21.5.14

Trabalho comunitário: o passado não entra aqui

Ana Dias Cordeiro, in Público on-line

Desde 2007, aumentou muito o número de pessoas a prestar serviço à comunidade em vez de pagarem uma multa ou cumprirem pena de prisão. O Banco Alimentar Contra a Fome é uma das associações de carácter social a recebê-las. Algumas têm passados trágicos e escolhem este caminho para refazer a vida.

A sua vida é um emaranhado de processos e julgamentos nas varas criminais, que alterna, na agenda dos dias, com horas de trabalho ao serviço da comunidade. Centenas de horas, acumuladas ao ritmo a que se sucedem as audiências em tribunal.

A última foi na semana passada no Tribunal de Sintra, por posse de uma quantidade suspeita de haxixe. Já cumpriu 50 horas, por duas vezes, por posse. Cumpre agora 286 horas, de segunda a quinta-feira, por tráfico. Já passou tempo na prisão.

Este ano, pela primeira vez, um juiz propôs-lhe prestar trabalho ao serviço da comunidade. Talvez por isso, aos 35 anos, diga: “Hoje, posso dizer que mudei de vida.” O seu plano é “resolver todos os problemas” que tem “no país”. Depois disso, talvez emigrar, recomeçar onde não o conheçam pelo seu passado, e o valorizem pelo futuro possível, agora que lhe abriram esta porta. Talvez até escolher um nome que não o seu – como João Carlos. “Não trabalho aqui com esforço. Vejo este trabalho como uma oportunidade que me dão”, diz.

Poderia ter ido trabalhar para uma câmara municipal ou junta de freguesia, uma escola, hospital ou outra instituição do Estado. “A câmara é do Estado”, diz. E João Carlos não queria ajudar o Estado.

“Aqui posso ajudar pessoas que precisam.” Está no Banco Alimentar Contra a Fome (BACF), em Alcântara, Lisboa, onde a presidente Isabel Jonet acredita no lado reparador e pedagógico destas medidas: “A vida destas pessoas muda porque têm um acompanhamento muito próximo. Nós fazemos um acolhimento integral, aceitamo-los mas depois exigimos. O que de mais fundamental se transmite é a disciplina, a absoluta necessidade de cumprir horários e tarefas. Penso que é o mais positivo na vida deles.”

Como outros que por aqui passam, João Carlos ajuda no armazém, junta e compõe caixas de alimentos, que carrega ou descarrega, para entregas. “Passei a ter um horário, uma responsabilidade.” Entra no jogo da rotina e isso corta-o do mundo que o tomava dia e noite desde que, muito jovem, se iniciou no haxixe e depois nas drogas duras. Mas sabe e é ele próprio que o admite: “Em muitos casos, não se vira as costas assim facilmente.”

Como o BACF, outras associações, como a Entrajuda, bombeiros, Cruz Vermelha, Instituições Privadas de Solidariedade Social (IPSS) e outras, com protocolos assinados com a Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP), também o poderiam ter recebido.

Mais penas de substituição
O número de pedidos recebidos por esta direcção para a aplicação de medidas de trabalho comunitário aumentou todos os anos desde que em 2007 o Código Penal alargou o leque dos casos em que é possível aplicar penas de substituição.

Até esse ano, a pena de substituição era aplicada a penas nunca superiores a um ano. Agora, podem ser aplicadas a penas até dois anos (relativos à sentença concreta decretada pelo juiz e não à moldura penal desse crime). O máximo aplicável era de 380 dias, antes dessa mudança, sendo agora de 480 dias de trabalho – um por cada dia de prisão ou de multa.

O total desses pedidos passou de 999 (em 2003) para 2724 (em 2007), dando, desde então, um salto todos os anos, até chegar aos 23.991 em 2013. Nesse ano, a grande maioria (mais de 12 mil pedidos) foi para aplicação de trabalho comunitário em vez de pagamento de multa e 549 para ver suspensa a execução de pena de prisão. Os restantes foram pedidos em troca da suspensão provisória do processo ou noutras circunstâncias.

