in Público on-line
Na Campanhã das fábricas que já não existem ficaram as ilhas, onde há rendas demasiado altas para a falta de condições evidente. Duas escolas tentam reabilitar estes locais do Porto e acabar com estigmas
José paga 280 euros de renda, mas dorme no chão. A casa que habita, num emaranhado de habitações na Rua do Pego Negro, em Campanhã (Porto), é tão pequena que não chega para mais. Casado e com três filhos, tem um colchão no chão do que seria uma sala pequena e é aí que passa as noites, com a mulher e o filho de um ano e meio. O único quarto da casa - que tem ainda uma cozinha e uma casa de banho exíguas - é para os outros dois filhos do casal, de 14 e 8 anos. O espaço não chega, claramente, mas ainda assim é melhor do que a opção anterior, quando a família se amontoava num único quarto, no bairro camarário onde morava a mãe de José.
A casa onde vive hoje a sua família não fica numa ilha, mas é como se ficasse. Não há um portão comum a vedar o acesso às habitações da rua, mas o isolamento a que o conjunto está votado, rodeado por vias rápidas, parece maior do que se houvesse o tal portão a fechar o caminho. Há casas espalhadas pela rua circular que termina no mesmo sítio onde começa e casas amontoadas em corredores com um acesso comum. É aí que vivem José, Mónica, Ana ou César. Na semana passada, Ana pediu ajuda à Junta de Campanhã para tentar obter uma habitação camarária, depois de a saúde do filho, de sete meses, se ter ressentido "da humidade e do gelo" que inundam a casa do Pego Negro. Quando uma equipa de técnicos chegou o local, para ajudar a moradora a instruir o processo, deparou-se com um grupo de vizinhos, que perguntava: "Então, e nós?".
No dia seguinte, os professores Fernando Matos Rodrigues e Berta Granja estavam no local, acompanhados de José António Pinto, assistente social da Junta de Freguesia de Campanhã, e de um grupo de estagiárias do Instituto Superior de Serviço Social do Porto (ISSSP), que está a trabalhar na junta. São elas que estão a levar às ilhas da freguesia um questionário para tentar traçar o retrato dos principais problemas que os seus moradores vivem no dia-a-dia, para que seja possível construir soluções que permitam ultrapassá-los. Ao mesmo tempo que as estagiárias do ISSSP, a que pertence Berta Granja, traçam o retrato social dos moradores, Matos Rodrigues, da Escola Superior Artística do Porto (ESAP), vai fazendo o perfil das necessidades físicas das ilhas, tentando perceber como é possível melhorar e, até, rentabilizar, estes espaços. Um trabalho que deverá ser sistematizado por um Laboratório da Habitação, que a ESAP e o ISSSP estão a criar em conjunto (ver texto ao lado).
No Pego Negro, os dois professores encontraram muitos dos problemas que existem noutras ilhas da cidade - casas sobrelotadas, com problemas de humidade e sem saneamento. "Há que repensar estas ocupações com condições de dignidade", defende Berta Granja. Matos Rodrigues acrescenta: "Está-se a investir muito no espaço público e não nas pessoas, na cidade real. É preciso investir nesta arquitectura, que constitui um património muito importante. Se isto não existisse, estas pessoas já não estariam na cidade. E o problema é que muitas delas já nem conseguem suportar as rendas de locais como este, que são muito elevadas para as condições que oferecem".
Um bom exemplo à porta
Entre as várias casas do Pego Negro, há um exemplo do que o futuro poderia ser. A casa de Odete, que pertence ao sogro, foi totalmente reabilitada. Por dentro, parece um apartamento moderno da zona central da cidade. "Com a porta fechada, até me esqueço de onde estou", diz a moradora. Investiu ali porque a casa pertence à família e porque gosta do sossego do lugar do Pego Negro, onde nasceu e casou. Por isso, diz, beneficia do melhor dos dois mundos - conforto e modernidade, dentro de portas; sossego, vizinhança e vista familiares, quando sai à rua.
Enquanto o Laboratório de Habitação não se instala, José António Pinto e as estagiárias do ISSSP já lançaram mãos à obra e o assistente social tem ideias muito concretas sobre os próximos passos a dar no Pego Negro: "É preciso dinamizar a comissão de moradores, fazer um levantamento fotográfico e de vídeo do que existe hoje", diz. Na forja está também um convite a todos os candidatos à Câmara do Porto para que visitem o local, com o alerta para que o núcleo habitacional tenha o tratamento devido a quem vive paredes-meias com o Parque Oriental. E, das fotografias que se vão tirar, poderá nascer uma exposição a ser instalada na sede da antiga associação de moradores do Pego Negro, actualmente ao abandono.
É também aí que os envolvidos neste trabalho - que Berta Granja descreve como "economia social e habitacional" - querem ver desenvolvidas outras iniciativas cívicas e culturais, para levar aos moradores uma dinâmica que hoje lhes foge. O objectivo final é que, com o apoio dos senhorios das habitações e dos próprios moradores, se possa melhorar a qualidade de vida de todos. Para que Mónica deixe de ter de partilhar a cama com os quatro filhos no único quarto da casa ou de sair à rua para ir à casa de banho da habitação, que fica no exterior (180 euros de renda). Para que César, que paga 250 euros de renda, não tenha de ter o berço do filho encostado a uma parede de tijolo, construída por ele e ainda por pintar, para substituir a madeira podre da divisão. Para que as águas residuais de todos não continuem a ir parar ao rio Tinto, que corre ali ao lado.