é o quarto escuro. Parece que cometeram um crime.”
No seu entender, só há duas hipóteses: “Ou se altera a norma ou se encontra uma forma de a amaciar, uma situação intermédia.” Esta passaria por ter um apartamento ou outro espaço em que a criança pudesse ficar aqueles primeiros dias, não sozinha, mas acompanhada em permanência por um adulto. “Há que encontrar uma forma de conciliar o superior interesse da criança com a saúde pública.”
Desde que a notícia veio a público, na terça-feira, Sónia Rodrigues, supervisora de casas de acolhimento e co-fundadora da AjudAjudar, a associação que apresentou queixa à Provedoria de Justiça, desdobra-se para responder a todas as solicitações. “Sinto um enorme apoio das pessoas que trabalham nas casas de acolhimento”, diz. “Agradecem por alguém estar a falar neste assunto.”
A orientação técnica 009/2020 está a suscitar interpretações diversas. Há quem acolha apenas o ponto 10, que explica como isolar crianças e jovens no momento da admissão numa casa de acolhimento. E quem acolha todos os outros, o que implica sujeitar a isolamento de 14 dias quem sai de casa um momento, para ir ao médico, ou mais de 24 horas, para férias. E proibir actividades em grupo.
Na conferência de imprensa da DGS de quarta-feira essa dúvida não foi mencionada, mas ficou claro que não importa a idade ou o quadro clínico, mas a coabitação. “Estamos a rever a norma no sentido de perceber se há neste momento estudos ou evidência que permitam reduzir este período [de 14 dias]”, disse a directora geral de Saúde, Graça Freitas. Se não houver, “esta regra não se poderá alterar”. Só as condições de isolamento.
Sónia Rodrigues ouviu a directora-geral da Saúde dizer que “isolar não é abandonar”. E reconhece que "as crianças não ficam abandonadas no sentido em que os cuidadores vão lá, preocupam-se com elas, dão-lhes de comer”. Lembra, todavia, que as estruturas estão pensadas para funcionar com crianças que passam o dia nas aulas. “Temos casas com 20 crianças e dois cuidadores por turno”, salienta. “Não pode estar um com 19 e outro com uma. Vai lá de vez em quando.”
“A directora-geral de Saúde está a ser inflexível porque não conhece a realidade”, comenta Sónia Rodrigues. “Não dá para fazer normas sem conhecer a realidade.” E a das casas de acolhimento, salienta, em nada se compara à dos lares de idosos.
A Provedoria de Justiça considerou a queixa entregue pela AjudAjudar matéria urgente. A Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Protecção das Crianças e Jovens sugeriu que se alterasse a orientação técnica. E o Instituto de Segurança Social (ISS) informou que estava a revê-la, o que criou alguma expectativa. Em Maio, a DGS também equiparou casas de acolhimento de crianças e jovens e a lares de idosos, o que restringia o regime de visitas e impedia as saídas. E o ISS actualizou o Plano de Excepção para permitir que saíssem para lazer, aulas, convívios com familiares. Em Julho, saiu esta norma que faz tudo voltar atrás.
Portugal conta 393 casas. De acordo com o Relatório de Caracterização Anual da Situação de Acolhimento 2018, cada uma tem em média 16,5 crianças e e jovens. Juntas acolhiam 6832, o que correspondia a 97,2% das crianças e jovens retirados à família por negligência grave, mau trato físico e/ou abuso sexual a cargo do sistema de protecção (nas famílias de acolhimento estavam apenas 200). No conjunto, 1.969 tinham entre zero e 11 anos.
Há casas pequenas, médias e grandes. Na sua investigação sobre acolhimento residencial, Sónia Rodrigues concluiu que mais de metade destas crianças e jovens vivem em casas grandes, isto é, com lotação para 24 ou mais. Muitos são casarões que a lei manda funcionar em pequenas unidades, recriando a ideia de casa/família. A maior parte dos quartos aloja três crianças. O espaço de isolamento será limitado.
A percepção de João Pedro Gaspar, mentor da Plataforma PAJE - Apoio a Jovens (Ex)acolhidos, em contacto com diversas casas, é que houve um esforço das instituições para entreter. Algumas montaram piscinas amovíeis, organizam saídas para praias menos concorridas ou passeios na natureza. Os que foram de férias estão a regressar. E as casas perguntam-se como é que o seu isolamento poderá ser feito. Não é suposto ficarem juntos, a menos que sejam da mesma família e venham da mesma casa.
Como outros fundadores da AjudAjudar, João Pedro Gaspar inquieta-se com o início do ano lectivo. “Foram sendo ventiladas hipóteses para alunos de risco, por doenças, ou a viver com alguém de risco. Compreendo que esses fiquem no ensino à distância. Não quero acreditar que estes sejam metidos no mesmo saco.” Teme que assim seja. “Quisemos avançar com uma queixa para a Provedoria de Justiça também para prevenir que possam ter essa ideia peregrina.”
Na queixa à Provedoria de Justiça, a comissão instaladora da AjudAjudar lembra que no regresso às aulas aquelas crianças conviverão com outras, “que residem com os seus familiares e não foram sujeitas a quaisquer medidas de isolamento”. E perguntam: “A convivência com um número significativo de pessoas só constitui um risco justificativo das referidas medidas de isolamento na casa de acolhimento ou também o constitui na escola?”
A pergunta deriva de um medo: “O que nos parece estar implicitamente subjacente à obrigação de isolamento das crianças/ jovens acolhidos que se ausentem da instituição, por exemplo, para obtenção de tratamento médico é, na verdade, a vontade de isolar por completo tais crianças/ jovens do exterior da Instituição, ou seja, da comunidade, impedindo-as de assistirem presencialmente às aulas.”
“Quem está a sofrer mais com isto são as crianças mais bem comportadas”, afiança Sónia Rodrigues. Algumas das mais crescidas e rebeldes fogem. “O que podem fazer as casas?”, pergunta. “Fechá-los à chave? Estes miúdos não estão presos. Não percebem a imposição de isolamento com teste negativo. Uma coisa é quando estão doentes, outra coisa é quando não estão. Eles sabem que os outros miúdos andam na rua.”
Para já, não há mais comentários do Governo. A ministra da Presidência, Mariana Vieira da Silva, na conferência de imprensa desta quinta-feira, limitou-se a reiterar que “o Ministério da Segurança Social está a trabalhar sobre essas normas em concreto”. “Não devemos fazer comentários às normas da DGS. Se elas existem, devem ser respeitadas.”