28.3.09

Os sítios da droga e os miúdos que gritam: "Água!"

Ana Cristina Pereira, in Jornal Público

Às vezes, o Porto parece uma aldeia. A Divisão de Investigação Criminal da PSP dobra a noite sem qualquer sobressalto


A viatura descaracterizada do piquete da Divisão de Investigação Criminal (DIC) penetra o Bairro do Aleixo. Ninguém grita: "Água! Água!" Não é preciso alertar os traficantes. Não há fila à entrada da primeira torre. Há gente encostada. E gente a subir ou a descer. Não por caso. Pelo carro-patrulha parado mesmo na boca do tráfico.

O dia, hoje, exala tranquilidade no Porto. Entre as 8h00 e as 15h00, o agente principal Amaral só conta dois registos dignos de menção. "Roubaram um cofre numa residência, no Campo Lindo." E, durante a manhã, uma equipa veio "analisar droga apreendida no Aleixo": 50 gramas de cocaína, dez de heroína, duas de haxixe.
Amaral integra a equipa que fica na sede, atenta às chamadas da central, a gerir as três equipas que estão na rua. O piquete da DIC não responde a tudo. Responde às chamadas que impõem diligências específicas.

Enfiamo-nos no carro de uma. Estamos dentro dele. O agente Amorim e o agente Vilarinho circulam pela cidade, na tentativa de nos ajudar a desenhar um mapa de criminalidade.

Há quem venha dos subúrbios até à estação de Francos e se desloque a pé ao Aleixo. Descem a Tenente Valadares, cruzam a Boavista, passam a Bessa Leite. Amorim compara o movimento a uma "peregrinação". Agora mesmo, alguns aproximam-se do local "santo". Quem vem de carro comprar droga disfarça melhor o inconveniente de encontrar a polícia. Dá voltas para passar o tempo. Espera lá em baixo, na marginal do Douro, ou lá atrás, na Rua de Serralves.

Quando a polícia bate o Aleixo, o fluxo de consumidores aumenta no Bairro do Dr. Nuno Pinheiro Torres. Um rapaz de calções coloridos avia droga junto à capela. Os agentes observam, ao longe. Um de costas para a capela, um de frente para a capela. "Quem é que está a meter?", pergunta-lhes um rapaz. De repente, alguém reconhece os agentes - ou o carro, que já há muito circula. Talvez um que ainda agora estava no Aleixo. E as pessoas dispersam.

O tráfico está concentrado. Há anos que se ouvem as mesmas referências: Aleixo, Pinheiro Torres, Sé, Cerco. Como se o negócio se tivesse entranhado na alma daqueles lugares.

Desapareceram as filas na Sé: os principais traficantes estão em prisão preventiva. Só que o negócio persiste. O Cerco, do outro lado da cidade, disfarça mais: o policiamento é muito. Ainda estamos a descer uma rua que vai dar ao bairro e já um grupo de miúdos grita: "Água!". "Estão bem instruídos", comenta um agente.
Há pequenos focos de tráfico noutros pontos da área metropolitana. Os pequenos focos "geram alarme social", aclarara o comissário Rui Mendes. A vizinhança tende a reagir depressa, a avisar a polícia, a enxotar os toxicodependentes. "O tráfico acaba por se dissipar." Às 23h27, cai um telefonema de um morador a queixar-se de droga na estreita Rua da Lomba, Porto oriental. A equipa passa por lá, até para o sossegar. Tudo apagado. A morada indicada corresponde a uma casa devoluta.

Furtos na Foz

Mais uma volta pela cidade a adormecer embalada pela tranquilidade deste sábado de Março. Ribeira: tráfico de haxixe. Marginal: pessoas a preparar doses dentro de carros ao virar para o Aleixo. Aleixo: "Água! Água!".

Agora, sim, vale a pena gritar. O carro-patrulha já não está. A fila cresce dentro da primeira torre. Para dar mais tempo a fugir à polícia, agora despacham a droga no quarto andar. Duas famílias controlam o grosso do negócio. Quando a polícia aparece, portas a abrir e a fechar, cada parte a tratar de salvar os seus.

A equipa vira para a Avenida da Boavista. Mete-se nas ruelas internas. Cruza os bairros das Campinas, Providência, Ramalde, de onde saem alguns rapazes referenciados por roubos. O pequeno tráfico resiste nas arcadas. "Morte ao Rocha", clama um graffito. Rocha é um polícia.

A equipa torna à Avenida da Boavista e volta a meter-se nas ruelas internas. Na Foz do Douro, em Nevogilde, a maior dor de cabeça é o furto em residências. O comissário falara num grupo, muitos servocroatas, que operava do Norte ao Sul, com mulheres e crianças como operacionais. A rede foi desmantelada.

A polícia andava inquieta desde Novembro. Uns elementos tocavam a campainha para se certificarem de que não estava alguém dentro. Outros abriam a porta, se estivesse fechada apenas com o trinco. Furtavam "objectos de fácil transporte e elevado valor".
Desengane-se quem julga que viver em prédios muito altos é evitar assaltos. Tudo é possível. Uma vez, em Santa Luzia, houve um assalto estranho num 9.º andar. O que escalou, de varanda em varanda, tinha uma perna engessada. E o que ficou lá em baixo, a vigiar, era mudo: alertava com toque de telemóvel.

No ano passado, os assaltos a residências com gente dentro "tiveram relevância" no Porto. Este ano, o fenómeno amansou, garante Rui Mendes. Agora, à divisão comandada por ele só chegam "situações pontuais". É um crime que insufla sentimento de insegurança. Sobretudo em Nevogilde, na Foz do Douro, grandes prédios começam a ter porteiro.

O rádio continua sem debitar algo que valha a intervenção de um piquete da DIC. Ali à frente, a Asprela, zona de furtos no interior de viatura. Há dois anos, dois jovens fizeram aqui 50 roubos. Apanhavam quem frequentava o ensino superior, quem ia ao Hospital de São João. O furto no interior de viatura "é o crime mais frequente da área metropolitana", revelara o comissário. Ocorre em todo o lado, mas mais onde se concentra maior número de carros. "Ao fim-de-semana, nos espaços de diversão nocturna". Em dia de jogo, nas imediações dos estádios de futebol.

Bares e discotecas animam a zona industrial. De vez em quando, roubos, furtos no interior de viaturas, bebedeiras, agressões. Hoje, nada. O carro avança. A equipa não tarda a percorrer outra vez o centro. Absorve agora os movimentos dos trabalhadores do sexo. "Às vezes, uma mulher serve de isco e o companheiro rouba." Amiúde, não há denúncias.

Algumas angariam clientes à porta de "pensões de sobe-e-desce". Outras dispõem-se rua abaixo ou rua acima. Sul-americanas, africanas, europeias. A 19, a Polícia Judiciária deteve cinco indivíduos supostamente implicados numa rede de tráfico e exploração sexual de mulheres. De nacionalidade romena, sobretudo.

Três da madrugada, até agora, digno de registo, só uma chamada por causa de um homem de 53 anos que apalpou uma miúda de 12. "Mesmo nas zonas mais complicadas, como o Aleixo e o Cerco, a polícia entra, circula", sublinha o comissário Rui Mendes. Há dias agitados (ver texto ao lado). E dias em que o Porto parece uma aldeia, como este. Apesar de um em cada dois habitantes se sentir inseguro quando sai depois do pôr-do-sol.