Inês Nadais, in Público on-line
Terceiro relatório intercalar do Inquérito aos Profissionais Independentes das Artes e da Cultura confirma elevada desprotecção social no sector.
Tal como estão actualmente configurados, os sistemas da Segurança Social e das Finanças “não se adequam à realidade laboral dos profissionais independentes das artes e da cultura, caracterizada por períodos de interrupção de actividade remunerada que determinam descontinuidades” nas carreiras contributivas, tipicamente “curtas, muito curtas ou tendencialmente abaixo do tempo de actividade” do trabalhador. Esta é a principal conclusão do terceiro relatório intercalar, divulgado esta terça-feira, do Inquérito aos Profissionais Independentes das Artes e da Cultura, estudo que o Ministério da Cultura, através da Direcção-Geral das Artes, encomendou ao Observatório Português das Actividades Culturais (OPAC).
Numa altura em que, apesar dos protestos de várias entidades representativas, o recentemente aprovado Estatuto do Trabalhador da Cultura se prepara para vir regular um sector caracterizado pela precariedade laboral e pela desregulamentação crónica — o diploma entrou esta quarta-feira em consulta pública —, os novos dados apurados pela equipa do ISCTE-IUL coordenada por José Soares Neves confirmam o padrão de desprotecção social que a pandemia de covid-19 veio expor e exponenciar. A desconformidade entre as características atípicas da actividade profissional nesta área e a rigidez dos parâmetros da Segurança Social e das Finanças tem sido apontada, aliás, como causa de muitas das dificuldades com que dezenas de trabalhadores da cultura se têm deparado na hora de aceder aos apoios extraordinários lançados pelo Governo para mitigar os efeitos da paragem provocada pela actual crise sanitária.
“O enquadramento na Segurança Social e nas Finanças dos profissionais independentes ganhou maior relevância com a crise pandémica devido à necessidade de protecção social e às implicações na definição do Estatuto dos Profissionais da Cultura. Neste contexto, as nomenclaturas em uso têm sido igualmente objecto de debate, desde logo como parâmetros de acesso (ou não) aos apoios sociais”, notam os autores do relatório logo na introdução.
97%dos inquiridos estão ou já estiveram inscritos no sistema, “mas são pouco mais de metade (52%) os que fizeram toda a sua carreira contributiva unicamente como profissionais do sector artístico e cultural”
Os dados obtidos pelo OPAC acerca da relação deste grupo profissional com as Finanças são sintomáticos: 97% dos inquiridos estão ou já estiveram inscritos no sistema, “mas são pouco mais de metade (52%) os que fizeram toda a sua carreira contributiva unicamente como profissionais do sector artístico e cultural”. Mais de um terço (34%) acumulam a inscrição como profissionais do sector artístico com a inscrição noutros sectores de actividade e 11% estão inscritos apenas noutros sectores.
Já que no diz respeito ao enquadramento na Segurança Social, 88% dos inquiridos responderam estar inscritos no momento do inquérito (dos restantes 12%, um em cada três assume nunca ter estado inscrito). Mas aproximadamente metade destes profissionais (49%) apresentam carreiras contributivas muito curtas ou curtas com, no máximo, dez anos de descontos, sublinha o relatório, chamando a atenção para as implicações deste quadro “em termos de acesso a direitos e protecção social”. E para 59% o tempo de carreira artística supera o período de descontos para a Segurança Social, o que sugere “situações de desprotecção social”.
Um padrão de descontinuidade
A interrupção da actividade profissional e a acumulação com outros ramos de actividade são outras das características do trabalho cultural independente, confirmou o OPAC, admitindo que ambos os traços possam ter-se exacerbado com a pandemia. “Aproximadamente um em cada três profissionais (37%) interrompeu alguma vez a sua actividade profissional no sector (...). Para uma larga maioria (66%), a interrupção deveu-se à falta de trabalho remunerado no sector. A procura de uma situação profissional mais satisfatória foi o segundo motivo invocado (24%)”, lê-se no relatório. Alguns dos inquiridos, prosseguem os autores do estudo, apontam razões como a intermitência, a imprevisibilidade do trabalho e o custo da manutenção das obrigações com a Segurança Social e com as Finanças.
