19.10.20

Carlos Farinha Rodrigues: “É entre os mais pobres dos pobres que esta crise vai ter um efeito maior”

Raquel Albuquerque, in Expresso

O especialista na área da pobreza e desigualdades será um dos membros da comissão criada pelo Governo para elaborar uma estratégia nacional de combate à pobreza. “As políticas da luta contra a pobreza não podem ser só transferências monetárias”, defende. E alerta: "Temos de fazer um grande balanço sobre quais as políticas de combate à pobreza que devem existir em Portugal". Este sábado é Dia Internacional para Erradicação da Pobreza

Há já alguns anos que Carlos Farinha Rodrigues, especialista na área de pobreza e desigualdades, defende a necessidade de o país ter uma verdadeira estratégia nacional de combate à pobreza. Simplificado, isso significa assegurar que todas as medidas sociais destinadas a evitar situações de pobreza estão interligadas, articuladas, garantindo que não se sobrepõem nem que deixam ninguém de fora. No Dia Internacional para Erradicação da Pobreza, que se comemora este sábado, 17 de outubro, o Governo anunciou a criação de uma comissão que visa, precisamente, elaborar esta estratégia.

Carlos Farinha Rodrigues, também professor no Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG), é um dos membros dessa comissão. E defende que as "políticas da luta contra a pobreza não podem ser só transferências monetárias". É preciso que sejam mais do que isso, sobretudo para conseguirem vir a dar resposta ao "forte agravamento" da pobreza e exclusão social que a pandemia de covid-19 já trouxe para Portugal. Além disso, a atual crise expôs e acentuou desigualdades no acesso à saúde, educação e habitação. E a resposta tem de ser, por um lado, imediata e, por outro, estrutural. "Podemos até ter muitas medidas boas, mas se não as articularmos as sinergias perdem-se", afirma ao Expresso.

O que é que já se sabe sobre o agravamento da pobreza devido à pandemia?
Não temos ainda as estatísticas oficiais sobre a evolução da pobreza e desigualdade. Mas temos um conjunto muito vasto de indicadores obtidos no terreno pelas associações, que mostram um claro agravamento das situações de pobreza. Esta crise tem o potencial de agravar e fazer ressurgir todos os fatores de pobreza e desigualdade. Diz-se que a pandemia é democrática porque atinge todas as pessoas, mas a capacidade que as pessoas têm de resistir e de se protegerem é muito diferenciada e quem está em situação de pobreza é particularmente afetado.

É provável que a taxa de pobreza regresse ou até supere os 19,5% registados em 2013 na crise anterior?
Não é possível antecipar qual será a dimensão da pobreza. Mas não tenho dúvidas nenhumas em dizer que vamos ter um forte agravamento da pobreza e da intensidade da pobreza, porque é entre os mais pobres dos pobres que a crise vai ter um efeito maior. Mas esta crise revelou um aspeto que não é apanhado diretamente pelos indicadores: a profunda desigualdade no acesso a bens e serviços. Associada à ausência de rendimento e de emprego, é um cocktail explosivo uma vez que reforça as condições de dependência e falta de capacidade de defesa perante a realidade atual. Combater a pobreza implica não só garantir um rendimento mínimo adequado a todas as famílias mas também garantir condições de acesso a bens e serviços que permitam ter um nível de vida digno.

A que acesso a bens e serviços se refere?
Por exemplo em termos de saúde, porque é diferente uma pessoa testar positivo e ter condições económicas e informação suficiente para saber o que deve fazer ou estar numa situação extremamente vulnerável sem acesso a informação. Outro exemplo é o sistema educativo, sobretudo quando as escolas tiveram de fechar. As famílias mais vulneráveis foram confrontadas com um agravamento das desigualdades. É muito diferente uma família de classe média ou alta, com todos os meios técnicos e até possibilidade de trabalhar a partir de casa, ter de ajudar os filhos na escola, ou o mesmo ser pedido a uma família sem esses recursos, sem habilitações para acompanhar o percurso escolar dos filhos, tendo, muitas vezes, de continuar a trabalhar presencialmente. O problema da habitação também agravou as desigualdades. A possibilidade de as pessoas se isolarem e protegerem em casa depende das condições de vida que têm. Viver numa casa com muita gente ou muito pequena influencia a capacidade de se defenderem a si e aos outros. A pandemia veio agravar todos os fatores de pobreza que já estavam latentes na sociedade, além de ter juntado outros novos.

