13.5.21

Dois dias no Porto. A vez dos direitos sociais

Telma Miguelin Contacto

O ponto alto da presidência portuguesa comprometeu a Europa a lutar contra a injustiça social.

O fim de semana longo entre 7 e 9 de maio foi o grande momento de glória para a presidência portuguesa da União Europeia. Provou-se que a conhecida lei de Murphy - que sustenta que tudo o que pode correr mal, vai correr mal – tem exceções. Foi um desfilar de eventos onde os objetivos foram atingidos: a Cimeira Social do Porto, a cimeira em videoconferência com a Índia, a cimeira informal de chefes de Estado e de Governo, no sábado.

E, finalmente, a cereja no topo do bolo, a inauguração da Conferência sobre o Futuro da Europa, em Estrasburgo, no domingo dia 9, quando ainda dois dias antes, na sexta-feira, estava perto de não se realizar por o Parlamento Europeu discordar das propostas. Quem tivesse dúvidas de que a presidência portuguesa fechava o fim de semana em triunfo teria apenas que observar a boa disposição do primeiro-ministro português, António Costa, no domingo, o dia da Europa, a discursar no Parlamento Europeu, em Estrasburgo, em inglês, francês e português.
As metas sociais: da Alfândega ao Palácio de Cristal

Depois de meses a falar de covid-19, transição verde e digital e recuperação económica, o fim-de-semana fez virar a agenda da UE para os direitos sociais e para os cidadãos. A Cimeira Social do Porto foi definida pela presidência portuguesa como o ponto alto do seu semestre (que acaba a 30 de junho). E durante o encontro no edifício da Alfândega do Porto, junto ao Douro, conseguiu-se que a Comissão, o Parlamento Europeu e os parceiros sociais se comprometessem com um plano de ação de defesa dos direitos sociais e do emprego com metas e com prazos específicos.

São eles, genericamente, que até 2030 pelo menos 78% da população adulta estará empregada; pelo menos 60% dos trabalhadores receberão a cada ano formação profissional e que 15 milhões de pessoas, cinco milhões das quais crianças, sejam retiradas do risco de pobreza e exclusão social. Há ainda recomendações mais precisas para se promover políticas sociais e de proteção aos mais vulneráveis.

"Pela primeira vez na história da UE, foi possível um compromisso tão abrangente, tão ambicioso, envolvendo todos os parceiros sociais, a Comissão e o Parlamento Europeu e que eu, enquanto anfitrião, irei depositar para ser submetido amanhã ao Conselho Europeu", disse António Costa, na conferência que encerrou a cimeira de dia 7.

No texto do compromisso, os signatários declaram que irão usar "esta oportunidade única para juntar forças para uma recuperação plena de emprego, baseada numa economia competitiva e que não deixe ninguém para trás". O momento, no pós-covid, entendem os signatários, é o certo para traçar "uma agenda ambiciosa para uma recuperação forte e inclusiva e uma modernização que ande de mãos dadas com o modelo social europeu, de forma a que todas as pessoas beneficiem da transição verde e digital e vivam com dignidade".

O Plano de Ação do Pilar Social, que é o programa onde estão definidas as metas, tinha sido apresentado em março, pelo comissário luxemburguês, Nicolas Schmit, que detém a pasta do Emprego. E é o documento que define como vão ser concretizados os 20 princípios básicos do Pilar Social Europeu, assinado em Gotemburgo em 2017. "Em 2017, os princípios chave foram aprovados", disse Costa. "Agora temos um plano de ação". Foi António Costa, como anfitrião, quem levou o dossiê assinado na Alfândega para a cimeira de líderes dos 27 se pronunciarem.

No sábado, 8 - o dia seguinte à assinatura do compromisso pelos parceiros sociais reunidos no edifício da Alfândega - os chefes de Estado e de Governo, reunidos no Palácio de Cristal assinaram uma declaração em que se comprometeram a criar uma Europa social, reduzir desigualdades, defender salários justos, lutar contra a exclusão e pobreza e lutar contra a discriminação no trabalho.

