6.10.20

Três empresas portuguesas investigadas em processo ligado a rede de tráfico de pessoas

Ana Dias Cordeiro, in Público on-line

Dezenas de outras sociedades agrícolas fizeram contratos de trabalho com os dez arguidos e as suas empresas criadas como “embuste de legalidade”. Os acusados começam esta terça-feira a ser julgados no Tribunal de Beja. As 58 vítimas vieram para Portugal trabalhar na apanha da azeitona. Antes, outras como elas fizeram denúncias na GNR e depois fugiram.

Duas empresas de Beja e uma de Santarém estão a ser investigadas no âmbito de um processo mais vasto de exploração laboral e tráfico de vários cidadãos romenos e moldavos aliciados nos seus países para a apanha da azeitona em Ferreira do Alentejo, no distrito de Beja.

O processo culminou com a acusação de dez cidadãos romenos e moldavos e das suas empresas depois da já designada maior operação do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras no combate ao tráfico de pessoas em 2018. Os arguidos, que são acusados do crime de tráfico de pessoas tantas vezes quanto o número vítimas (58) e de um crime de associação criminosa (entre outros) começam esta terça-feira a ser julgados no Tribunal de Beja.

Para as sociedades agrícolas portuguesas proprietárias das terras onde as vítimas por diversas vezes trabalharam foi aberta uma nova investigação pelo crime de utilização de actividade de cidadão estrangeiro em situação ilegal.

Os processos foram separados, por decisão do Ministério Público, porque os arguidos estavam com medidas de prisão – domiciliária ou no Estabelecimento Prisional de Beja – que importava “não prolongar para além do necessário”, como se lê no despacho de acusação do processo principal, consultado pelo PÚBLICO; a investigação das suspeitas sobre as empresas nacionais, por sua vez, estava atrasada.

“Apurou-se que alguns destes trabalhadores prestavam a sua actividade em tarefas agrícolas na região, de forma continuada ou reincidente, inseridos em explorações pertencentes a terceiros e a algumas sociedades agrícolas”, refere o procurador.

“Sucedeu que os responsáveis por tais explorações agrícolas estariam cientes que utilizavam a mão-de-obra de trabalhadores estrangeiros e em situação irregular, nomeadamente sem que tivessem visto de trabalho legalmente exigido para o efeito.”

Esta constatação resultou de fiscalizações do SEF, a situação “foi detectada” mas mesmo assim “a mesma forma de procedimento, recorrendo e contratando indirectamente tais pessoas, através dos arguidos e suas empresas” prosseguiu.

São empresas de pequena ou média dimensão, uma das quais tem sede no distrito de Santarém de onde coordena a ida dos trabalhadores sazonais para os terrenos que possui no Alentejo. O PÚBLICO tentou ouvir as três empresas, tendo apenas conseguido o contacto com uma delas solicitando um comentário ao responsável, mas sem sucesso.

O despacho de acusação, de Julho do ano passado, identifica ainda 47 empresas portuguesas com contactos mantidos com esta rede de cidadãos da Roménia e da Moldávia e que assinaram contratos verbais ou escritos para a compra de serviços de mão-de-obra de trabalhadores desses países em circunstâncias não investigadas neste processo.

A exploração, com a apropriação de dinheiro resultante de centenas de horas de trabalho e o alojamento em contentores ou casas húmidas, degradadas, sobrelotadas e sem quaisquer condições, resultaram para os arguidos em vantagens financeiras de seis milhões e 300 mil euros – mais de seis milhões de euros em ganhos só para o homem e a mulher que são os principais arguidos.

"Condições muito duras"

Foi ao posto territorial da GNR, de Alvito, no Baixo Alentejo, onde tudo começou, que seis cidadãos romenos se dirigiram a 1 de Dezembro de 2016. Queriam regressar à Roménia mas tinham sido ameaçados pela pessoa para quem trabalhavam e que ficara com os seus passaportes. Com esta denúncia – traduzida do romeno para português – foi desencadeado um inquérito pelo crime de tráfico de pessoas depois das primeiras diligências apontarem para “condições muito duras, constantes ameaças verbais e insultos”.

Também em Fevereiro de 2017, outro grupo (cinco cidadãos romenos e moldavos) denunciou que uma cidadã romena a viver na Vidigueira para quem realizavam trabalhos agrícolas nada lhes pagava, cobrando-lhes valores sem qualquer controlo relativo ao alojamento, à alimentação que não lhes dava, e passando eles frio e fome, além de serem sujeitos a frequentes ameaças, refere o despacho de acusação sobre esta denúncia.

A denúncia feita “por se sentirem receosos, solicitaram auxílio à GNR local” foi junta ao processo entretanto aberto, o qual estabeleceu uma ligação entre esta mulher suspeita (contra a qual nunca viriam a ser reunidas provas suficientes depois de os cidadãos terem fugido para parte incerta e sem poderem prestar mais declarações) a pelo menos dois arguidos (pertencentes à rede) agora em julgamento.

A rede trouxe em poucos anos destes dois países mais de 255 pessoas aliciadas por contratos que nunca tiveram. Eram colocadas em contentores ou casas sobrelotadas, húmidas, sem aquecimento e mal conservadas onde quatro ou cinco pessoas partilhavam quartos ou divisões em contentores pré-fabricados de 12 metros quadrados. Por esse alojamento pagavam um euro por dia ou 50 euros por mês, quantias que lhes eram descontadas das horas que trabalhavam a valores abaixo dos mínimos.

“Em regra eram transportados de madrugada, entre as 5h e as 6h, pelos arguidos ou por terceiros a seu mando, para explorações agrícolas, algumas vezes distando centenas de quilómetros dos locais onde estavam instalados, regressando no final do dia”, descreve a acusação.
Sair de madrugada

Já nos campos eram obrigados a trabalhar pelo período que os arguidos decidissem, em regra de nove a dez horas por dia diárias, seis a sete dias por semana, com descanso para almoço (entre 30 a 60 minutos) e a meio da manhã.

O almoço não lhes era pago e desde logo era fixado e prometido que iriam receber apenas no final da sua permanência em território nacional, 3,5 euros por cada hora de trabalho – um valor abaixo do mínimo definido para o sector. Nos dias em que chovesse, se estivessem doentes ou por qualquer motivo a que fossem alheios não pudessem trabalhar, não receberiam qualquer valor e ainda teriam de pagar suplementarmente dez euros por dia, supostamente para custear a água, luz e gás.

A acusação relata ainda que, antes de chegarem a Portugal, já eram (sem saberem) devedores de 130 euros por despesas da viagem à empresa de transportes controlada por um dos arguidos. E eram-lhes cobradas despesas fictícias de uma falsa legalização.