Em dia de peregrinação sem enchente, Igreja continua a adiar divulgação das contas
Por medo ao coronavírus ou em obediência ao apelo para que ficassem em casa, os fiéis não lotaram esta segunda-feira o recinto do Santuário de Fátima. Sem multidão, os responsáveis da Igreja dedicaram-se a (não) fazer contas aos prejuízos da pandemia.
“Viemos cedo porque tínhamos medo que não houvesse lugar e, afinal, não era preciso nada disso”, desabafa José Paiva. A exasperação percebe-se: são quase duas da tarde, o octogenário e a mulher estão desde as nove horas da manhã a guardar lugar, sentados ambos em cadeiras de praia, no recinto do Santuário de Fátima. Deram-se ao trabalho de trazer chapéus, sandes e água, para não perderem a vista desimpedida para a Capelinha das Aparições e, afinal, o esforço revelou-se escusado. Mesmo depois das 21h30, quando a procissão de velas já decorria esta segunda-feira, no recinto não se juntaram mais de 4500 pessoas, abaixo da lotação máxima que o respeito pelas regras sanitárias fixou nas seis mil.
O medo dos contágios há-de ter pesado na diminuição do ver-se-te-avias dos peregrinos, sobretudo em ocasiões como a de ontem, em que se celebrava a última “aparição” da Virgem aos pastorinhos. Mas os apelos que se ouviram nos dias anteriores, quer do reitor do santuário, Carlos Cabecinhas, quer do bispo de Leiria-Fátima, D. António Marto, para que ficassem em casa também terão pesado. Marisa Sousa bem os ouviu. Mas, ao perceber que, na véspera, o santuário teve de encerrar momentaneamente as portas por ter atingido a lotação máxima de segurança, partiu de madrugada de Vila Nova de Famalicão. “A fé é mais forte que o medo do vírus e, como sei que muitos sentem como eu, não quis arriscar”, justificou-se, entre goles na garrafa térmica que levou para não desidratar com uma espera.
Daí a pouco, aos jornalistas, D. António Marto, haveria de elogiar “o comportamento exemplar” aos que, como ela, esperaram ordeiramente nas “bolhas” desenhadas no chão e aos que ficaram em casa para evitar aglomerações. Mas não deixou de avisar que as pessoas não podem “ficar paralisadas pelo medo”. Arrumado esse assunto, a conferência de imprensa serviu fundamentalmente para fazer contas “aos estragos” da pandemia nas contas da Igreja Católica. Os jornalistas pelo menos tentaram obter alguns números, mas, no tocante às contas do santuário, que permanecem por divulgar desde 2006, numa decisão justificada pela indefinição a nível fiscal na regulamentação da Concordata, que regula as relações entre a Igreja e o Estado, o máximo que conseguiram foi obter dos seus responsáveis a concordância face à necessidade de os tornar públicas. Quando? Não se sabe. “É preciso criar as condições necessárias para que isso se faça como deve ser”, justificou-se D. José Ornelas, presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), sublinhando que a Igreja está a “apetrechar-se” para que “a regra da transparência” vigore.
Por seu turno, D. António Marto, endossou responsabilidades para fora da Igreja e para a incógnita quanto a “até onde vão os fins religiosos” que isentam o santuário de alguns impostos. “Pensava-se que a comissão paritária entre a Santa Sé e o Estado esclarecesse em breve tempo, num ano, dois anos, três anos, e isso até hoje não aconteceu”, vincou, jurando que, pela parte que lhe toca, nada tem a objectar a que se divulgue o conteúdo dos cofres: “Não há segredo nenhum. Não é sociedade secreta nenhuma.”
Menos 51 postos de trabalho
Quanto aos números conhecidos, soube-se esta segunda-feira que o santuário reduziu 51 postos de trabalho para fazer frente aos prejuízos provocados pela pandemia. Além dos 14 “acordos amigáveis de rescisão”, quatro funcionários passaram à reforma, 15 demitiram-se por sua iniciativa e houve 18 não renovações de contratos a termo. “Sem peregrinos perdemos também receita e, no final deste ano, teremos certamente um resultado negativo”, justificou o reitor do santuário, Carlos Cabecinhas, num tom que só se alterou quando os jornalistas o confrontaram com o facto de, em Maio, D. António Marto, ter garantido que não haveria despedimentos. “Os recursos não são inesgotáveis. E ninguém foi pressionado para sair”, exasperou-se, acusando o sindicato do sector de ter veiculado “suspeitas caluniosas”, nomeadamente quando sustentou que a Igreja deteria alojamentos que recusam passar facturas.
Questionado sobre o impacto global da pandemia nas contas da Igreja, D. José Ornelas, adiantou que, “nalgumas dioceses, a remuneração que o padre costuma receber teve de ser reforçada, para que não lhe faltasse o essencial” e que, em muitas paróquias, “o número de pessoas carenciadas subiu exponencialmente”. Sem contas globais para apresentar, a Igreja deverá lá mais para a frente, e ainda segundo o presidente da CEP, reunir os vigários gerais de cada diocese para fazer a radiografia dos “estragos” da pandemia nas suas contas.
À noite, durante a homília, D. José Ornelas apontou “outros estragos”, os provocados por “monstros pandémicos” que, em paralelo com o coronavírus, ameaçam o mundo. O presidente da CEP referia-se às “muitas e poderosas atitudes manipuladoras e populistas, sem remorso de usar o sofrimento e o desconcerto social para daí tirar dividendos políticos e económicos, criando mesmo conflitos e mobilizando o próprio poder para os seus objectivos conflituosos e estratégicos, que deixam para trás os mais frágeis”.