25.2.14

Violência conjugal. As famílias infelizes têm histórias horríveis

Por Kátia Catulo, in iOnline

Por detrás dos números da violência doméstica estão os testemunhos das mulheres que levaram os maridos a tribunal

No ano passado, 7271 mulheres foram vítimas de violência conjugal - mais 1138 casos que em 2012. Números são números. Todas as semanas há pelo menos cinco ou seis a chegar aos tribunais. Lurdes, Rosa, Vitória e Margarida (nomes fictícios) deixaram de ser números em Janeiro e Fevereiro. Os seus testemunhos e os dos agressores estiveram na origem de sentenças que provam que um número nunca é só um número. Aníbal ouviu a condenação contrariado: dois anos e quatro meses de prisão. A pena fica suspensa se frequentar sessões de terapia para se curar do vício da bebida. Tem de mostrar ainda empenho em procurar trabalho.

O que fez é tão grave? - perguntou ao juiz. Afinal, todos os casais têm problemas. E as mulheres são dramáticas. Dizem que se querem matar, mas neste caso, ninguém consegue provar que a culpa foi dele. Nunca lhe bateu. Nunca. O seu único pecado foi deixar-se consumir pela bebida. Lá porque um juiz diz agora que o seu comportamento foi um "massacre psicológico" sobre a mulher, isso não faz dele um criminoso. Alcoolismo, que se saiba, não é crime. Podem vir agora com argumentos da treta, que não o convencem: "A soma das suas pequenas acções desembocaram num crime de violência doméstica, nomeadamente em maus-tratos psíquicos", diz o acórdão da Relação de Évora. Conversa de psicólogos. Onde está esse massacre, se não há nódoas ou cicatrizes para mostrar?

Aníbal está casado com Vitória há 30 anos. Nem se lembra quando passou a beber todos os dias, várias vezes ao dia. Se calhar foi há uns dez anos. Ou há mais tempo. Sempre que está bêbado começa a ladainha. A filha não é dele, a mulher tem um amante e pode ir ter com ele, é igual ao litro. Se ela está a dormir, liga o televisor, no volume máximo, bate com as portas e pragueja. Se Vitória sai de casa bem arranjada, arranja-se para quem? Para ele é que não é.

Foram uns oito ou nove anos a moer-lhe a paciência. Até julgar que a solução para um casamento sem solução está num boião de comprimidos. O marido apanhou-a na casa de banho. Parecia um zombie com os olhos revirados. Ficou internada e, ao fim de um mês, os médicos mandaram-na para casa. Saiu do hospital e no caminho convenceu-se de que as coisas iam mudar. O marido ficou tão assustado quando a viu no chão da casa de banho. Nas visitas até parecia arrependido. Enfiou a chave na porta e entrou em casa. Encontrou-o bêbado que nem um cacho.

Quando não está alcoolizado até é um homem normal. Capaz de jantar à mesa com a mulher e comentar as notícias da televisão. Só que os momentos sóbrios são cada vez mais raros. Está bêbado de manhã à noite. Sempre a implicar com a mulher. Como se fosse a única culpada de tudo. Isoladamente, os comportamentos dele nunca fariam tantos estragos, disse o Ministério Público. Mas repetiram-se dia após dia, até Vitória se dar conta que andava há mais de uma década nesta vida estúpida. Tem de acabar.

"Vou matar-te!" Lurdes ficou paralisada com a arma apontada à cabeça. "Vou matar-te à frente da tua filha para veres como sofro por me teres traído." A filha pôs-se no meio. O pai desistiu, mas Carina tem de estar atenta. Não é a primeira vez que tenta proteger a mãe. Numa noite, há quase 15 anos, Artur deixou a mulher nua no meio da rua. Carina esperou o pai adormecer e abriu a janela do quarto para dormirem às escondidas na cama dela. Houve uma outra vez que nada conseguiu fazer. Artur agarrou na mulher, despiu-lhe a bata, tirou-lhe o soutien, pegou em duas facas de cozinha e apontou as lâminas aos mamilos: vou cortar o teu peito para não teres prazer com homem nenhum. Empurrou-a para o chão, e saiu outra vez.

