Durante a pandemia, as desigualdades entre homens e mulheres no cuidado doméstico continuam a ser claras: entre trabalhadores que pediram apoio excepcional para ficar em casa a cuidar dos filhos, a larga maioria foram mulheres.
Daniela Pacheco, de 33 anos, é uma dessas mães. Trabalha numa confecção, em Lousada, e pediu o apoio em dois momentos. No início da pandemia, faltou ao trabalho durante três meses e meio para ficar em casa a cuidar dos filhos: durante o período de aulas suspensas, teve direito ao apoio excepcional por causa do filho mais velho, de nove anos; pelo meio, nas férias da Páscoa (entre 28 de Março e 13 de Abril), pôde ficar em casa porque também tinha a seu cuidado uma criança com menos de três anos. Já em Setembro, voltou a ter direito ao apoio quando teve que cuidar do filho mais novo durante o isolamento profiláctico devido a um caso de covid-19 identificado na creche.
Ao PÚBLICO, a presidente da Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego (CITE), Carla Tavares, afirma que a entidade que lidera já se tinha apercebido desta discrepância entre o número de mulheres e homens que pediram apoios e já havia alertado a tutela para este problema. “Quando nos fomos apercebendo que na sua maioria eram as mulheres quem ficava em casa em regime de teletrabalho, sobretudo, ou mesmo em regime de apoio especial, manifestamos de imediato essa preocupação junto do Ministério do Trabalho para que essa situação fosse avaliada e que no futuro fossem tomadas medidas que minimizassem o facto de serem sempre as mulheres as prejudicadas e aquelas a quem incumbe sempre o dever de cuidar dos filhos”, diz.
Para Carla Tavares, esta é uma questão estrutural que ultrapassa o problema do teletrabalho. A CITE tem pensado em formas de equilibrar estas questões, mas a solução deve ter em conta a complexidade das situações. “Poderia ser feito através da rotatividade, mas depois como se faz esse controlo? Teríamos sempre de articular com as profissões de cada um, algo que pode nem sempre ser compatível. É uma questão mais estrutural que está por detrás de tudo isto, algo que não vamos conseguir alterar só fazendo mudanças no regime do teletrabalho”.
No caso de Daniela Pacheco o teletrabalho não era opção, e o que pesou na decisão de qual dos progenitores ficaria em casa foi a dimensão das respectivas empresas. Ela trabalha numa confecção com quase 40 funcionárias onde oito tiveram que faltar para cuidar das crianças; o marido era o único empregado, trabalhando directamente com o patrão. Daniela não considera o processo para pedir o apoio demasiado complicado, apesar de ser preciso renovar todos os meses. Bastou-lhe ir à Internet, preencher um formulário, entregar ao patrão. Questiona-se se terá sido tão simples para colegas que não lidam habitualmente com a Internet, e lamenta que a muitas tenha sido vedado este direito porque os filhos tinham mais de 12 anos. A atribuição do apoio tinha ainda outros limites, por exemplo, ao não abranger os casos em que um dos progenitores estivesse em regime de teletrabalho — o que pode explicar, em parte, que em Março tenha havido muito mais pedidos (162.059) do que nos meses seguintes (92.629 em Abril, por exemplo).
Este direito, contudo, trouxe um corte ao orçamento familiar: no caso de Daniela, um terço do salário era assegurado pela Segurança Social, outro terço pela entidade empregadora, e o restante ficou perdido. Em alguns casos, esta distribuição do apoio pode embater no tecto máximo, de 1905 euros, ou na base mínima, de 635 euros, o que significa que os trabalhadores que recebem o salário mínimo não perdem rendimento.
"Tinha que ficar com eles"
“No meu caso, tinha que ficar com eles”, diz a trabalhadora têxtil. “A minha sogra já tem 70 anos, estava no grupo de risco, não havia forma”. Esta foi uma das diferenças essenciais desta pandemia: os avós, a quem frequentemente os pais recorrem para cuidar das crianças, não puderam ficar com os netos. O investigador Manuel Abrantes, do Centro de Estudos para a Intervenção Social (Cesis), nota que a presença de avós no cuidado às crianças tem sido um elemento importante “para que as mulheres possam ter mais tempo para o trabalho”, com base nas conclusões do estudo Os Usos do Tempo de Homens e de Mulheres em Portugal, publicado em 2016.
Neste inquérito, coordenado por Heloísa Perista, os investigadores encontraram dados que mostram que a disparidade de género agora encontrada nos pedidos de apoio à família tem raízes anteriores. Se por um lado há cada vez mais jovens casais que dividem as tarefas de forma igualitária, outra das conclusões é que “o nascimento das crianças é um ponto decisivo em que as coisas começam a desequilibrar-se”, já que o cuidado das crianças pequenas “recai muito mais sobre as mulheres”, diz Manuel Abrantes. Ao perguntarem, por exemplo “quem são as pessoas adultas que no agregado doméstico habitualmente cuidam das crianças aí residentes”, explica, a resposta foi “apenas uma mulher” em 83,2% dos casos de crianças com menos de três anos; e de 68,8% no caso de crianças entre os seis e os 14 anos.
E será possível prever que as desigualdades de género nos cuidados domésticos se acentuem com a pandemia? “Há riscos de reforço das desigualdades”, diz o investigador do Cesis. Na casa de Daniela, o cuidado dos filhos continuou repartido: em Setembro, quando teve que se fechar duas semanas num quarto com o filho mais novo para isolamento profiláctico devido a um caso identificado na creche, era o marido quem “preparava as refeições cá fora” e cuidava do resto da casa. Mas este tipo de divisão não é dos mais comuns ainda, nota Manuel Abrantes. Apesar da lenta evolução que tem acontecido nesta matéria, Portugal é um país em que os cuidados ainda recaem predominantemente sobre as mulheres. E, ao acrescentar este “factor de stress" na vida das famílias, explica, a tendência é a de “reforço do estereótipo da mãe como primeira protectora”.