29.6.20

A pandemia contaminou as democracias? Sim, em 82 países

Leonete Botelho, in Público on-line

As medidas musculadas tomadas em muitos Estados a pretexto do coronavírus agravaram o declínio dos regimes democráticos. Os investigadores da rede Varieties of Democracy falam em “retrocesso pandémico”. Portugal não apresenta sinais de perigo.

As medidas de emergência tomadas um pouco por todo o mundo para conter a pandemia de covid-19 serviram aos Estados para fazer frente a situações excepcionais, limitando temporariamente liberdades e direitos cívicos e concentrando poder nos governos. Contudo, isto agravou o declínio da democracia em pelo menos em 82 países, contabiliza o primeiro projecto de investigação à escala mundial sobre os efeitos sobre a democracia das medidas excepcionais e de emergência durante a pandemia, elaborado no âmbito do projecto Varieties of Democracy (V-Dem) sediado na Universidade de Gotemburgo (Suécia), agora concluído.

Assistimos a um verdadeiro “retrocesso pandémico”, consideram os investigadores da equipa dirigida por Staffan Lindberg e Anna Luhrmann, coordenada em Portugal por Tiago Fernandes (ISCTE), com o apoio da Fundação Francisco Manuel dos Santos. Do total de mais de 140 países analisados, 34 consideram-se em risco médio de degradação da democracia e 48 em risco elevado – mais um dos que não revelam risco de retrocesso (47). Portugal surge entre os que não sofreram estes riscos, pelo menos até meados de Maio, quando os dados foram acabados de reunir. Os restantes países já eram considerados autocráticos antes da pandemia.

“Isso é ainda mais alarmante no contexto do recente declínio democrático global antes da covid, já que um terço da população mundial vive em países onde a democracia estava em declínio e, pela primeira vez em duas décadas, a maioria dos países da mundo são autocracias”, sublinha Tiago Fernandes ao PÚBLICO.
No estudo, que será colocado online no site do V-Dem na terça-feira, dia 30, considera-se existir risco em regimes democráticos se estas medidas forem desproporcionais ou se prolongarem no tempo, mesmo após a situação que lhes deu origem estar solucionado.

Foram definidos sete grandes critérios que apontam para a violação das normas democráticas pelos procedimentos de emergência. Se houver uma violação grave dos padrões democráticos para situações de emergência, todo o país é classificado como “vermelho”, ou seja, de alto risco de retrocesso pandémico. Se as violações forem menos graves, os Estados são considerados em risco médio e pintados de “laranja”.

Os sintomas mais graves são a expansão do poder executivo sem cláusula, limite ou prazo; a existência de medidas discriminatórias (por raça, cor, sexo, origem social e geográfica, religião) e a derrogação de direitos não derrogáveis: não ser sujeito a tortura, tratamento desumano, escravatura, direito à vida, prisão por crimes de forma retroactiva, liberdade de pensamento, consciência e religião.

Outros sinais de perigo são as restrições à liberdade de informação e dos media e sobretudo, existência de punições quando há supostas violações das regras, assim como a verificação de impedimentos a eleições livres e justas, limitações desproporcionais ao funcionamento e capacidade de fiscalização dos parlamentos e dos tribunais.

Brasil e Moçambique são os dois países de língua portuguesa que foram classificados em risco elevado de retrocesso pandémico, a par da Hungria, Roménia, Bulgária e Grécia, África do Sul, Índia e Egipto. Os EUA estão em risco médio, assim como a Polónia e Espanha (Europa), Colômbia, Argentina, Turquia e Indonésia, entre outros.

Colocando a lupa sobre o Brasil, Tiago Fernandes recorda que o Congresso não autorizou o executivo de Jair Bolsonaro a governar por decreto - como aconteceu na Hungria de Viktor Órban -, “mas autorizou-o a fazer interpretações mais alargadas das leis relativas à pandemia, ou seja, há maior latitude de acção pelo Presidente e membros do governo”.

“Não há leis de limitação da liberdade de imprensa, mas há pressão verbal sobre os jornalistas, redução da informação disponibilizada ao público e à imprensa e um debate público empobrecido pelas ideias anti-científicas do Presidente, como a sugestão de tomar hidroxicloroquina ou as teorias da conspiração chinesa”, sublinha. Outro sinal de perigo foi a medida provisória que suspendia os prazos para o Governo providenciar informação enquanto durasse a pandemia, mas foi suspensa pelo Supremo Tribunal Federal.

A boa notícia, conclui o estudo, é que é possível abordar o covid-19 salvaguardando instituições democráticas, como demonstraram 47 governos de democracias como Portugal, Alemanha, Coreia do Sul e Taiwan: “Ao observar vários princípios-chave, podemos garantir que a democracia continua a funcionar durante a covid-19”.
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