Lurdes está proibida de sair sem ser com a filha. Artur chegou a casa e ambas tinham saído. Carina entrou logo a seguir. Onde é que estiveste? E onde anda a tua mãe? Agarrou-a pelo braço e enfiou-a no carro. Foram para Moncarapacho. É ali que vive o suposto amante, mas ninguém abriu a porta. Regressaram com o pai sempre a rugir. Lurdes já estava na cozinha e assim que o marido a viu pregou-lhe um estalo e puxou-lhes os cabelos. Desde o início dos anos 90 que Artur vigia todos os movimentos da mulher, desconfiado de que há homens atrás dela. Mas a partir de 2009, o casamento mergulhou em mais uma fase negra. Artur tem cada vez mais dificuldade em ter sexo com mulher. Problemas de erecção. Sempre que as coisas não correm bem, insulta a mulher. Lurdes é a vaca, a ordinária e a puta que não sabe satisfazer um homem e, por isso, condenada a engolir o pénis do marido até ele conseguir sentir-se homem.

Na noite 9 de Abril de 2012, olhou para marido a dormir e viu a oportunidade. Saiu de casa em pijama. Apanharam-na na estrada e levaram-na para uma pensão de Coimbra onde ficou hospedada 15 dias. Transferiram-na depois para a psiquiatria de um hospital do Algarve. Tão cedo não volta a casa, mas por fim, arranjou coragem para denunciar os maus-tratos do marido. Nunca tinha feito uma queixa à GNR, os vizinhos nunca notaram nada, os sobrinhos também não, nem sequer a irmã ou a prima.

O tribunal de Olhão condenou Artur a dois anos e dois meses de prisão com pena suspensa mediante seguintes condições: indemnizar à mulher 3300 euros, frequentar sessões de terapia, manter-se afastado de Lurdes, não podendo comunicar seja por que meio for. Lurdes recorreu. Quer que Artur use pulseira electrónica. Seria o mínimo para quem já lhe fez tantas ameaças. O tribunal não lhe deu razão porque o marido se mostrou arrependido.

Uma vez é suficiente? Olegário e Margarida tiveram um casamento sem sobressaltos durante seis anos. Pelo menos era isso que o marido pensava até, no Verão de 2011, a mulher anunciar que queria o divórcio. Como Olegário estava desempregado, acordaram partilhar casa até os tempos melhorarem. Um ano se passou e está tudo na mesma. A viver às custas de uma mulher que já não o quer. Nunca lhe disse que se sentia humilhado. Quando explodiu de fúria na noite de 28 Junho de 2012, foi total a surpresa para Margarida. Deu-lhe bofetadas sucessivas até lhe partir o nariz, impedindo-a de trabalhar quase um mês.

Olegário sempre foi visto como "pessoa respeitadora e pacífica" entre a vizinhança. Usou essa reputação em tribunal e disse ao juiz que até então nunca encostara um dedo na mulher. Será uma única vez suficiente para ser condenado? Uma vez é o suficiente, confirmou a Relação de Coimbra.

Corto-te às postas Rosa viveu 31 anos casada com Mário até pedir o divórcio. O que é que lhe deu agora? "Não penses que vou sair de casa, porque não saio e corto-te às postas." A partir desse dia perseguiu-a e ameaçou-a de morte. Rosa manteve-se firme na decisão. Atrás do balcão viu o marido entrar na loja e tirar um cutelo de talho de uma bolsa preta. "Eu não disse que te matava?", avisou, antes de lhe dar três golpes na cabeça. A mulher agachou-se e tentou gatinhar até à porta, mas Mário apanhou-a pelo pescoço. Mais três golpes - um na cabeça, outro no ombro direito e o último na mão direita. As investidas continuariam não fosse o cutelo escorregar-lhe da mão. A mulher aproveitou para fugir. Lisete puxou-a pelo braço. Correram para a loja ao lado e trancaram a porta. Veio a polícia e a ambulância do INEM.

Rosa foi para o hospital e o marido também. Mário preferiu matar-se com o mesmo cutelo a ir preso, mas não conseguiu. O estado de Rosa é crítico. Politraumatismo grave: três feridas abertas na região parietal direita com 3 a 6 centímetros, entre outras feridas suturadas. Parece uma mulher de um cartaz a denunciar a violência doméstica. Só o gesto de escovar o cabelo provoca-lhe dores de cabeça.

Rosa, que nunca precisou de uma aspirina, não vive agora sem comprimidos para a depressão e stress pós-traumático. Ela que trabalhava a tempo inteiro na loja de óptica, mais duas horas no hipermercado e ainda umas horas extra nas limpezas, ganhando 915 euros com os três empregos, não consegue trabalhar. Está de baixa e tão cedo não regressa a casa. Passa a vida nos médicos e em exames. Mário foi condenado a 9 anos e 6 meses de cadeia por tentativa de homicídio qualificado.