Alexandra Campos (texto) e Rui Gaudêncio (fotografia), in Público on-line
A directora da Escola Nacional de Saúde Pública, Carla Nunes, acha que ainda estamos “no meio da pandemia”, não no princípio do fim, mas defende que “não há espaço” para um novo confinamento total da população.
Apesar de os números de novos casos de covid-19 estarem agora perto do nível dos registados em Abril, a directora da Escola Nacional de Saúde Pública, uma das especialistas ouvidas pelo Governo, acredita que a situação “não está descontrolada” em Portugal, ainda que seja “preocupante”. Carla Nunes sustenta que esta é já a terceira onda da epidemia de covid-19 no país, depois da primeira, em Abril, e da segunda “ondinha” observada após o desconfinamento. Sem querer avançar com previsões nem projecções, até porque “numa crise de saúde pública é preciso ter bastante cuidado com a gestão de expectativas”, a especialista em estatística e saúde pública defende que é preciso proteger com especial ênfase os mais desfavorecidos. “Os mais vulneráveis infectam-se mais porque não andam de carro, vivem em casas mais sobrelotadas. Depois, vem a crise económica e volta a bater neles”, justifica.
Estamos no meio da pandemia de covid-19 ou já no princípio do fim?
Acho que não estamos no princípio do fim, estamos no meio da pandemia. Estamos numa nova fase, com uma nova forma de actuar e temos que ver até que ponto as medidas que adoptamos agora se aguentam ou não com este novo normal instável. Estamos a aprender.
Já estamos na segunda vaga de covid-19?
Do ponto de vista técnico, tivemos aquela primeira onda no princípio e depois tivemos, no meio, entre Maio e Junho, uma segunda ondinha mais distendida no tempo, mais achatada. Agora há uma onda que se está a elevar ao nível da primeira. Mas não queremos fazer o corte que aconteceu na primeira, em que os números [de infecções] caíram por que nos fechamos todos.
Então esta é uma terceira onda, na sua perspectiva?
Certo. Em termos de comunicação, onda ou vaga são duas coisas diferentes. Uma vaga é uma onda muito grande. E este é o terceiro padrão distinto, é a terceira subida. A onda do meio foi perfeitamente suportável e, se este alto [888 novos casos na sexta-feira] se mantiver a este nível, está tudo bem. Se esta amplitude reflectir o impacto da reabertura das escolas e do regresso ao trabalho, enquanto andarmos nestas ondas aceitáveis para os serviços de saúde, ok. É uma situação de alerta, mas até ao momento não está descontrolada de todo e não há nada que leve a pensar, mesmo nas nossas simulações, que se vai descontrolar se as características se mantiverem. O efeito das máscaras vai atenuar um pouco o grande medo que é a mistura com as outras infecções [respiratórias] e a curva de internamentos não tem nada a ver com a curva inicial.
Na comparação com outros países, Portugal está relativamente bem, portanto?
Está como a maior parte dos países, numa fase crescente, de abertura. Portugal está numa situação esperada para a abertura que está a ocorrer, mas não é uma situação crítica, gritante. É preocupante, temos que ver se medidas adoptadas são ou não suficientes.
Pode vir a ser necessário um confinamento total da população, de novo?
Acho que não. Sinceramente, acho que não há espaço para isso. Neste momento não queremos fechar a porta, estamos a aprender a equilibrar a balança. Temos é que proteger as populações mais vulneráveis.
E confinamentos apenas em determinadas regiões ou locais?
Isso pode acontecer, sim.
Quantos novos casos por 100 mil habitantes serão suportáveis para que o Serviço Nacional de Saúde não colapse?
O nosso maior foco não está tanto no número de novos casos, mas sim no número de casos graves. Se os novos casos forem todos pessoas idosas, [sabe-se que] haverá um problema dentro de duas ou três semanas. O que temos [que contabilizar] é o número de camas nos hospitais, nomeadamente nas unidades de cuidados intensivos. Mas o número de ventiladores já foi aumentado e o número de camas não é fixo, há hospitais de campanha. Estamos confortáveis até ao momento. Continuamos muito abaixo em termos de taxas de ocupação. Esta é a questão central e inclui os profissionais de saúde, não são só camas. Agora, a situação é diferente da de Fevereiro ou Março. Na altura, quando havia um caso, [implicava identificar] três ou quatro pessoas, hoje, com um caso positivo, há 20 ou 30 pessoas que têm que ser contactadas rapidamente. Um caso são 30 casos.
Tem sido fácil aceder aos dados da DGS?
Não é fácil, mas a recolha de dados é complexa e os serviços de saúde não estão propriamente focados nisso. O médico de saúde pública tem outras tarefas para além de reportar dados para o sistema, é ele que faz os inquéritos epidemiológicos.
Na semana passada, na Comissão Parlamentar de Saúde, a directora-geral da Saúde ficou agastada com os deputados que puseram em causa o rigor dos dados oficiais e até disse que esta atitude nem é patriótica. Concorda?
Acho que estamos todos a fazer o nosso melhor e o tempo que perdemos a comentar não é útil, é ruído. Eu não sou política, sou da academia.
Os académicos têm sido ouvidos pelos políticos nas reuniões do Infarmed...
Sim, mas nas componentes técnicas. Temos contribuído com o nosso conhecimento que muitas vezes é limitado, porque esta é uma situação nova, não tem anos de investigação. Eles [os responsáveis políticos] têm que levar este conhecimento em conta e mais outras 500 componentes e decidir.
O projecto do barómetro que a escola lançou em Abril e que visa acompanhar a evolução da epidemia em Portugal prossegue?
