3.5.21

Pobreza no Porto. "É muito triste querer trabalhar e não conseguir"

Por Joana Faustino e Maria Moreira Rato, o Observador

O município do Porto fornece a quem necessita cerca de 15 mil cabazes alimentares mensais, no entanto, Adelaide e Ana continuam a sentir as dificuldades na pele.

“Não tenho dinheiro para lareiras, caloríficos, ar condicionado ou seja o que for. Tanto luxo e dinheiro também acabam por turvar a mente”, começa por dizer Adelaide (nome fictício), residente no concelho do Porto. “Sempre me habituei a viver com pouco”, adianta a mulher de 71 anos que é uma das 331 998 beneficiárias de pensões de velhice no distrito, segundo os dados mais recentes disponíveis no site oficial da Segurança Social. Mais de dois milhões de portugueses encontravam-se em risco de pobreza ou exclusão social em 2020, ano marcado pela pandemia da covid-19, face aos rendimentos de 2019, indicam os dados divulgados pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) a 19 de fevereiro. Este indicador conjuga as condições de risco de pobreza, de privação material severa e de intensidade laboral per capita muito reduzida.

Privação material severa nos idosos “Tenho a dizer que nos meses mais frios, viver dentro de casa foi insuportável. Vesti mais roupa, embrulhei-me nos edredãos. Quem dera aos sem-abrigo terem tanta roupa, cobertores e agasalhos como nós”, esclarece a idosa, que sempre se considerou “uma sortuda”, mesmo vivendo com dificuldades financeiras, e ilustra a taxa de 6,7% de privação material severa na região Norte veiculada pelo Observatório Nacional de Luta Contra a Pobreza, em 2019.

Nos dados recolhidos e analisados pelo INE em 2020, a taxa de privação material dos residentes em Portugal diminuiu para 13,5% (15,1% em 2019) e a taxa de privação material severa para 4,6% (5,6% em 2019). Esta realidade não é de estranhar no país onde, segundo o relatório mais recente da Estrutura de Monitorização do Estado de Emergência, cerca de 69% dos óbitos registados entre 28 de dezembro e 31 de janeiro foram devido à covid-19 e cerca de 26% ao frio extremo, tendo sido este o “o período de excesso de mortalidade mais longo desde 1980 e com uma intensidade extraordinária, em especial durante o mês de janeiro”.

Adelaide vive sozinha e consegue manter a sua autonomia. Porém, no Porto, foi feito um “mapeamento das pessoas que vivem sós, tendo sido visitados quase 3000 idosos no último ano para que se verifique se têm retaguarda familiar ou não” e também se apostou “na teleassistência como mecanismo mais atual que tem um raio de atuação de 200 metros, colocado no pulso”, para proteger esta camada populacional, segundo Fernando Paulo, vereador da Câmara do Porto com os pelouros da Habitação e Coesão Social, assim como da Educação.

“Percebemos que a pirâmide etária da cidade também mudou, porque cerca de 30% da população é idosa, portanto, também temos que alterar o paradigma”, começa por explicar. “Há 10 ou 20 anos, as políticas eram muito direcionadas para os jovens e para a população adulta mas, neste momento, temos de reforçar o apoio aos mais velhos, para que durar mais anos signifique ter qualidade de vida”, esclarece o dirigente que foi também vereador da Câmara de Gondomar entre 1994 e 2013.

Apesar de Adelaide não usufruir de medidas de apoio, mas admitir que “come mal”, Fernando Paulo frisa que o município privilegia “o envelhecimento ativo” e o apoio aos mais idosos e, assim, a munícipe poderia aproveitar “a distribuição dos 15 mil cabazes de alimentos mensais que servem para que as famílias confecionem as suas refeições”.

Por outro lado, se não tivesse reunidas as “condições de saúde e económicas” para tal, poder-lhe-iam ser entregues “refeições quentes” no âmbito do protocolo que a Câmara tem com as cantinas sociais “que asseguram respostas às famílias”, sendo que, no ano passado, foram servidas 150 mil refeições através da colaboração com cadeias de supermercados.

