26.6.20

Bairros Saudáveis. “Em Portugal, achamos que é preciso grandes dinheiros para fazer coisas extraordinárias. Não é”

João Carlos Malta, in RR

A arquiteta Helena Roseta, responsável pelo programa apresentado pelo primeiro-ministro António Costa, afirma que este projeto não vai resolver o problema da Covid-19 nos bairros em que as condições de vida são precárias, mas poderá intervir no acesso às condições de higiene, no acesso ao saneamento básico, e nas condições de limpeza urbana.

A habitação tem sido apontada pelos especialistas como um dos principais focos de contágio da Covid-19 em Portugal, e uma das responsáveis pelo novo surto na zona de Área Metropolitana de Lisboa. Os bairros mais carenciados têm sido um foco do vírus.

Por isso, ontem, o primeiro ministro, António Costa, numa altura em apresentava um conjunto de medidas restritivas para estas populações, anunciou também o programa Bairros Saudáveis, que visa melhorar as condições de saúde pública, bem-estar e qualidade de vida em bairros “com constrangimentos”.

O orçamento será aplicado em 2020 e 2021 e disponibiliza entre 5 mil e 50 mil euros para cada projeto, até um total de 10 milhões de euros. Ou seja, feitas as contas pode no mínimo financiar 200 ideias.
A arquiteta e ex-deputada do PS Helena Roseta será a coordenadora. Em entrevista à Renascença, afirma acreditar no poder das pequenas coisas para mudar o país. E dá o exemplo de Lisboa e do programa BIP/ZIP em que o “Bairros Saudáveis” se inspira.

“O programa BIP/ZIP em Lisboa tem 1,5 milhões de euros por ano, o orçamento da Câmara são mil milhões, o programa BIP/ZIP já vai em 200 ou 300 intervenções na cidade de Lisboa ao longo dos anos. Com o dinheiro gasto no BIP/ZIP a Câmara não tinha feito nem uma centésima parte do que eles fazem”, defende.

Em traços gerais em que é que consiste o programa Bairros Saudáveis?
É um programa que se dirige a territórios que têm vulnerabilidades, ou porque as pessoas são muito pobres, ou porque as condições de habitação são muito frágeis, ou porque há uma grande concentração de pessoas com Covid. Há uma série de critérios que o programa prevê para definir estes territórios, e é de âmbito nacional. Pode ser em qualquer território desde um assentamento cigano, algures no Alentejo, até um território com problemas aqui na zona de Lisboa, ou uma ilha no Porto.

Há uma equipa coordenadora que eu irei dirigir, e essa equipa faz chegar aos territórios a informação, através das associações, de movimentos que nós conhecemos e que trabalham estas áreas. Em cada bairro, as pessoas têm de arranjar um grupo de pessoas que pensem o que é que o bairro mais precisa e o que é que podem fazer com o máximo de 50 mil euros num ano.

A partir daí constroem um projeto, que tem de ser apresentado por uma parceria. Se a iniciativa for de uma associação de moradores têm de convidar a freguesia, ou a paróquia, o centro de saúde, ou uma coletividade, ou o que seja. Tem de ser sempre uma parceria. Os projetos são avaliados por um júri, os critérios estão definidos, e são pontuados.

O programa tem 10 milhões de euros por edição, e financia os projetos mais pontuados. Se forem todos de 50 mil euros, dá para 200 projetos, o que é bastante interessante. São projetos pequenos, não é para dar casa às pessoas. Mas a experiência que temos com o BIP/ZIP de Lisboa, e que tenho com a minha experiência de vida, é que nestes bairros o que as pessoas mais precisam não é muito caro. Essas coisas podem ser resolvidas com esta verba e podem melhorar as condições do bairro.

O comunicado do Conselho de Ministros fala de um instrumento participativo que promove iniciativas de saúde, sociais, económicas, ambientais e urbanísticas junto das comunidades locais mais atingidas pela pandemia. Pode dar exemplos de projetos que podem ser apoiados neste âmbito?
Há muitos exemplos, podem ser coisas tão simples como uma campanha de prevenção contra a Covid-19, com a distribuição de máscaras, com explicação aos miúdos, aos jovens, às várias camadas etárias do que têm de fazer.
Pode ser um projeto de apoio aos meninos que não conseguem ir à escola, pode ser um serviço de apoio aos mais velhos que estão isolados e que precisam de ajuda, ou um equipamento que precisem no bairro, pode ser a melhoria da rede sanitária. Há bairros muito, muito precários que têm esgotos a céu aberto.

