Por Rosa Ramos, in iOnline
A insatisfação com o trabalho é maior no Leste e no Sul da Europa, mas também é nestes países que se valoriza mais a carreira
Primeiro as boas notícias. Os portugueses gostam de trabalhar e consideram o trabalho uma dimensão central da vida. Depois as más: os portugueses fazem parte da lista dos europeus que se dizem menos satisfeitos com a carreira, ao lado de naturais de países como a Estónia, a Grécia e a Hungria. Pior ainda: as sociedades em que o trabalho é mais valorizado são as que sentem mais intensamente os efeitos negativos do desemprego e do trabalho precário.
A ser assim, Nuno e Teresa Machado têm mesmo razões para andar desanimados. Até trabalham nas áreas de que gostam, mas isso não chega para travar a insatisfação profissional. "Trabalho é segurança e estabilidade e é angustiante não conseguir perspectivar o futuro próximo e não saber até se não vou perder o emprego a qualquer momento", explica Teresa, professora de Educação Visual e Tecnológica (EVT). Os professores têm sido dos mais afectados pelo desemprego e a área de EVT uma das que mais cortes têm sofrido. Teresa é efectiva e tem horário completo - um luxo -, mas a cada ano que passa vê mais colegas irem para a rua. "Não sei se não serei a próxima, já em Setembro", diz. O receio é partilhado pelo marido. Nuno é actor e depois de a companhia onde trabalha ter sofrido uma redução de 50% nos apoios do Estado viu-se obrigado a ser pau para toda a obra. "Somos seis pessoas a fingir que somos 40", conta. Em tempo de crise, quem tem emprego é obrigado a trabalhar mais porque não há recursos para contratar mão-de-obra. Mesmo assim, paira no ar uma nuvem negra: se houver mais cortes, a companhia terá de encerrar. Nuno e Teresa tiveram um percurso que pode ser descrito como normal. Escolheram uma carreira, casaram, compraram uma casa, tiveram filhos. Só não adivinhavam que, depois de ultrapassada a barreira psicológica dos 40, a vida profissional se complicasse. "Sempre achei que quando chegasse a esta idade teria a minha vida equilibrada, mas a verdade é que nos últimos anos tudo se tornou muito mais instável. A ideia do efectivo, do trabalho para sempre acabou", diz Nuno.
As estatísticas do Portal de Opinião Pública (POP) - um projecto da Fundação Francisco Manuel dos Santos e do Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa - mostram que o trabalho é um elemento importante na vida de todos os europeus. Os que mais dão valor à carreira são os suecos (3,9 pontos numa escala até 4), mas no top cabem também os luxemburgueses, os cipriotas e os gregos. Já no Reino Unido, na Finlândia, na Alemanha e na República Checa parece haver uma tendência maior para desvalorizar a actividade profissional. Ainda assim, todos os países apresentam resultados elevados, acima dos 3,3 pontos.
Em 2008, os portugueses afirmavam que a carreira era uma dimensão fundamental das suas vidas e Portugal atingiu um valor médio de 3,5 pontos, integrando a lista dos dez países da União Europeia que mais valorizam a vida profissional. No inquérito anterior, em 2000, os resultados tinham sido os mesmos, enquanto em 1990 a média portuguesa se situava nos 3,3 pontos. Já no caso da Alemanha - o terceiro país da União Europeia onde menos relevância se dá ao trabalho -, os valores de 2008 não vão além dos 3,3.
As histórias de Lonha e Susanne, professores, são reveladoras de como para os alemães a actividade profissional não é o mais importante na vida: a dada altura desistiram da carreira. Lonha para se mudar para Portugal - depois de se apaixonar por Lisboa e pela língua portuguesa. E Susanne por amor. Ele estudou português na Alemanha - numa altura em que ainda se vivia o Estado Novo e a Europa pouco conhecia Portugal. A seguir ao 25 de Abril, a Revolução sem sangue fez manchetes nos jornais alemães meses a fio. Mas nos anos anteriores Lonha tinha--se visto aflita para encontrar um manual de Português na Alemanha. "O máximo que consegui foi uma gramática de português do Brasil na RDA", recorda.
O alemão veio várias vezes a Portugal para conhecer a cultura e a língua, até que em 1996 decidiu deixar de lado uma carreira académica que se adivinhava promissora na Universidade de Freiburg. Queria morar em Lisboa. Em Portugal foi obrigado a fazer de tudo para ganhar dinheiro. Deu formação, trabalhou com comunidades cabo-verdianas, participou na criação de material didáctico para Cabo Verde, deu aulas de Alemão no Instituto de Novas Profissões. Sempre com contratos a prazo. "Teria sido mais simples regressar à Alemanha, fazer as provas de agregação e aproveitar a carreira académica em Freiburg", admite. Pelo meio ainda trabalhou em turismo - área com que não se identificava e que nada tinha a ver com a sua formação. "Mesmo assim preferi aproveitar para não ir para o desemprego."