Naquela que já é conhecida como "Declaração do Porto", entre a extensa lista de ações propostas, os líderes comprometeram-se a dar prioridade ao apoio a jovens, cujas perspetivas de entrar no mercado de trabalho foram seriamente abaladas com a pandemia. E prometeram assegurar a requalificação em contínuo da força de trabalho europeia num momento em que muitos dos empregos perdidos serão declarados extintos.

O pacote de 750 mil milhões de euros para a recuperação das economias, Próxima Geração EU, irá apoiar precisamente a digitalização em massa e a transição energética e climática. Muitos empregos pré-pandemia não verão a luz do dia no pós-pandemia. "A covid-19 pressionou os nossos sistemas de saúde e expôs a Europa a mudanças profundas nos nossos empregos, educação, economia, e vida social, resultando numa crise económica e social profunda", refere o documento, continuando que "esta é a altura certa para coletivamente apoiarmos uma agenda de recuperação e modernização económica e social forte e inclusiva".

Igualmente, os líderes europeus apoiaram a ideia vinda do edifício da Alfândega de incluir as metas do Plano de Ação do Pilar Social, no Semestre Europeu. O que isso significa? Que os relatórios bianuais sobre o desempenho das 27 economias vão avaliar não só aspetos macroeconómicos, como o Produto Interno Bruto (PIB), ou a inflação, mas também indicadores sociais e de bem-estar. Assim, as metas sociais - de desemprego, redução da pobreza, etc - farão parte do diagnóstico periódico dos países. E também das recomendações que a Comissão emite a cada seis meses.

A enfermeira Vitória

A tarefa de criar uma Europa de políticas sociais em que todos os cidadãos terão direitos equivalentes não será, no entanto, tão fácil como as declarações formais fazem prever. As políticas sociais são em grande parte conduzidas a partir das capitais e estão sujeitas a tradições e jogos de poder difíceis de erradicar. Propostas como por exemplo, a de salário mínimo – feita em janeiro pelo comissário Nicolas Schmit, não foram recebidas da mesma maneira em Berlim, em Estocolmo, ou em Lisboa.

Ou ainda, questões simbólicas como a levantada por Viktor Orbán, o primeiro-ministro húngaro, que se bateu por retirar o termo "género" do texto da Declaração do Porto. Salientando que não via por que não usar a expressão discriminação entre homens e mulheres. Orbán defendeu que esta "é a abordagem cristã" e justificou que "nós os cristãos consideramos o género como uma expressão de motivação ideológica, sem um significado preciso." Sendo o desmancha-prazeres oficial das cimeiras europeias, e o primeiro-ministro de um dos países onde a covid-19 está atualmente mais descontrolada, Viktor Orbán salientou ainda que 2a questão social mais importante do momento são as vacinas".

Além dos impedimentos ideológicos, há outros. De ordem prática. A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, aproveitou o seu discurso para pedir aos países que se apressem a concluir a ratificação dos recursos próprios (que permite à UE cobrar impostos) para que possa dar início ao processo de a UE ir pedir dinheiro emprestado aos mercados financeiros internacionais para os fundos de recuperação.

Depois de o Tribunal Constitucional alemão ter aceite a ratificação dos recursos próprios – um processo que deixou a Europa em suspenso - ainda há países que não concluíram este passo. E a presidente do executivo europeu aproveitou também para dar a nota pessoal, como faz sempre. Desta vez, no discurso de abertura da Cimeira Social, exemplificou a força da União Europeia com a carta que recebeu de uma jovem enfermeira portuguesa: "O seu nome é Vitória e ela escreveu-me porque pôde encontrar um emprego graças a um dos programas sociais da nossa União". E concluindo que os trabalhadores que estiveram na linha da frente durante a pandemia são precisamente os mais desprotegidos: 2Todos sabemos que o nosso dia-a-dia depende deles, do seu trabalho e dos riscos que aceitam. A sua contribuição foi inestimável durante esta pandemia. E, no entanto, tantos destes trabalhadores não gozam dos mesmos direitos e da mesma proteção social que outros. A economia social europeia tem que funcionar para eles também".