Um juiz do Conselho Superior da Magistratura associa este aumento de penas de substituição das multas à conjuntura de crise quando muitas pessoas estão desempregadas ou a viver com dificuldades. “Cada vez mais pessoas aparecem a dizer que não podem pagar a multa”, diz. A mesma fonte admite que a sobrelotação das prisões pode ser uma preocupação mas não é por ela que o juiz se rege. “O juiz centra-se no indivíduo e não no sistema.”

E perante um indivíduo “sem antecedentes criminais expressivos”, um juiz pode sugerir penas de substituição, por exemplo, em condenações por injúria ou difamação, furto ou dano, excesso de velocidade ou de álcool na estrada, mas também de tráfico para consumo (até três anos, no caso de drogas duras), tráfico de droga de menor gravidade (até cinco anos) e, entre outras, em casos de coacção e resistência, como agressão a um agente da autoridade ou ofensa à integridade física de uma pessoa.

“Raiva da vida”
Num acesso de raiva, foi isso que aconteceu. “Agredi um polícia. Este é o segundo trabalho comunitário que faço.” Tem 17 anos e depois das 50 horas que cumpre, também no Banco Alimentar Contra a Fome, quer tirar um curso e trabalhar. “Quero despachar-me rapidamente, para voltar para a escola, fazer o 7.º ano, ajudar a minha mãe. Tirá-la do quarto onde vive. Ela está sozinha e não tem condições.”

Desde pequeno que se lembra de ser assim: a mãe com muito poucas ajudas e três filhos – depois só com dois. Ao desgosto, seguiu-se uma doença que a arrastou para o hospital. Terá sido um AVC. Depois, a desilusão: “Apesar de a minha mãe não ter condições, a minha tia não aceitou ficar comigo.”

Foi então para um lar da Casa Pia, depois de ter estado num Centro de Acolhimento Temporário em Vila Franca de Xira, onde ficou quatro anos e os colegas o obrigavam a roubar nos supermercados. “Se não roubava, levava.”

Antes, vivia em casa com os irmãos mais velhos e a mãe. Eram anos felizes, até um dia em que esse quotidiano bruscamente se apagou. O irmão de 25 anos trabalhava à noite e, de manhã, quando chegava, era quem o levava à escola. Nesse dia, estava na cama e não se mexia. “Nesse dia, suicidou-se com um tiro na cabeça. Cheguei-me ao pé dele e vi a almofada em sangue.” Lembra-se do desespero da mãe, da polícia dentro de casa e da data certa: 24 de Outubro de 2004. Tinha sete anos.

Dez anos passados, relata o que se passou, como se as palavras fossem cura. Com as mãos, mostra como não teve medo de segurar “a cabecinha dele” e de ver se “o coraçãozinho dele” ainda batia. Acredita que o sentiu em vida. Perdeu-o. No lugar dele, ficou “raiva da vida”.

Depois disso, muitas vezes faltou à escola, “por medo de descarregar nos outros”. Como descarregou num polícia que depois o desculpou. Agora quer “despachar” as 50 horas, voltar para a mãe, que só o tem a ele. O irmão do meio tem agora 22 anos e perdeu-se na droga.

“Até morrer, estou sempre em cura”
Manuel Ramos largou a heroína, a metadona e, pouco depois, entrou no Banco Alimentar Contra a Fome (BACF), para trabalhar em vez de cumprir uma pena de prisão de sete meses, por furto. Muitas vezes, corria o Centro Comercial Colombo e o Vasco da Gama, em Lisboa, para roubar, e depois consumir. “Se tivesse 150 contos, gastava 150 contos (750 euros).”

Vai longe esse tempo de muito más recordações e revelações, como a que lhe deu a sua filha, então com três anos. “Chamou-me a mim e à mãe, sentou-nos na sala e pediu-nos: ‘Pai, mãe, deixem a droga por mim.’”