A questão — que os critérios de acesso aos apoios extraordinários tornaram determinante — do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (CIRS) e da Classificação de Actividades Económicas com que estes profissionais estão registados nas Finanças é outro tópico abordado neste terceiro relatório intercalar. Quanto ao CIRS, os dados do inquérito demonstram uma forte concentração em três códigos (principais) referentes a actividades do sector artístico e cultural: 2010 (Artistas de teatro, bailado, cinema, rádio e televisão), correspondente a 26% dos inquiridos; 2013 (Músicos), indicado por 15% dos inquiridos; e 2015 (Outros artistas), com 9% dos inquiridos.
Tal como se esperava, o código 1519 (Outros prestadores de serviços), cujo uso tem sido factor de exclusão no acesso aos referidos apoios, detém um elevado peso na amostra, estando 18% dos inquiridos registados com este CIRS principal. “O peso deste código é ainda mais reforçado quando se têm em conta os CIRS secundários”, sublinha o OPAC, explicando que, no total, representam 31% da amostra, um valor "ilustrativo das dificuldades de enquadramento" destes profissionais.
É comum a ideia de que as disposições legais são desadequadas à especificidade do trabalho artístico"Terceiro relatório intercalar do Inquérito aos Profissionais Independentes das Artes e da Cultura
Não é também “despicienda”, prossegue o relatório, “a percentagem de inquiridos que não sabe/não responde” a esta pergunta: 16% desconhecem o CIRS principal com que se registaram nas Finanças e 24% o secundário. Dados que “parecem apontar para alguma falta de conhecimento (ou de informação) sobre a importância da escolha destes códigos e suas correspondentes implicações, incluindo no que diz respeito ao cálculo dos diferentes coeficientes do IRS”, reflectem os autores do estudo.
No que diz respeito aos códigos CAE, verifica-se que os mais representados na amostra são o 90030 (Criação artística e literária), assinalado por 14% dos profissionais inquiridos como CAE principal e por 5% como CAE secundário; 90010 (Actividades das artes do espectáculo), correspondente a 14% e 3% da amostra, respectivamente; 90020 (Actividades de apoio às artes do espectáculo), relativo a 6% e 2% da amostra; e 59110 (Produção de filmes, de vídeos e de programas de televisão), assinalado por 6% e 1% dos inquiridos. De novo, “7% dos inquiridos não estão inscritos em qualquer destes códigos CAE associados a actividades culturais e criativas, mas sim noutros”, abrangendo “actividades muito diversificadas, sendo de destacar as ligadas à distribuição e comercialização de produtos, organização de eventos, consultadoria, alojamento e restauração”.
O questionário contemplava ainda uma pergunta aberta sobre o enquadramento legal do trabalho no sector artístico e cultural, sendo que um dos aspectos mais salientes nas respostas, destaca o relatório, “é a descrença na eficácia da lei e do quadro regulamentar do sector”. “É comum a ideia de que as disposições legais são desadequadas à especificidade do trabalho artístico, ou mesmo que não são cumpridas, eventualmente nem fiscalizadas, do que resulta na prática uma extrema fragilidade dos trabalhadores perante potenciais empregadores ou contratantes”, dizem os autores do estudo, chamando a atenção para a abundância de relatos de “situações de precariedade ou irregularidade dos vínculos laborais, não apenas em empresas, mas também nas administrações públicas ou organismos na sua esfera”, e em particular para os casos de falsos recibos verdes.
Resultado de um inquérito por questionário em que participaram 1727 profissionais independentes — a que se seguirá, até ao final de Junho, uma fase de entrevistas a um conjunto alargado de trabalhadores —, este terceiro relatório sucede a dois relatórios intercalares anteriores, dedicados, respectivamente, aos perfis social e laboral destes profissionais e à caracterização das relações laborais e remunerações do sector.