O que todos sabem é que de Copenhaga 2017 ao Porto 2021, os princípios abstratos transformaram-se em ações práticas e metas objetivas, mas ainda estão sujeitos às vontades e determinação dos Estados-membros.

Um saltinho ao Porto

As cimeiras dois em um do Porto - a Social e a de líderes europeus - foram um regresso a um formato à antiga, em que os líderes se juntaram num único recinto e onde os jornalistas foram permitidos. A última cimeira ainda neste regime normal acontecera no longínquo fevereiro de 2020. Os confinamentos na Europa começaram logo a seguir, em março.

Mas nem todos os líderes estiveram presentes. Mark Rutte, o primeiro-ministro holandês alegando questões internas, e Angela Merkel, referindo que a situação de pandemia na Alemanha é preocupante, decidiram seguir a reunião como vem sendo hábito: no ecrã. O primeiro-ministro de Malta também não foi ao Porto por estar de quarentena.

Nos outros era evidente a alegria de saírem da rotina. Nas filmagens sobre o primeiro dia do fim-de-semana prolongado com muitas imagens externas da zona ensolarada junto ao Douro, via-se Nicolas Schmit, o comissário europeu pelo Luxemburgo, a receber os convidados da cimeira com visível encanto pelo ar livre e pela proximidade. E, além de Ursula von der Leyen, estiveram presentes também os vice-presidentes executivos da Comissão Margrethe Vestager e Valdis Dombrovskis, o Alto Representante Josep Borrell e os comissários Elisa Ferreira, Mariya Gabriel. Por parte do Parlamento Europeu esteve presente o presidente da instituição, David Sassoli, e ido de Bruxelas também, o presidente do Conselho Europeu, Charles Michel.
Vacinas sem patentes? A UE não quer ouvir falar disso

Com Angela Merkel em Berlim, e já de saída da vida política (nas eleições federais em setembro) o presidente francês aproveitou para ocupar uma parte maior do palco. Está prestes a recandidatar-se ao Palácio do Eliseu e no primeiro semestre de 2022 será a França a ocupar a presidência da União Europeia. Por isso, Emmanuel Macron já se vê como a nova Merkel. Irritou-se com os jornalistas que lhe perguntaram como iria a Europa responder à iniciativa de grande valor moral da administração norte-americana de pedir o levantamento das patentes de vacinas.

Macron insistiu que em termos de generosidade mundial são os EUA que têm que receber lições da velha Europa. Macron argumentava que a UE tinha continuado a exportar vacinas, num total de mais de 178 milhões de doses desde o início de fevereiro para 45 países diferentes. Enquanto isso, os EUA teriam proibido a exportação de vacinas desde o início.

No jantar informal dos líderes europeus, na sexta, a questão das patentes foi o prato principal, tal como estava previsto desde que Biden anunciou a ideia de apoiar a iniciativa da Índia e da África do Sul, apoiada pela Organização Mundial de Saúde, de pedir a suspensão da propriedade intelectual das farmacêuticas sobre as vacinas contra a covid-19. E tanto Macron como Merkel apoiam a teoria da Comissão Europeia de que não é a libertação de patentes que vai resolver a crise nos países pobres.

Mas que o que é preciso é que países como os EUA e o Reino Unido comecem a exportar vacinas, que as farmacêuticas abram licenças de produção e que igualmente os países parem de bloquear a exportação de componentes e matérias-primas. Ou seja, a posição da União Europeia é de que é a falta de capacidade de produção e não o lucro das farmacêuticas o que está a impedir as vacinas de chegarem aos braços do mundo mais pobre e mais em risco.