Lonha já estava habituado a arregaçar as mangas. Em Estugarda, onde cresceu, era comum os estudantes aproveitarem as férias para ganhar dinheiro numa fábrica de motores da Mercedes. O trabalho, assegurado só por imigrantes e estudantes, consistia na montagem de seis tipos de motores diferentes e era penoso. A fábrica só admitia trabalhadores com menos de 30 anos - devido à exigência e ao cansaço provocados pelo ritmo acelerado das linhas de montagem. Só que um mês na fábrica chegava para amealhar dinheiro para as despesas do resto do ano.
Das primeiras memórias de Lonha também fazem parte as itinerâncias do pai, que era engenheiro e durante muitos anos andou de fábrica em fábrica à procura de um trabalho fixo. Até conseguir uma vaga numa empresa de registo de patentes - sector que ganhava força na Alemanha da década de 1950. Foi assim que a família se mudou de Estugarda para os arrabaldes de Munique. E foi assim que Lonha sofreu o primeiro choque cultural, num país com múltiplas culturas e maneiras de estar e de ser diferentes. "Eram regiões distintas com dialectos distintos. Antes de me mudar, recordo-me de fincar pé e de jurar que nunca, mas nunca falaria num dialecto diferente do meu." Os pais e os irmãos de Lonha foram das primeiras famílias provenientes de outras zonas da Alemanha a instalar-se nos arredores de Munique. Mais tarde, já na década de 1960, passaram a chegar às centenas. Deixou--se de nascer, crescer e morrer no mesmo lugar.
Lonha e Susanne conheceram-se ainda na década de 1990 em Lisboa, num bar do Bairro Alto, e por intermédio de um ex-aluno. Apaixonaram-se e arranjaram casa na Parada do Alto de São João. Ela tinha conseguido uma bolsa do Instituto Camões e estava a trabalhar numa tese de doutoramento sobre a literatura portuguesa no feminino. Até o dinheiro se acabar. Susanne foi obrigada a pôr a investigação na gaveta e passou a dividir-se entre múltiplos empregos precários a dar aulas de Alemão. "Foram tempos muito difíceis, atravessámos sérios problemas financeiros", recorda. O mais confortável teria sido regressar à Alemanha - onde teria um bom emprego. Mas Lonha e Lisboa eram muito mais importantes.
Dinheiro ou bem-estar? A Alemanha não é dos países em que mais importância se dá ao trabalho, apesar de, ainda assim, apresentar 3,2 valores em 4 nas estatísticas do POP. A conclusão é óbvia: trabalhar é importante para todos os europeus. Mas a importância pode revestir-se de significados diferentes em cada uma das sociedades. E neste capítulo os países da União Europeia têm opiniões bastante díspares. À parte as questões óbvias de sobrevivência, cada indivíduo pode desenvolver a sua actividade profissional por razões diferentes. A maioria dos estudos tende a dividir essas razões em dois grandes grupos: os valores extrínsecos e os intrínsecos. Os primeiros têm a ver com os aspectos tangíveis do trabalho - como as recompensas, o salário, as condições gerais do trabalho ou a segurança profissional. Já os valores intrínsecos dizem respeito aos aspectos intangíveis - como o trabalho ser interessante, poder ser desenvolvido com autonomia, obrigar a novos desafios ou envolver criatividade.
O POP permite conhecer e comparar as características do trabalho que mais são valorizadas pelos europeus. E desta comparação resulta uma Europa partida em dois. Nos países do Leste e do Sul, como é o caso de Portugal e da Bulgária, valorizam-se mais os valores extrínsecos. Os trabalhadores dão em geral importância a critérios como ser bem pago e ter segurança profissional. Já nos países nórdicos - e com melhores economias - parece existir a tendência para valorizar outras características, como ter liberdade para tomar decisões ou poder ser criativo no trabalho.
Quer Nuno Machado, quer o búlgaro Stefan Popov arriscam a mesma explicação para o facto de em Portugal e na Bulgária os trabalhadores atribuírem maior importância ao salário e à segurança. "Somos mal pagos e por isso é evidente que damos maior realce ao dinheiro enquanto recompensa", diz Nuno. "E em sociedades em que o trabalho é escasso e precário há um receio generalizado de perder o emprego já amanhã, daí a preocupação com a segurança", acrescenta Stefan. Os estudos confirmam aquilo que parece óbvio ao senso comum: quanto menor é o nível socioeconómico de um país, mais preocupados com os valores extrínsecos do trabalho - que se relacionam com as necessidades básicas - estarão os seus habitantes. Isto porque essas necessidades básicas não estão asseguradas. Pelo contrário, nos países mais ricos esses aspectos estão já garantidos, o que leva os trabalhadores a preocuparem-se com outras questões, mais intrínsecas ao trabalho.
