Liliana Valente, in Expresso
Os números de vítimas mortais de violência doméstica no início do ano passado fizeram soar todas as campainhas de alarme. A chegada da pandemia e o confinamento de famílias inteiras, acentuando o afastamento social e potenciando conflitos dentro de portas, tornaram o assunto ainda mais urgente. Mas a solução do Governo para acelerar o combate à violência doméstica não desata no Parlamento e deverá mesmo cair por terra.
Desde abril que está na Assembleia da República (AR) uma proposta de lei que altera o regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica e à proteção e à assistência das vítimas, que não avança nos trabalhos da comissão parlamentar. A explicação é simples: não tem condições para aprovar a reforma. É a própria ministra da Justiça que o admite: “A natureza das reservas suscitadas na generalidade e a circunstância de a proposta ter baixado à comissão sem votação levam a admitir que a solução ali desenhada não colherá apoio suficiente para vingar”, respondeu o gabinete de Francisca Van Dunem a perguntas do Expresso.
Costa defende uma revisão constitucional para criar tribunais especializados
A ministra já tinha demonstrado o desalento pelos trabalhos não chegarem a bom porto: “Não penso que venha a ter bom resultado”, disse em entrevista ao podcast do PS, “Política com Palavra”. As críticas no Parlamento e fora dele foram tantas que a solução passa por deixar cair a medida de dar mais poder aos tribunais criminais para assegurar maior proteção às vítimas. O tempo é o de procurar uma solução na AR, mas a proposta não tem sido agendada para discussão pelos socialistas o que leva deputados da oposição a acreditar que não há interesse em avançar.
“O Governo está porém convencido de que na discussão na comissão surgirão com certeza alternativa suscetíveis de ultrapassar as dificuldades de articulação entre a resposta penal e a de família e menores que a proposta visou eliminar”, respondeu o Ministério da Justiça. Entretanto entrou em vigor uma alteração legislativa proposta pelo PCP que resolve parte do problema, ao impedir os tribunais de inscreverem as moradas das vítimas nas diligências direcionadas aos agressores.
NORMA CONTESTADA
Um dos problemas identificados nos casos de violência doméstica é o facto de o agressor descobrir a morada da vítima quando há regulação parental. Se o casal está separado e há um processo por violência doméstica a correr, o agressor não tem acesso à morada da vítima nesse processo, mas o mesmo não acontece quando corre um processo paralelo de regulação parental. A proposta do Governo passava por aumentar os poderes dos tribunais criminais na aplicação de “decisões provisórias urgentes de proteção da vítima, tais como a regulação provisória do exercício das responsabilidades parentais, a utilização provisória da casa de morada de família e a guarda de animais de companhia”.
Regulação parental desprotege muitas vezes as vítimas, tornando-as mais fáceis de localizar
Uma medida “inovadora” escreveram os juízes, mas não no bom sentido. Na discussão inicial da proposta, o Conselho Superior de Magistratura (CSM) alertou para as “implicações graves” nas competências dos tribunais, sobretudo nos tribunais de família e menores e que poderia levantar “questões de constitucionalidade”.
O empate da solução no Parlamento impede que se discuta ainda a proposta do Governo de obrigatoriedade de as autoridades agirem em busca de prova no máximo em 72 horas.
UMA DIVERGÊNCIA POLÍTICA
Há um ano, António Costa apresentava a sua proposta de programa de Governo numa convenção do PS e surpreendeu a plateia ao defender uma revisão constitucional para criar tribunais especializados em crimes de violência doméstica. “Se isto não merece uma revisão constitucional, não sei o que mereça”, disse.
O ano de 2019 foi dos mais graves no registo de vítimas mortais por violência doméstica. As estatísticas da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima registam 45 homicídios, o que causou um impacto também no discurso político. Costa defendia que se devia equacionar a possibilidade de uma “abordagem judiciária integrada” dentro do quadro constitucional existente, mas além disso defendia a criação dos tribunais especializados. Uma ideia com a qual a sua ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, não concorda.
Na entrevista ao podcast do PS, a ministra defendeu que iniciar uma revisão constitucional por causa de um assunto específico poderia traduzir-se em “abrir a caixa de Pandora” porque, na ótica de Van Dunem, uma revisão “tem sempre um campo mais amplo”. A ministra explicava que a Constituição com “resquícios do passado autoritário” proibia a existência de tribunais especializados e defendia que dentro do atual quadro constitucional ainda “há margem para progredir”. Só se “não tivéssemos” margem é que admitiria uma revisão constitucional. Uma diferença em relação ao que defendia o primeiro-ministro. O Expresso perguntou aos dois lados sobre esta divergência política, mas não obteve resposta.