21.5.14

Mulheres que ousaram romper o ciclo da violência doméstica

Gina Pereira, in Jornal de Notícias

Grupo de mulheres sobreviventes de violência doméstica dá voz às necessidades das vítimas, participa em ações de sensibilização e quer divulgar mais os apoios que existem para que outras se consigam libertar do pesadelo em que vivem.

Maria, 50 anos, é a prova de que é possível "recomeçar do zero". Há cerca de 10 anos, teve de deixar tudo para trás para se libertar de um casamento de 18 anos de violência psicológica, verbal e física. Primeiro foi o afastamento da família, passou a viver "isolada". Depois, o controlo sobre os horários, os pedidos de autorização para comprar o que quer que fosse. Um dia arranjou um emprego estável, a ganhar mais do que o marido, "e aí as coisas começaram a piorar". Os filhos chegaram a pedir-lhe que saísse de casa, mas ela deixou-se ficar.

"A esperança é sempre a última a morrer mas chega a um ponto que não dá mais. Com tantas ameaças de morte não é fácil". A gota de água foi o dia em que o marido a violou. "Se o meu marido e pai dos meus filhos me faz isto uma vez, pode voltar a fazer", pensou. E decidiu que era altura de pôr um ponto final naquela história. Só a filha, então com 11 anos, a quis acompanhar. Para trás ficou o filho de 17 anos, com quem entretanto retomou contacto.

"Caí em Lisboa do nada, de paraquedas. Mal conhecia a cidade". Trazia apenas um recorte da revista "Maria", com um número de telefone de uma linha de apoio, para onde ligou de uma cabine telefónica a pedir ajuda. Esteve primeiro três noites num abrigo de emergência, depois cerca de nove meses numa casa abrigo, tempo necessário para pedir a mudança de emprego e arranjar uma casa nova onde recomeçar.

"É uma mágoa muito grande termos de abandonar o nosso casamento, uma pessoa de quem gostamos bastante. Começar do zero não é nada fácil, por isso estou aqui hoje para mostrar às outras mulheres que é possível, seja em que idade for, começar uma vida do zero e refazer a nossa vida". Na carteira traz uma foto tipo passe para nunca mais se esquecer do estado a que chegou: tinha 42 quilos quando decidiu sair de casa e parecia uma velha. Hoje está bonita, bem cuidada, mas nunca mais se conseguiu envolver com ninguém. Há uma mágoa que não passa.

Maria é uma das 10 mulheres que faz parte do grupo de mulheres auto-representantes sobreviventes de violência de género, dinamizado pela Associação de Mulheres contra a Violência (AMCV) e que dá voz às mulheres vítimas de violência, faz acções de sensibilização em escolas, universidades, junto de magistrados e polícias e tenta combater o desconhecimento que muitas mulheres ainda têm sobre os apoios que existem. Escolheram "Hipátia" para o nome do grupo, inspirado numa egípcia, nascida no ano 370, que estudou matemática e se manteve sempre solteira, declarando-se "casada com a verdade".

Outra Maria, 61 anos, só agora teve força e coragem para sair do pesadelo. Durante 40 anos, todos os que esteve casada, viveu cercada pelos "ciúmes doentios" do marido. Obrigada a casar-se por ter engravidado, Maria foi rejeitada pelos pais e acabou por sujeitar-se aos maus-tratos do marido, que a proibia de sair de casa, de falar com vizinhos e obrigava a ter relações sexuais sob ameaça. Pediu várias vezes ajuda ao médico de família e à assistente social, que não valorizaram as suas queixas, e só em fevereiro deste ano, apoiada pela psicóloga que a acompanha, conseguiu finalmente pedir ajuda para sair de casa.

Telefonou para a Associação de Mulheres contra a Violência, um dos dois contactos que a psicóloga lhe dera, e de imediato dispuseram-se a acolhê-la numa casa abrigo. Na noite anterior chorou muito. Pensou: "Eu não tenho saída. Ou tento suicidar-me, ou então vou de férias". Ir de férias foi a melhor justificação que encontrou para explicar aos netos o seu súbito desaparecimento da aldeia, localizada num concelho rural nos arredores de Lisboa. Está na casa abrigo desde 6 de março e já tem a certeza de que não quer mais voltar para casa.