Satisfação com o trabalho Os portugueses dão grande importância ao trabalho e valorizam a segurança e uma boa remuneração. Mas estarão satisfeitos com a sua carreira? A resposta é não. Portugal integra a lista dos países da União Europeia em que a satisfação profissional é menor. Do rol de países com trabalhadores insatisfeitos fazem ainda parte a Estónia, a Grécia e a Hungria, enquanto a Suíça, a Dinamarca, Chipre e a Noruega são aqueles em que os trabalhadores admitem estar mais satisfeitos e realizados. Mesmo assim, apesar destas diferenças, as estatísticas do POP permitem concluir que, de uma maneira geral, os europeus estão profissionalmente satisfeitos. Numa escala de 0 (insatisfeito) a 10 (satisfeito), todos os países apresentam valores médios superiores a 7 - mesmo Portugal (7,1).
Outro dos indicadores do Portal de Opinião Pública permite avaliar os níveis de pertença a associações profissionais e sindicatos nos vários países da Europa. No caso das associações, a adesão é baixa. A Holanda é o país em que os números são mais elevados, mas não vão além de 18% dos trabalhadores. A pertença a sindicatos é superior, mas varia de país para país. A Dinamarca tem o maior número de trabalhadores sindicalizados: 55%. Segue-se a Noruega, com 39%, e a Finlândia, com 34%. Portugal, Hungria e Grécia são os países com menos trabalhadores sindicalizados: apenas 4%.
O papel das mulheres A percepção dos europeus sobre a mulher no mercado de trabalho tem sofrido alterações desde o início da década de 1990. Nos vários países da União Europeia, o número de pessoas que acreditam que o desejo das mulheres é ter um lar e filhos tem vindo a diminuir progressivamente. Actualmente, os nórdicos - dinamarqueses, noruegueses, suecos e finlandeses - são os que menos defendem a ideia da mulher em casa. Em contraponto, em países como a Roménia, a Lituânia, a Grécia ou Chipre ainda há uma percepção elevada de que as mulheres desejam ficar em casa a cuidar dos filhos. Apesar desta tendência dos países vizinhos, a Bulgária aparece mais abaixo na tabela. E é um caso sui generi s. Stefan conta que há uma regra de ouro que todos os búlgaros conhecem: em casa manda a mulher. À primeira vista, esta tradição pode parecer um tanto ou quanto machista, mas na realidade há já muitas décadas que as mulheres búlgaras trabalham também fora de casa. "Na Bulgária, homens e mulheres estudam, trabalham e têm os mesmos direitos. Por vezes as mulheres até contribuem mais para a casa que os homens", garante a mulher de Stefan, Dilyana, que é médica dentista. Se há mulher mal vista na Bulgária, é aquela que não trabalha. Dentro e fora de casa. E trabalham até mais tarde. "A maioria dos homens ocupa-se de actividades de desgaste rápido, o que os obrigada a parar pouco depois dos 50, enquanto elas se mantêm activas muito mais tempo", acrescenta Stefan.
Mesmo assim, Dilyana deixou uma carreira bem-sucedida na Bulgária para ficar com o marido - que já estava estabelecido em Portugal, ao serviço de uma grande empresa de construção, quando se conheceram. Trabalhava numa clínica em Sófia e demorou sete anos a construir uma carteira de clientes "preciosa". Agora divide-se entre duas clínicas na Grande Lisboa e não tem dúvidas de que se tivesse continuado na Bulgária teria sido mais bem sucedida profissionalmente. Stefan está desempregado há mais de um ano - as dezenas de certificados e diplomas de nada têm valido - e é Dilyana quem mais contribui para as despesas da casa.
Na Alemanha, conta Susanne, o mercado de trabalho só se abriu de forma massificada à participação das mulheres já na década de 1970. Porém, a relação das alemãs com o trabalho fora de casa também é atípica: durante a Segunda Guerra Mundial eram elas quem trabalhava nas fábricas. E a seguir à guerra ficaram famosas as "mulheres-escombro" - que recolhiam escombros das ruas. Só que a seguir ao milagre económico a mulher regressou ao lar. Ainda hoje, garante Lonha, a Alemanha não é propriamente um modelo em termos de igualdade laboral entre homens e mulheres. Eles continuam a ter salários mais altos e muitas mulheres trabalham só em casa - até porque a maioria das escolas só funciona de manhã. Lonha compreendeu recentemente como muitas mulheres, mesmo com carreiras promissoras, não vingam no mercado de trabalho alemão. Lembrou-se de ir à procura de uma antiga colega com quem deu aulas numa universidade alemã. "Inteligentíssima e com um trabalho de investigação incrível", recorda. Pesquisou o nome dela na internet e só encontrou um resultado: uma intervenção numa reunião de pais de uma escola alemã. "Fiquei chocado quando percebi que tinha deixado a carreira para se tornar mãe a tempo inteiro", conta.