O novo apoio social proposto pelo Governo não garante mínimo do limiar de pobreza. E os trabalhadores independentes e informais, dois dos grupos de profissionais mais afetados, poderão não chegar aos €501. Isto acontece porquê?
Precisamos de uma visão mais integrada das medidas. É importante distinguir dois tipos. Umas que são de emergência e que é preciso tomar neste momento, entre as quais se insere este novo apoio social, pois visam aliviar a pressão sobre determinados sectores da população. Outras são as medidas estruturais. E esta crise veio reforçar a ideia de que temos de repensar, de forma estrutural, o nosso sistema de proteção social. Temos de fazer um grande balanço sobre quais as políticas de combate à pobreza que devem existir em Portugal, de forma a termos um sistema integrado. Medidas avulsas podem ser justificadas no imediato, mas não podem ser um entrave para definir o sistema de apoios das pessoas em maior vulnerabilidade. Até porque, também devido a esta crise, há medidas que, na sua configuração atual, começam a revelar algum esgotamento. É o caso do rendimento mínimo [Rendimento Social de Inserção], que foi, é e continuará a ser essencial. Mas que tem de ser repensado. Não podemos confundir as medidas de resposta imediata com as políticas públicas que encarem este problema de frente.

A que sinais de esgotamento se refere?
O rendimento mínimo é paradigmático. Tivemos nos últimos anos, em nome da crise anterior, uma política de desvalorização e neutralização da eficácia do rendimento mínimo. O atual governo repôs as condições de 2010, mas, na prática, não repensou a interação das várias medidas. E, portanto, quando passar a fase de emergência, é preciso repensar esta articulação. A existência de uma preocupação com estes problemas a nível europeu é uma oportunidade única que não devemos desperdiçar para discutir quais devem ser as nossas políticas públicas de combate à fragilização social.

O Governo anunciou este sábado a criação de uma comissão para elaborar a estratégia nacional de combate à pobreza, com o objetivo de “refletir sobre o sistema de mínimos sociais”. Enquanto membro desta comissão, o que é que acha que isto significa?
A comissão ainda vai começar e não sei o que vai ser o plano. Mas isso significa termos de definir um conjunto de políticas que permita assegurar um sistema coerente, consistente e articulado de políticas públicas. Podemos até ter muitas medidas boas, mas se não as articularmos as sinergias perdem-se. Com os recursos limitados que sempre tivemos e que vamos continuar a ter, temos de maximizar a rentabilidade social. Ou seja, interligar as medidas existentes e assegurar que não há sobreposição ou conflito entre elas. É preciso olhar para a pobreza e exclusão social não só como um problema de garantia de recursos financeiros, mas de acesso a serviços sociais. No rendimento mínimo é tão importante o benefício financeiro como os planos de inclusão. Isso significa que as políticas da luta contra a pobreza não podem ser só transferências monetárias. Têm de ser algo mais qualitativo que sirva para garantir dignidade de vida às pessoas, ou seja, não é suficiente ter um plano de inclusão que é visto apenas como uma tentativa de inserção no mercado de trabalho. É preciso ter planos de inclusão que permitam às famílias abandonar a situação de pobreza. Não é ensinar a pescar ou dar o peixe. É dar o peixe e ensinar a pescar. Esta crise claramente evidenciou a necessidade de termos uma estratégia de combate à pobreza. Mas é preciso vontade política para tornar este combate num desígnio nacional.