29.3.09

O mais preocupante é a burocracia

Maria José Oliveira, in Jornal Público

Responsável não acredita que as celebrações dos 100 anos da República irão ser um "factor de divisão" com a Igreja Católica


O programa oficial das comemorações do centenário da República começa a 31 de Janeiro de 2010, no Porto, e prolonga-se até ao Verão do ano seguinte, com projectos a realizar em todo o país. Algumas das propostas foram já apresentadas pela Comissão Nacional para as Comemorações do Centenário da República (CNCCR), presidida por Artur Santos Silva.

Contudo, o orçamento estipulado (10 milhões de euros) só foi publicado na passada sexta-feira e a comissão corre contra o tempo. "Em relação ao futuro, acho que é preciso agilizar o funcionamento da comissão, porque vamos trabalhar com muito pouco tempo", diz Santos Silva.

Presidente do conselho de administração do BPI, Santos Silva admite ter aceitado estas funções em homenagem à sua história familiar de "republicanos convictos" - o bisavô foi um dos revolucionários do 31 de Janeiro (1891); o avô ministro da Instrução e voluntário na I Guerra Mundial; e o pai, resistente antifascista, foi várias vezes preso pela PIDE. "Foram estímulos determinantes para aceitar estas funções."

A Comissão Nacional para as Comemorações do Centenário da República tem um orçamento de 10 milhões de euros para gerir até 2011. Na primeira conferência de imprensa, disse que se tratava de "meios austeros". É um montante insuficiente para as ambições da comissão?

É o montante que permite concretizar um programa digno, mobilizador e que cobre os aspectos principais da missão. Naturalmente que, se virmos o que foram as comemorações de centenários da República noutros países, estes meios são austeros. Quando tomei posse, disse que entendia que a CNCCR devia trabalhar num quadro de austeridade. Os trabalhos que realizámos tiveram em conta essa preocupação: temos meios contidos, mas queremos fazer uma realização digna do centenário da República. O montante que a comissão propôs foi aquele que o Governo aprovou.

Há sempre hipótese de o montante aumentar, uma vez que está previsto o mecenato.
Estamos a prever mobilizar esses meios. Mas temos presente o ambiente que hoje se vive, que não é muito favorável. Fomos procurando ser realistas nessa matéria, mas pode acontecer que muitas das iniciativas possam beneficiar de apoios de empresas e que isto possa ir mais longe do que aquilo que tínhamos pensado.

O que me parece mais preocupante neste momento é o tempo e a burocracia que condiciona a actividade da comissão.

A gestão do orçamento é condicionada por factores burocráticos?

Penso que sim. Em relação ao futuro, acho que é preciso agilizar o funcionamento da comissão, porque vamos trabalhar com muito pouco tempo. As maiores condicionantes são o tempo e a burocracia. O orçamento para o programa, aprovado a 19 de Fevereiro, foi publicado na passada sexta-feira, significando que só a partir de agora será possível definir os critérios de execução do orçamento.

Quero acreditar que vai funcionar de uma maneira suficientemente flexível. O que precisamos efectivamente é que, quando os projectos se começarem a desdobrar e a necessitar de respostas prontas, essas condições venham a ser criadas para não existirem constrangimentos.

Compreendo que o controlo dos gastos públicos tem de estar submetido a uma grande disciplina, mas, pelos objectivos que temos e pelas condicionantes temporais, este processo tem de ser agilizado para podermos "levar a carta a Garcia".

Já disse que algumas sugestões da comissão de projectos, presidida por Vital Moreira, tinham sido aproveitadas para o programa oficial. Poderia destacar algumas dessas propostas?

