A meta de empregar pelo menos 78% da população dos 20 aos 64 anos até 2030, fixada pela Comissão Europeia, não envolve só quantidade, a qualidade do trabalho é a “questão principal”, considera Frederico Cantante.
“Não me parece mal que existam metas quantitativas, (…) mas essa dimensão (…) não deve ofuscar metas essencialmente qualitativas”, por exemplo salários decentes e combate à precariedade laboral, sustenta o investigador, em entrevista à Lusa, a propósito da Cimeira Social, agendada para 7 de maio, no Porto.
“Alguns princípios estão acautelados”, mas “o diabo está sempre em como é que isso se concretiza, quais são as ações que efetivamente vão ser levadas a cabo, a nível europeu e a nível nacional, para os atingir”, assinala o membro do Laboratório Colaborativo para o Trabalho, Emprego e Proteção Social (CoLabor).
Frederico Cantante saúda “a agenda política” do plano de ação sobre o Pilar Europeu dos Direitos Sociais, proposto pela Comissão, porque se diferencia “da que dominou a Europa pelo menos desde 2009/2010”, mas realça que “uma manifestação de princípios” é isso mesmo: princípios.
“Apesar de tudo, parece existir uma maior consciência de que a flexibilização extrema e a precarização das relações laborais é algo que deve ser evitado”, concede.
Um sinal que considera positivo é o papel atribuído aos parceiros sociais “na calibração das medidas concretas”.
Cantante sublinha que não basta regular as relações laborais para combater a precariedade, como o caso português demonstra.
“Estávamos a crescer bastante, para aquilo que era a nossa história recente, deixámos de ter défice público num ano, o emprego aumentou muito, o desemprego diminuiu também bastante, houve um ligeiro aumento do rendimento das famílias, mas a crise depois veio demonstrar como toda essa euforia, todos os avanços que foram dados, na verdade, eram bastante frágeis. Essa fragilidade em parte deve-se à fragilidade do tecido empresarial em Portugal”, observa.
São, por isso, necessárias “medidas destinadas a alterar o perfil de especialização da economia portuguesa”, que é “muito especializada em serviços que tipicamente são sazonais”, estima, defendendo uma “inversão de marcha”.
“Do ponto de vista qualitativo, e a pandemia veio (…) ilustrar isso muito bem, uma parte muito significativa do emprego que foi criado [em 2019] foi um emprego precário, mal pago, (…) desprotegido”, descreve.
Em Portugal – aponta o doutorado em Sociologia –, “a precariedade das relações laborais e as relações laborais atípicas têm uma dimensão preocupante, tal como são preocupantes os baixos salários, que continuam a ter uma dimensão muito relevante na economia portuguesa”.
Propondo “ações práticas dirigidas a combater a precariedade laboral”, o investigador lembra que “os jovens são o grupo etário onde a precariedade é mais prevalecente, o que já tinha acontecido na crise de 2009”.
E constata que “os contratos de trabalho atípicos tiveram um aumento brutal nos últimos anos”, atingindo uma dimensão “absolutamente desproporcionada”.
Em 2019, a UE no seu conjunto esteve muito próxima de atingir os 75% de emprego fixados como meta para 2020. Porém, a pandemia de covid-19 interrompeu “o progresso positivo do emprego em seis anos, com uma taxa de emprego de 72,4% no terceiro trimestre de 2020”, reconhece a Comissão Europeia, no enquadramento do plano de ação que fixa as metas para 2030.
O investigador entende que, para que a quantidade de emprego seja acompanhada por qualidade, é preciso olhar também para as metas que não se cumpriram até 2020.
A UE não cumpriu o investimento de 3% do PIB em investigação e desenvolvimento (“Portugal ficou pela metade”), nem conseguiu atingir a redução da população em risco de pobreza e exclusão social que tinha proposto. “Houve uma diminuição a nível europeu, mas o objetivo ficou pela metade”, nota.
Também aqui – realça – “o diabo volta a estar nos pormenores”, com prestações sociais que só protegem situações extremas ou salários mínimos que não protegem da pobreza uma significativa população trabalhadora.
Simultaneamente, “as discriminações associadas à questão do género continuam a ser abissais no mercado de trabalho”, algo “muito evidente” em Portugal, repara.
O investigador admite que “o teletrabalho pode ser uma modalidade laboral emancipatória, que melhora a qualidade de vida dos trabalhadores e pode servir os interesses das empresas”, mas alerta que “pode também ter consequências negativas, para um lado e para o outro, ou para os dois”, se não for bem regulamentado. E, aqui, “a pressa é inimiga das boas soluções”, alerta.
“Não se deve ignorar esta realidade, deve-se pensar em formas de regulamentação que salvaguardem os interesses de ambas as partes”, sugere, assinalando que, se “no início houve uma enorme euforia” com o teletrabalho, atualmente “uma parte significativa dos trabalhadores” já “quer regressar ao local de trabalho”.
A Cimeira Social é apresentada como um momento central da Presidência Portuguesa do Conselho da União Europeia (UE), que termina a 30 de junho.