3.5.21

Pobreza em Lisboa. "Não sobra nada e também não tenho apoios"

Por Joana Faustino e Maria Moreira Rato, in iOnline

Laura, mãe numa família monoparental, usufrui dos apoios alimentares fornecidos pela Câmara de Lisboa. Marisa e a filha, por outro lado, sobrevivem com a pensão de invalidez e de alimentação.

“Divorciei-me do meu marido há um ano. Recebo 438 euros de subsídio de desemprego”, começa por desabafar Laura (nome fictício), uma das 241.263 beneficiárias de prestações de desemprego no distrito de Lisboa. Mãe de um menina de cinco anos, recebe uma pensão de alimentos no valor de 100 euros, uma medida aplicada nos casos de divórcio e noutros em que “os alimentos devidos ao filho e a forma de os prestar são regulados por acordo dos pais, sujeito a homologação”, de acordo com a lei. “É muito difícil. Neste momento, estamos a viver com os meus pais e é isso que me ajuda porque, de outro modo, não sei o que faria”, explica a jovem de 30 anos que trabalhou em várias áreas, como a da restauração e a da estética, “mas os contratos começaram a não ser renovados”.

Vontade de trabalhar versus desemprego “Há relatos de pessoas que mostram uma grande vontade de se envolverem mais no mundo laboral”, elucida Fernando Diogo, professor de Sociologia da Universidade dos Açores e coordenador do estudo “A Pobreza em Portugal – Trajetos e Quotidianos”, da Fundação Francisco Manuel dos Santos. Nesta obra, traçou quatro perfis de pobreza em território nacional: reformados, precários, desempregados e trabalhadores.

“Este perfil dos precários é o mais heterogéneo dos quatro, porque fica entre os desempregados e os trabalhadores. Há várias categorias sociais que têm taxas de pobreza muito elevadas, como famílias de duas ou três crianças e famílias monoparentais”, diz, sendo esta última a realidade de Laura. “Descobrimos que muitos dos indivíduos que estão no perfil dos precários são os filhos adultos dos trabalhadores e vivem em casa dos pais”, avança.

“Em abril, recebi o cabaz solidário de frescos e agora pedi apoio alimentar outra vez à Câmara”, afirma, referindo-se à iniciativa que ajuda 1500 famílias. O objetivo primordial deste projeto passou, em primeira instância, por permitir aos produtores que escoassem os seus produtos, depois do encerramento das feiras onde os vendiam, e, por outro lado, apoiar as famílias no pico da pandemia. Deste modo, a Câmara Municipal de Lisboa (CML) adquire os produtos aos produtores e depois faz a distribuição pelas famílias mais necessitadas.

“Aos fins de semana, já fui buscar o almoço e o jantar em regime de take-away a alguns restaurantes”, declara Laura, que usufrui do Regime Extraordinário de Apoio Alimentar com envolvimento dos estabelecimentos de restauração locais, um complemento ao Programa Municipal de Apoio Alimentar.

Este foi criado no âmbito do Fundo de Emergência Social do Município de Lisboa – vertente de apoio a agregados familiares e através das freguesias, um regime extraordinário de apoio alimentar a famílias carenciadas, com envolvimento dos estabelecimentos de restauração.

“O apoio financeiro a atribuir é especialmente dirigido aos agregados familiares em situação de vulnerabilidade social e destina-se exclusivamente à aquisição de menus refeição a disponibilizar pela restauração local, preferencialmente em regime de take-away, aos fins-de-semana ou em períodos em que não operem outras respostas sociais, ou em que estas não assegurem por completo a satisfação das carências verificadas no terreno”, pode ler-se no site oficial da autarquia. “Distribuímos mais de 10 mil refeições por dia”, garante fonte oficial do pelouro dos direitos sociais da CML ao i.

Incapacidade financeira para equipamento de proteção individual “Além disso, uma medida que tem sido muito benéfica para nós é a possibilidade de levantamento dos kits de máscaras na junta de freguesia. Pode parecer que não, mas são sempre uns euros que poupamos e sabemos que estamos protegidos”, reconhece, ilustrando as conclusões do Barómetro Covid-19 da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP), em maio, que comprovou que as pessoas com menos rendimentos e com baixa escolaridade eram aquelas que tinham mais dificuldades em comprar as máscaras de proteção e em utilizá-las adequadamente.

