11.8.20

Provedora: Segurança Social nega apoios com base em condição que não existe na lei

Pedro Crisóstomo, in Público on-line
 
Para atribuir apoio à quebra de actividade, organismo exige condição que não está nas regras. Provedora de Justiça diz que a Segurança Social está a tomar “inusitadas decisões” sem explicar os fundamentos.

A equipa da Provedora de Justiça, Maria Lúcia Amaral, escreveu em Julho ao presidente do Instituto da Segurança Social, Rui Fiolhais, a chamar a atenção para o facto de o organismo estar a indeferir apoios a trabalhadores independentes que enfrentam quebra na actividade sem explicar os fundamentos exactos que determinaram a exclusão. Nalguns casos, a Segurança Social está a exigir o cumprimento de um requisito que não está previsto na lei (ter pago a contribuição social no mês anterior ao mês da quebra), podendo essa ser a causa de algumas dessas exclusões.

Num ofício enviado já a 10 de Julho ao responsável máximo do Instituto da Segurança Social, a que o PÚBLICO teve acesso, o provedor-adjunto Joaquim Cardoso da Costa alertava que, apesar de o site da Segurança Social referir que o apoio “depende ainda da existência de obrigação contributiva no mês imediatamente anterior ao mês do impedimento para o exercício da actividade”, a verdade é que “essa condição não resulta da lei” e, por isso, não pode ser razão para se não atribuir o apoio.

Um mês depois do aviso, essa informação continua a aparecer no site do instituto, embora, como lembre a Provedoria de Justiça, “não está prevista qualquer norma nesse sentido” no diploma que criou este apoio extraordinário, pois no artigo 26.º do Decreto-Lei n.º 10-A/2020 nada disso é exigido aos potenciais beneficiários, mas sim que o trabalhador independente tenha estado “sujeito ao cumprimento da obrigação contributiva em pelo menos três meses seguidos ou seis meses interpolados há pelo menos 12 meses”.

Explica o provedor-adjunto: “Basta que o trabalhador independente, encontrando-se com actividade aberta à data do requerimento, tenha tido três meses seguidos ou seis interpolados no período dos 12 meses anteriores com obrigação contributiva para que lhe possa ser reconhecido o direito ao apoio em causa.”

A equipa da Provedora de Justiça avisa que esta situação tem de ser revista. Por um lado, os serviços não podem continuar a fazer esta interpretação aos pedidos de apoio que lhe são submetidos pelos cidadãos e, por outro, têm de rever “todas as decisões de indeferimento que foram proferidas com esse fundamento” e rectificar “a informação que consta do sítio institucional da Segurança Social na internet”, algo que até hoje – até ao momento de publicação desta notícia – continuava por fazer.

Além desta questão, há trabalhadores que continuam a ver-se impedidos de receber o apoio porque “foram confrontados com um projecto de decisão de indeferimento com fundamentos como ‘não cumpre a condição de acesso ao apoio’ ou ‘trabalhador não é TI [trabalhador independente] exclusivo’”, mas sem que a Segurança Social lhes desse a conhecer as razões concretas dessa exclusão.

Três meses depois de terem requerido apoios, lembra o provedor-adjunto, há cidadãos que continuam sem saber porquê e, privados desse suporte financeiro da Segurança Social, vêem-se “forçados a sobreviver recorrendo a ajudas de familiares, amigos ou de instituições da sociedade civil”.

Cardoso da Costa sublinha que o organismo público não pode indeferir processos sem dar a conhecer os fundamentos, pois a isso está obrigado à luz do Código do Procedimento Administrativo. “É garantia constitucional do nosso Estado de Direito Democrático a fundamentação expressa e acessível dos actos administrativos que afectem direitos ou interesses legalmente protegidos, cuja falta determina necessariamente a respectiva invalidade, conforme se encontra concretizado nos artigos 151.º e seguintes do Código do Procedimento Administrativo [CPA]”, recorda.

Justificações lacónicas como as que foram apresentadas não cumprem a lei e impedem, depois, que as pessoas possam contestar a decisão, afirma o provedor-adjunto de Maria Lúcia Amaral. “De forma alguma poderá aceitar-se que as frases ‘não cumpre a condição de acesso ao apoio’ ou ‘trabalhador não é TI exclusivo’ são suficientes para fundamentar o indeferimento dos apoios extraordinários, quando a fundamentação, segundo o artigo 153.º do CPA, ‘deve ser expressa, através de sucinta exposição dos fundamentos de facto e de direito da decisão’, requisitos que de forma alguma foram respeitados naquelas meras menções genéricas no sentido de não estarem reunidos os requisitos exigidos pela lei para acesso aos apoios”, afirma.

Para as pessoas afectadas, isso é um duplo problema: além de ficarem sem apoio, têm menos armas para contestar a decisão. “A verdade é que se os requerentes não puderem conhecer claramente os fundamentos de facto e de direito das decisões de indeferimento dos apoios que requereram, não têm oportunidade de se defender adequadamente e, se for o caso, de corrigir a sua situação ou demonstrar o preenchimento das condições, podendo ficar indevidamente afastados destas medidas”, escreve o provedor-adjunto.

Apesar de o Governo ter admitido que a Segurança Social indeferiu pedidos pelo facto de o sistema de informação do próprio organismo central estar desactualizado, a Provedoria de Justiça diz que muitos dos vários casos problemáticos que lhe foram relatados ainda não tinham sido rectificados até 10 de Julho, o que significa que os trabalhadores continuavam sem receber apoio. O PÚBLICO tem igualmente recebido relatos de trabalhadores independentes que continuavam no início de Agosto a aguardar uma explicação da Segurança Social para o indeferimento dos apoios solicitados.
Resolver com urgência

À Provedoria de Justiça também chegaram “queixas de beneficiários que, apesar de terem visto deferido o apoio para o mês de Maio, viram agora, inexplicavelmente, proferida a decisão de indeferimento do apoio para o mês de Junho, sendo certo que a falta de fundamentação os impede de perceber o motivo para estas inusitadas decisões.”

Para Cardoso da Costa, a Segurança Social deveria agir com urgência para que “os projectos de decisão de indeferimento comunicados aos cidadãos sejam devidamente fundamentados, com a indicação dos motivos de facto e de direito pelos quais não estão reunidas as condições de acesso”. Mas não só. “Nos casos em que essa correcção ou actualização já ocorreu”, diz, é preciso que os pedidos sejam “rapidamente deferidos” e que os “os requerimentos em falta” sejam disponibilizados “de modo a que estas medidas de cariz extraordinário cheguem aos respectivos destinatários com a maior brevidade, sob pena de não serem atribuídas em tempo útil e não cumprirem o fim para que foram criadas”.

As pessoas que estejam sem protecção social por não terem conseguido aceder a outras medidas de apoio da covid-19, como os advogados e os solicitadores, podem recorrer a uma nova medida, de 438,81 euros mensais entre Julho e Dezembro. A nova prestação não ficou, porém, operacional no final de Julho e só neste mês de Agosto é que os trabalhadores vão poder requerer o valor relativo a Julho, segundo garantiu o gabinete da ministra da Segurança Social, Ana Mendes Godinho.