18.6.20

Luis Pedernera: “As crianças são as principais vítimas colaterais desta pandemia”

Raquel Moleiro, in Expresso


Em entrevista, o Presidente do Comité dos Direitos da Criança da ONU aponta o dedo aos Estados que tomaram “decisões puramente securitárias e sanitárias” e que nunca tiveram em conta os menores. E as consequências, diz, estão à vista: aumento da desigualdade e da pobreza, abandono das famílias, depressão infantil, suicídio, tráfico de seres humanos e abuso sexual, fome e aumento da mortalidade infantil.

Luis Pedernera está preocupado. Mais agora até do que nos primeiros tempos da pandemia. O alívio inicial pela menor gravidade da infeção nas crianças deu lugar à constatação de que coloca os menores como as maiores vítimas colaterais da covid. O dirigente da ONU não aponta o dedo ao vírus, mas aos Estados com as “suas decisões puramente securitárias e sanitárias”, que nunca tiveram em conta as crianças. E as consequências, diz, estão à vista: aumento da desigualdade e da pobreza, abandono das famílias, depressão infantil, suicídio, tráfico de seres humanos e abuso sexual, fome e aumento da mortalidade infantil. Da pandemia quer que se tire, pelo menos, uma lição: no regresso às aulas presenciais a escola tem de ser outra, mais próxima e íntima, com turmas mais pequenas, e sem educadores vestidos de “astronautas”. A entrevista foi feita via Zoom, com Luis Pedernera confinado em casa, no Uruguai.

Há milhões de crianças em todo o mundo fechadas em casa, afastadas da escola, dos amigos, dos avós. Já é possível aferir as consequências deste confinamento infantil?
Agiu-se com a segurança de que o novo coronavírus não afeta as crianças da mesma forma, mas não se teve em conta os efeitos secundários dessas decisões que estão a atacar seriamente os seus direitos. São as principais vítimas colaterais desta pandemia. Para responderem à emergência, os Estados suspenderam os direitos das crianças. Fecharam-se as escolas e na generalidade dos países não se pensou em dar suporte à família para coisas tão banais como a conexão à internet para que a criança pudesse assistir às aulas. E há pais que não sabem usar essas ferramentas. O Estado tem de gerar condições para que as famílias cumpram o seu papel na orientação dos filhos. A família não pode ficar sozinha. Agora, mais do que nunca, precisa de acompanhamento em termos económicos e de apoio técnico, de assistentes sociais, professores, psicólogos. Há crianças a viver depressões. Hoje li uma carta desoladora de uma mãe, cujo filho se suicidou por depressão durante a pandemia.

Não se pensou nas consequências?
Houve uma visão estritamente sanitária e securitária e esse não pode ser o único ângulo para abordar o problema. É muito importante a pedagogia, da educação, da psicologia. Logo em abril, o Comité pediu aos Estados atenção nas medidas para que os direitos das crianças não fossem suspensos; alertamos para a educação online, que é uma ferramenta válida mas tem de se ter cuidado para que não aprofunde as desigualdades. E falámos também das saídas ao ar livre. Alguns países permitiram que as pessoas saíssem de casa para passear os cães, mas não se podia sair com as crianças. Era ridículo. Foi o que aconteceu em Espanha, Itália e Argentina, por exemplo.

As crianças não foram colocadas na equação?
O pensamento generalizado foi: as crianças vivem numa casa, com pai e mãe, têm ligação à internet a 100% e um pátio para brincar. Mas esta não é a realidade. Não reconhecer isso colocou muitas em risco.
A pandemia vai aumentar a mortalidade de crianças com menos de 5 anos a um ritmo de seis mil mortes por dia

Como assim?
O isolamento gerou angústia, ansiedade e depressão. Temos notícias de tentativas de suicídio e suicídio em adolescentes. As crianças vão necessitar de acompanhamento. O Estado tem de dar recursos à família para que possa fazer frente às consequências das medidas tomadas pelo próprio Estado. E o confinamento aumentou também os casos de violência contra as crianças. Os números dispararam. Em qualquer parte do mundo, é um dado contundente. A situação dos meninos que vivem na rua, que estava a ser colmatada, sofreu um retrocesso com a pandemia. O trabalho infantil é outro problema crescente. E estou muito preocupado com o tráfico de crianças e exploração sexual. Estamos a receber informação, que crianças estão a ser vítimas de tráfico de seres humanos e muitas estão a ser abandonadas nas fronteiras porque os traficantes não as conseguem fazer chegar aos países onde seriam exploradas.
E há ainda a crise económica.
Nas palavras do secretário-geral da ONU, António Guterres, a pandemia colocou entre 42 a 66 milhões de crianças em risco de pobreza. A UNICEF advertiu que a pandemia vai aumentar a mortalidade de crianças com menos de cinco anos a um ritmo de seis mil mortes por dia por causas evitáveis. Portugal e Espanha, no Sul da Europa, são os que apresentam os indicadores mais preocupantes. O esforço das autoridades deve ser maior para responder ao impacto socioeconómico da covid.

A reabertura das escolas poderá atenuar estes problemas?
No regresso a essa nova realidade tem de se repensar as relações entre crianças, adultos e instituições. Se as crianças voltam à mesma escola de antes, é um fracasso.

O que tem de ser diferente?
O formato da escola tradicional não é viável no pós-pandemia. Há poucos dias li um artigo num jornal espanhol, de uma pedagoga e de um pediatra, onde se apontavam quatro características da nova escola, para ajudar as crianças a sair do isolamento. O que estamos a ver, de crianças atendidas por pessoas praticamente vestidas de astronautas, é um modelo desumano. A criança necessita do contacto, de afetos. Isso é fundamental para o crescimento, inclusive para diminuir a possibilidade de ficar doente. Esses autores falam de uma escola íntima, com turmas mais pequenas, e mais humana, com mais pessoas presentes nas aulas, de voluntários à própria família. Tem também de ser uma escola coerente: a pandemia e a quantidade de mensagens contraditórias que foram saindo colocaram as crianças numa grande dúvida. A escola tem de criar uma mensagem, clara, adaptada e fácil. E, por fim, tem de haver uma renaturalização da escola: temos de regressar à natureza e vê-la como um espaço também para a escola porque ao ar livre a possibilidade de contágio é menor. Mas receio bastante que voltemos às aulas sem pensar nestas questões. Apenas oiço os adultos falar de questões de segurança pessoal e ninguém pede a opinião das crianças.

O Estado deveria consultá-las antes de tomar decisões que as afetam?
Sim. Não é substituir a tomada das decisões, que é sempre dos adultos. Mas é preciso escutá-las, e pôr sobre a mesa o que dizem como uma contribuição para o debate. E assim se constrói a cidadania das crianças. Estou há mais de dois meses no Uruguai, também confinado, e tive inúmeras reuniões com grupos de crianças. Estão muito preocupadas com a situação económica das famílias, com a saúde dos avós e em saber como estão os amigos da escola. E têm propostas, soluções, mas os adultos não as ouvem.

Que propostas lhe apresentaram?
Por exemplo, na América Latina, um grupo de estudantes do secundário fez uma aplicação informática para as autoridades garantirem o acesso a computadores e ligação à internet, porque muitos colegas não têm uma coisa nem outra. E também ouvi crianças que pediram sementes e ferramentas para cultivar os alimentos que lhes faltam. E também me pediram que os ensinem a cultivar, que querem ajudar as famílias.