Continua activo e foi reestruturado durante o mês de Agosto. O barómetro permitiu ver já qual era a percepção das pessoas sobre a pandemia, o problema do acesso aos serviços de saúde. Foi muito útil, por exemplo na questão das desigualdades, ao permitir perceber que cerca de 40% das pessoas [mais desfavorecidas do ponto de vista económico] já tinham perdido [em Abril] total ou parcialmente os seus rendimentos.
Foi dos primeiros a sinalizar que as coisas estavam a ficar muito complicadas. Foi um primeiro alerta: cuidado, isto está a bater forte e está a bater mais nas pessoas mais frágeis. A pandemia bate duas vezes nas populações mais desfavorecidas e vulneráveis, as que têm mais problemas económicos. Qualquer crise económica bate nas populações mais desfavorecidas primeiro, porque não têm espaço para perder rendimentos, [afecta] logo os bens básicos, a sopa. A própria forma de transmissão começa logo por ser desigual. Os mais vulneráveis infectam-se mais porque não andam de carro, vivem em casas mais sobrelotadas. Depois, vem a crise económica e volta a bater neles. Portanto, levam duas vezes.
O indicador que tem sido sistematicamente usado para se perceber como está a evoluir a epidemia é o Rt, que define o grau de transmissibilidade da infecção. Mas vários estudos sugerem que apenas 10 a 20% dos infectados podem ter sido responsáveis por um número elevado de contágios, os chamados supertransmissores ou supercontagiadores, e falam de um indicador mais complexo, o factor de dispersão K.
Tudo isto tem a ver com as características de quem emite, as do próprio vírus e as características do receptor. É sempre um jogo entre as três coisas. [Os supertransmissores] são pessoas que têm comportamentos de risco e que circulam muito. Um dos primeiros foi, em Itália, um homem que esteve em estâncias de esqui e que, à noite, cantava em vários bares. Cantar é das coisas piores porque projectamos a voz. Ao falar alto, projectamos a emissão de ar pela boca com mais força. O vírus transmite-se bem e depois ainda há a sorte ou o azar de quem está no outro lado ter ou não defesas [imunitárias], usar máscaras, estar distanciado, etc. O Rt é uma média. Se for igual a dois, cada caso dá origem a dois, mas há uns que dão origem a dez e há outros que não dão origem a nenhum. Este factor [k] pode ajudar a explicar a forma de transmissão, mas complica, esse é o problema. Modelar e quantificar os nossos comportamentos é complicado e arriscado. A matemática é uma ciência exacta, a estatística é uma ciência probabilística. Na estatística vivemos muito bem com o conceito de incerteza, porque trabalhamos sempre com probabilidades, na nossa conversa é um conceito normal. Mas o conceito de incerteza é o mais difícil de passar para fora.
Acha que vamos ter uma vacina em breve? E imunidade de grupo?
Estamos no caminho. Segundo os primeiros resultados do estudo serológico nacional, o valor da imunidade era baixo, de cerca de 3%. Este é um caminho longo a percorrer. A incerteza é brutal, sou um pouco conservadora neste aspecto. Numa crise de saúde pública é preciso ter bastante cuidado com a gestão de expectativas. Não há cenários dantescos mas também não acho que serão simples. A incerteza tem que ser assumida, só vamos perceber [o resultado] no final do jogo.
“A literacia em saúde pública é o maior desafio que temos pela frente”
A Escola Nacional de Saúde Pública acaba de lançar o projecto The Gate – Public Health Knowledge Centre. Em que consiste?
É um centro de conhecimento em saúde pública. É uma ideia que surgiu antes da covid-19 e que visa criar um museu vivo baseado em ciência. Em inglês diz-se life research museum… É uma ideia que já apresentamos a cerca de 20 parceiros, um dos quais é a Organização Mundial de Saúde. O objectivo é que as pessoas percebam o que é a saúde pública, que cada um de nós tem um papel na promoção da saúde das populações. A saúde pública é muito abrangente e é necessária uma consciência de saúde pública como foi criada uma consciência ambiental ao longo de anos. A literacia em saúde pública é o maior desafio que temos pela frente. Não podemos falhar esta oportunidade.
Este centro de conhecimento será apenas virtual?
Na primeira fase será totalmente virtual e mais tarde haverá um edifício em Lisboa ao pé da escola, mas o conceito é de itinerância digital, com carrinhas a percorrer o país e a levar o centro a todo o país.
Quando é que o The Gate começa a funcionar?
Em seis meses contamos ter montada a parte digital. Vai ser um website, mas não um site simples. Vai ser um site como têm alguns museus, que se podem visitar virtualmente. Há um centro de conhecimento em saúde pública em Atlanta, nos Estados Unidos, que tem campos de férias para miúdos. É o mais parecido com este projecto.
A Escola Nacional de Saúde Pública completou 52 anos, 25 dos quais dentro da Universidade Nova de Lisboa.
É uma capicua… a escola nasceu nos serviços de saúde e para responder às necessidades e desafios, dar formação aos profissionais de saúde. Depois tornamo-nos académicos [foi integrada na Universidade Nova de Lisboa]. Temos metade da nossa existência dentro do Ministério da Saúde e a outra metade dentro do Ministério da Ciência e Tecnologia. Esta é a grande marca da escola. No evento do lançamento do The Gate [na semana passada] tivemos cinco ex-ministros da Saúde, Maria de Belém, Correia de Campos, Fernando Leal da Costa, Adalberto Campos Fernandes e Paulo Macedo. E quatro destes foram ou são ainda professores na escola. Mas nós não contratamos ex-ministros. Correia de Campos e Adalberto Campos Fernandes já eram nossos professores antes de serem ministros e Maria de Belém foi nossa aluna antes de ser ministra. Nós formamos as elites, não contratamos as elites. Esta é a grande marca da escola.