Não deixaram. Pelo menos até alguns anos mais tarde. Foi na prisão de Tires que Manuel Ramos ficou livre da metadona. Antes já cumprira penas de 14, oito e quatro meses também em Tires e no Estabelecimento Prisional de Lisboa (EPL).

Muito mudou quando o juiz lhe propôs o trabalho ao serviço da comunidade, por já estar em processo de cura. Tudo passou a ser diferente. “Vinha contente” para o trabalho, diz. Ao fim de dois meses, foi-lhe proposto um contrato. Mais tarde passou a trabalhador efectivo. “Se não fosse este trabalho, se calhar já cá não estava.” Muitos amigos morreram. Alguns trataram-se e depois recaíram, mesmo ao fim de 15 ou 20 anos. Manuel Ramos sabe: “Até morrer estou sempre em cura.”

Atentar contra o próprio mundo
Rui Abrunhosa, sociólogo forense e professor da Escola de Psicologia da Universidade do Minho, acolhe a filosofia de “combinar o castigo com a socialização e ao mesmo dar espaço para que as pessoas possam emendar-se sem terem de ir presos”. O académico também nota “a outra leitura” possível, que diz respeito ao sistema. “A leitura economicista, quando se sabe que, em média, um recluso custa 50 a 70 euros por dia” ao Estado. Mas essa não é para ele a mais importante.

“Quando bem avaliadas as situações e as pessoas”, deve dar-se uma oportunidade para o cumprimento de pena alternativa. Mas reconhece: “É certo que muitas dessas pessoas voltam a cometer crimes na comunidade. Alguns continuam a roubar também por não terem outra forma de se sustentar.” Porém, explica que as penas de substituição são propostas “a pessoas que representam um risco baixo para a comunidade e que têm mais hipóteses de reinserção”.

Isabel Jonet também admite que alguns reincidem. “Para pessoas com histórias de vida tremendas nem sempre é possível apagar essa vivência com umas horas de trabalho comunitário.” Mas o passado não entra aqui. “O objectivo é dar à pessoa, através do trabalho, um acompanhamento pessoal para que perceba que quando comete pequenos delitos e faz mal a terceiros também faz mal a si próprio. O seu mundo também fica pior.”

A responsável do BACF realça o facto de muitas pessoas que começam a cumprir horas, escolherem depois ser voluntários. É uma forma de mudarem de vida. “Estando aqui, e depois do que fizeram, às vezes empurrados pela força das circunstâncias de vida, percebem que a vida deles pode ser diferente. É uma oportunidade de vida – é isso que dá o Banco Alimentar com o trabalho comunitário.”

“Encontrei o caminho”
Depois de meses a cumprir trabalho comunitário, o BACF propôs a Augusto Coutinho, de 47 anos, um contrato de trabalho e, mais tarde, um emprego permanente como efectivo. Vê isso como “um voto de confiança”, muito “importante” para quem não tem muitas ilusões, apenas força de vontade. “Não acredito no ex-toxicodependente. Estar curado é muito relativo. O toxicodependente é toxicodependente para o resto da vida. A diferença está em ir ou não ir.”

Para “não ir” Augusto Coutinho mudou-se para Setúbal e saiu do bairro de Santa Maria de Belém, na Ajuda, onde cresceu e se iniciou nessa vida. Sofreu demais, recorda. “Era como se vivesse duas vidas.” Numa delas, passava o tempo a roubar, para poder consumir. E chegou a gastar 100 contos por dia (500 euros) em cocaína e heroína. Foi naquele início dos anos 1990 em que o haxixe desapareceu de Lisboa.

Chegou a trabalhar em hotelaria e jardinagem mas também como segurança, o que lhe permitiu aprender “os esquemas” para roubar. Mas isso não o impediu de ser, várias vezes julgado por furto. Numa delas, incorreu numa pena de dois anos e meio. O advogado pediu a substituição da pena por horas de serviço à comunidade à juíza, que aceitou. Está há sete anos no Banco Alimentar Contra a Fome. E diz: “Estou feliz. Encontrei o caminho.”