O trabalho dessa comissão foi de grande qualidade. Tudo o que era importante pensar e fazer está lá. Entendemos importante não apenas celebrar uma data, mas é igualmente significativo ver se os valores, os protagonistas e as mudanças políticas que marcaram a I República podem ser uma fonte inspiradora para o futuro. Olhar para trás e para a frente foi algo que esteve muito presente nos trabalhos dessa comissão. Assim como contribuir para a educação para a cidadania dos mais novos. Os eixos mais importantes do programa têm a ver com as crianças e os jovens, como é o caso da República nas Escolas, a República nos Municípios e os Jogos do Centenário, desenvolvidos com o apoio de entidades diversas.

No âmbito das "intervenções estruturais", essa comissão propôs a revisão do Código Civil de forma a permitir o casamento entre homossexuais. Mas nas competências da CNCCR não se encontram propostas legislativas. O programa poderia ir mais além das celebrações?

O que está proposto não é apenas uma celebração. É também um desafio para o futuro. É uma celebração no sentido de que devem ser revalorizadas as mudanças da I República, os valores da democracia, da igualdade de oportunidades, do combate à pobreza. É importante procurar saber como é que esses valores podem ser um estímulo para que enfrentemos, 100 anos depois, o futuro com uma atitude vencedora. O programa procura preparar-nos melhor para enfrentar os desafios, como por exemplo, o nosso papel na Europa e no mundo, os desafios da economia, a procura de uma república moderna, mais eficiente e democrática.

No final do ano passado, o bispo do Porto, D. Manuel Clemente, foi convidado para a comissão consultiva (CC). Alguns meses antes, membros da Igreja Católica (IC) anunciaram a divulgação, em 2010, de uma investigação com "objectividade histórica" sobre as relações entre a IC e a I República. As comemorações vão estender-se até 2011, precisamente para celebrar os 100 anos da Lei da Separação. Perante esta posição da IC, não poderá haver fracturas?

Quero acreditar que não. Dos contactos que temos mantido com os mais altos responsáveis da Igreja Católica, não acreditamos que esta comemoração vá ser um factor de divisão. Evidentemente que será feita investigação em múltiplos domínios e um dos temas que vão ser tratados, e que terá como responsável o professor Fernando Catroga, é a República e laicidade. Mas a Lei da Separação, um século decorrido sobre a sua publicação, é objecto de uma apreciação mais serena. O Estado laico está adquirido. Não acredito que vamos ter aqui confrontos. O Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica vai promover iniciativas em colaboração connosco.

Não lhe parece, portanto, que o programa possa ser acusado de realçar o anticlericalismo da I República.

Tem de ser feito um trabalho de reflexão desapaixonada - e tem-no sido - sobre o que se passou. Houve muitos aspectos positivos da I República; houve aspectos mais discutíveis. Tudo o que se passou vai ter de ser tratado com verdade histórica e com leituras diversas. No diálogo com a IC, ficámos convencidos de que não há preocupações relevantes. Na CC estão reflectidas linhas e sensibilidades plurais sobre esta problemática. Estou profundamente convicto de que não vamos reabrir feridas e também que da parte da IC não há nenhum interesse em fazê-lo.

Depois de serem conhecidas as linhas gerais do programa, ouviram-se críticas sobre a falta de referências ao Estado Novo - a comissão de projectos propôs iniciativas evocativas da resistência republicana à ditadura -, e também a Causa Real acusou a CNCCR de não incluir nada sobre a monarquia.

Para se chegar à República, houve muita coisa antes - o regime monárquico atravessava uma grave crise. Basta ver a natureza da revolução do 5 de Outubro para se perceber que Portugal aspirava por mudanças, tanto do lado dos movimentos intelectuais, como do lado dos movimentos políticos e sociais. Vivíamos um quadro propício a uma viragem nacional. É natural que isso vá ser estudado nos projectos de investigação.

Em relação ao Estado Novo, é evidente que vamos salientar e evocar o que se passou na resistência ao regime. Isso esteve sempre no nosso espírito. Haverá uma exposição sobre a memória histórica da República e é inevitável que esteja representada a resistência ao Estado Novo.