"Não quero ir para casa. Não quero o meu marido. Quero o divórcio, mas não quero queixa-crime. Os meus filhos têm um pai e o meu marido precisa dos filhos, porque o desprezo e ele ficar sozinho já bastam". Maria não esquece as relações sexuais à força, os reparos pela forma como se vestia, o controlo do marido para ver com quem falava no café ou se havia homens no local de trabalho, as acusações de que tinha "amantes". Às vezes, quando viam na televisão os documentários da National Geographic, ela bem lhe tentava dizer que até os animais precisam de "cumplicidade" e de "namoro" para ter vida sexual. Mas ele não a ouvia. Sentia que a procurava "como se fosse uma mulher da estrada" e que ela tinha de estar "sempre disposta".

Sonha em voltar à sua terra, mas não à casa do marido. "Juntar-me a ele não. Quero-me divorciar, já tenho as coisas a andar, quero ter a minha casa. Estou feliz por isso". "Vou ser senhora de mim. Vou ser livre".

Teresa, 56 anos, traz nos braços as marcas de anos e anos de agressões. Mesmo assim, não foram suficientes para que o marido fosse condenado no processo que ela lhe moveu. Eram as únicas provas que tinha dos 30 anos de angústia em que viveu. "A juíza disse que ia ter isso em conta mas não valeu de nada".

Teresa esteve ano e meio numa casa abrigo até que conseguiu voltar a ter a sua independência. Mas o ex-marido, militar, ainda a persegue e ameaça, apesar das sucessivas queixas dela na polícia. "Vai gozando", disse-lhe, há dias, quando saía do autocarro no regresso a casa. Ela diz já não ter medo, mas as colegas avisam-na que não deve menosprezar a "raiva" do ex-marido.

Eva, 48 anos, mãe de dois filhos, libertou-se há oito de um casamento que foi uma tortura de violência psicológica. Era constantemente vítima de humilhação, ameaças, culpabilização. Coisas pequenas, como por exemplo haver pó no móvel ou a comida não estar pronta. Por ciúmes, foi proibida de falar com o pai, com o irmão. Foi várias vezes posta fora de casa e só uma vez fez queixa à polícia, com medo de ser acusada de abandono do lar e de perder os filhos. Foi por eles que ousou sair de casa, quando lhe disseram que o filho já não falava na escola. Aí percebeu que a situação os estava a afetar "demasiado". Viveu três anos entre casas abrigo e só recentemente conseguiu finalmente tratar da regulação do poder paternal e da pensão de alimentos. Mas há traumas que dificilmente se recuperam: "a pessoa acaba por se convencer que é culpada e demora anos a sair da cabeça essa culpa que eles nos incutem. É uma coisa que destrói a nossa auto-estima e demora anos a reconstruir. É muito difícil".

Também ela teve dificuldade em descobrir a quem podia pedir ajuda. E admite que esse, juntamente com algum preconceito e inércia das autoridades, é um dos maiores problemas que estas mulheres enfrentam. "Muitas vezes ouvem-se coisas estúpidas como "Porque é que está nisso? Porque é que não sai?" Ou então "Volte para o seu marido. Volte para o seu lar e para os seus filhos."

A falta de respostas foi uma das dificuldades que Marlene, 29 anos, sentiu. Tem três filhos de um primeiro casamento, em que foi vítima de violência sexual e psicológica, e está grávida, de uma menina, de uma segunda relação de quatro anos, da qual entretanto fugiu porque o companheiro bebia e a maltratava. Na primeira vez chegou a viver na rua, no Porto, porque não tinha para onde ir, e agora está há alguns meses numa casa abrigo em Lisboa. Mas não poupa nas críticas às técnicas de apoio social que a acompanharam. "Tive sete técnicas no Norte e só ao fim de sete técnicas houve uma que ligou para a linha de emergência social. Perguntaram-me se estava disposta a ir para longe e eu nem pensei duas vezes. Peguei nas coisas e vim." Agora só espera pelo nascimento do seu bebé, quer ganhar autonomia e conseguir ir buscar os outros filhos que foi obrigada a deixar para trás com a mãe, também ela vítima. Marlene apresentou queixa contra o agressor, mas acredita que "não vai dar em nada". "Porque as agressões que eu tive foram só pisadelas, não me partiu nenhum dente. E isso só é considerado quando se chega lá com o nariz desfeito ou uma costela partida". Ou quando a agressão acaba em morte e já nada há a fazer.