“É como se fosse um fantasma” “Resido em Portugal há 30 anos, desde os sete, e não consigo fazer aquilo que mais amo: trabalhar. Está tudo parado e eu cada vez me endivido mais. Como posso arranjar emprego sem documentação?”, questiona Ana, uma das mais de 150 mil brasileiras que, pelos dados de 2019 do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, residiam em Portugal, um aumento de 43% em relação a 2018.

Ainda que muitos tenham regressado ao país de origem no contexto da pandemia, Ana ficou e, assim, se a sua situação estivesse regularizada, teriasido incluída no grupo de 84.073 portuenses que estavam inscritos nos centros de emprego em dezembro do ano passado, mais 17.440 relativamente a fevereiro (o que representa um aumento de 26%), mês que antecedeu o primeiro confinamento devido à covid-19, segundo as estatísticas do Instituto do Emprego e Formação Profissional (IEFP).

Nos dados da Segurança Social relativos ao distrito do Porto, no mês passado existiam 47.191 beneficiários de prestações de desemprego, mas a brasileira não pode ser uma delas. “Eu não tenho dinheiro para contratar um advogado. Somos um casal com duas filhas, tenho outras duas maiores que já não estão a meu cargo, só o meu marido trabalha e tem de pagar a renda, a água e demais contas”, desabafa, adiantando que não consegue encontrar um emprego “nem sequer apoio da Segurança Social”, pois “é como se fosse um fantasma”.

Esta situação ocorre porque, depois do visto de residência ter caducado, em 2018, não teve oportunidade de renovar a autorização de residência: “Tenho de ter o meu passaporte e o cartão de eleitor em ordem. Quando fui ao consulado, antes de tudo fechar, o sistema para emissão de cartão de eleitor não funcionava. Depois, disseram-me para fazer o cartão online. Porém, há dados que não tenho, como o CPF [equivalente ao número de contribuinte], porque vim para cá muito nova”, confessa.

Naquilo que diz respeito “aos imigrantes que, fruto da pandemia, deixaram de ter trabalho”, Fernando Paulo explica que a Câmara adequa os cabazes alimentares fornecidos às famílias carenciadas “às necessidades através de mediadores que auxiliam à quebra da barreira linguística” e, deste modo, propiciam a possibilidade de confeção de refeições adaptadas a cada cultura, como é o caso da comunidade do Bangladesh.

“Não consigo fazer nada para renovar o passaporte e, por conseguinte, obter a residência. Tenho uma renda de 525 euros, água, luz (contas a acumular) e não posso mesmo investir num advogado. Não me livro dos 250 euros por o visto ter caducado nem dos 120 euros de renovação do passaporte. É muito triste querer trabalhar e não conseguir. A minha área é a hotelaria, amo o que faço, mas cada vez mais me sinto desanimada”, conclui Ana.

Apoio aos sem-abrigo “Temos, de facto, preocupações que não são visíveis, muito trabalho social que se faz”, reconhece Fernando Paulo, avançando que é essencial “potenciar os recursos para investir nas áreas da inovação do empreendedorismo e colocá-los ao serviço da cidade para ter um ponto de vista crítico, mas também de modelos de fazer a cidade e torná-la mais feliz”.

Além dos mecanismos mencionados, no âmbito da Estratégia Nacional para a Integração das Pessoas em Situação de Sem-Abrigo, a Câmara do Porto assume a coordenação do NPISA Porto – Núcleo de Planeamento e Intervenção Sem-Abrigo. A título de exemplo, existem 201 sem-abrigo em Vila Nova de Gaia.

“Cabe ao NPISA fazer o diagnóstico, o planeamento e ativar as redes de resposta às pessoas em situação de sem-abrigo na cidade, potenciando o trabalho em rede e gerando complementaridade entre as várias instituições e entidades parceiras”, elucida Fernando Paulo, sendo que este núcleo encontra-se organizado em seis eixos de intervenção: acompanhamento social, emprego e formação, habitação, participação e cidadania, saúde e voluntariado.