É de realçar que, dos que responderam ao inquérito “Opinião Social”, da ENSP, 60% sentiram dificuldades em adquirir este equipamento de proteção individual. Os dados indicavam que uma em cada duas pessoas que ganham menos de 650 euros tinham dificuldades em comprar máscaras, pelo facto de “serem caras”. Por seu lado, apenas uma em cada 10 pessoas com rendimentos superiores a 2 mil euros reportava esta dificuldade.

“A pensão de alimentos é de 75 euros” “Eu tenho uma reforma por invalidez absoluta, neste momento, acabada de ser aumentada para 490 euros e uns cêntimos”, afirma Marisa (nome fictício), de 44 anos, uma das 178.577 portuguesas beneficiárias desta pensão que, em Lisboa, é recebida por 24.542 pessoas.

“Tenho um dependente em idade escolar, somos um agregado monoparental. A pensão de alimentos do tribunal é de 75 euros”, lamenta a mulher, cujas vivências vão ao encontro dos três D da pobreza enunciados por Fernando Diogo: o desemprego, a doença e o divórcio. “Para todos os efeitos, uma quebra de união de facto, formal e informal, tem o mesmo impacto. Não vemos só a separação dos orçamentos mas também que, em alguns casos, os divórcios tiveram impacto na inserção no mercado de trabalho porque complicam extremamente a vida às pessoas”, explica o investigador do Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais. Além do desemprego, lembra que a doença “tem um impacto grande na vida destes indivíduos”.

“Acrescento que tenho abono de família B e não tenho direito às tarifas sociais da água. Neste momento, também sou ‘obrigada’ a pagar um passe mensal, este mês já o fiz para a minha filha ir para a escola. Sou obrigada a ter Internet e computador para ela estudar”, declara, exemplificando as dificuldades no acesso ao ensino à distância. Recorde-se que, já em julho de 2020, através do estudo do Centro de Investigação em Estudos da Criança (CIEC) da Universidade do Minho, que visava compreender como os professores se adaptaram ao contexto de ensino e aprendizagem à distância e analisar o modo de avaliação realizada, questionados sobre as dificuldades enfrentadas com o método de ensino e avaliação à distância, a maioria dos professores (58,4%) referiu a falta de equipamentos adequados para os alunos como o principal entrave.

“Não sobra nada e também não tenho apoios, pois só me deram 47% de incapacidade na junta médica no ano em que me reformei”, lastima a mulher que é uma das cidadãs que se encontra em situação de incapacidade permanente e definitiva para toda e qualquer profissão ou trabalho.

Marisa poderia usufruir do Programa de Arrendamento Apoiado, “dirigido a famílias de baixos recursos, em que as candidaturas são classificadas em função da carência habitacional e socioeconómica do candidato e seu agregado”, como é possível ler no site oficial da CML. “Existem vários programas de apoio às rendas. No pelouro dos direitos sociais, transferimos para as Juntas de Freguesia a verba do Fundo de Emergência Social, que pode servir para fazer face a emergências de rendas mas não só, pelo que não temos dados segmentados sobre rendas”, adianta a fonte da Câmara de Lisboa.

“Uma coisa que caracteriza muito a pobreza em Portugal é que é tradicional: tende a ser persistente ao longo da vida e a reproduzir-se entre gerações. Isso não significa que não haja pessoas que ingressaram há pouco tempo na pobreza, mas a maior parte das pessoas sempre a viveu”, explicita Fernando Diogo. Já em 2019, o Estudo sobre o Poder de Compra Concelhio, do Instituto Nacional de Estatística (INE), o concelho de Lisboa apresentava as maiores diferenças entre os mais ricos e os mais pobres: o rendimento mínimo dos 10% mais ricos era 13,7 vezes maior do que o rendimento máximo dos 10% mais pobres (a média nacional é de 7,5). Dos 299 concelhos para os quais existiam dados disponíveis, o rendimento bruto anual máximo dos 10% de população mais pobre de Lisboa (3.489 euros em 2017) era mais baixo do que o de 239 concelhos.

A realidade em tempos de pandemia não será melhor: segundo dados do Eurostat relativos a 2019, divulgados no passado mês de fevereiro, um em cada cinco portugueses vive em risco de pobreza, sendo que, devido à inexistência de dados mais recentes, não se conhece o impacto total do novo coronavírus no panorama nacional. Um relatório da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) aponta para que, devido à pandemia, mais de 100 milhões de pessoas vivem numa situação de pobreza extrema e 270 milhões passam fome.