"O programa tem 10 milhões de euros por edição, e financia os projetos mais pontuados. Se forem todos de 50 mil euros, dá para 200 projetos, o que é bastante interessante"

Pode ser ainda uma pequena obra que precisem no bairro. Tudo isto são programas possíveis e, por isso, ele é tão aberto. O bairro saberá melhor do que eu o que é que mais falta lhes faz.

Posso dar exemplos, em Lisboa, um bocadinho extraordinários. No BIP/ZIP, recordo-me de um conjunto de bairros que apresentaram como proposta uma pista de skate. Achei estranho, não me parecia a coisa mais urgente, mas eu não morava lá. O júri achou interessante, porque a ideia estava muito bem justificada, a verdade é que a fizeram e o que sei é que os miúdos passavam o dia na pista, os miúdos de fora também se juntavam lá, e aquilo passou a ser um centro de atração do bairro.

O programa não vai construir casas para toda a gente, nem pouco mais ou menos. Não vai conseguir dar emprego a toda a gente, nem pouco mais ou menos. Estes programas podem fazer a diferença em bairros que não têm recursos para melhorar nada e que não conseguem apoios para nada, se tiverem um pequeno apoio, as pessoas organizando-se conseguem fazer coisas extraordinárias. Esta é a lição o BIP/ZIP de Lisboa.

O programa já o disse é nacional, mas haverá verbas alocadas para cada região? Não se corre o risco de serem aquelas que têm maior dinamismo da sociedade civil a conseguirem os fundos, e outras que precisam, mas não têm essa capacidade a ficarem de fora?

Não sabemos se isso vai acontecer ou não. Não estou a prever fazer quotas no programa, o que pode acontecer é outra coisa, mas ainda terei de falar com a senhora ministra da Saúde que é quem lidera o processo. Aquilo que admito é abrir várias candidaturas no mesmo ano. Não abrir só um concurso de cada vez. Se o programa pode ir até 600 projetos, admito que se abrirmos em setembro, pode acontecer que nem toda a gente tenha informação nessa altura. Podemos fazer uma primeira vaga para 50 projetos, depois mais 50 projetos passado um mês, e aí veremos se a diversidade territorial que vamos ter. Depende muito da iniciativa que aparecer.

Mas não há o risco de o dinheiro ficar só em Lisboa e no Porto?
Neste momento, não estou muito preocupada com isso. Queremos chegar a muitos pontos do país, e o desafio que eu agora tenho é o de montar a rede para chegar a todo o lado, encontrar gente. Estou a pensar no interior Norte, na zona da Guarda, Alentejo, Algarve, arranjar gente que consiga fazer chegar a informação uns aos outros.

Em Lisboa, o que aconteceu também foi um pouco efeito de contágio, quando as pessoas começaram a saber que isto existia, isto passou de boca em boca e apareceram mais candidaturas. Nestes processos participativos não se pode definir tudo à partida. Não são híper-regulamentados, senão deixam de ser abertos. Não se pode definir tudo à partida, temos de fazer alguma experimentação, ver o que aparece e depois corrigir.
Nesta fase, não penso que isso seja necessário. Se houver mais candidaturas em algumas áreas pode ser porque aí haja mais necessidades, também temos noção disso. O levantamento feito pelo IHRU (Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana) há dois anos no país não é homogéneo no território nacional.

"Este não é um projeto para modificar radicalmente o quadro de vida das pessoas, mas dá um bocadinho mais de poder a quem está em territórios que são excluídos de muitas coisas. As pessoas com mais poder, ganham mais voz, com mais voz participam mais, e participando mais, a relação de força altera-se."

Não se fez o levantamento das carências todas, mas identificou 26 mil em situação carenciada, mas há zonas com mais evidência dessas carências do que outras. Vamos ver o que aparece, não podemos obrigar ninguém a apresentar-se. As pessoas é que se têm de organizar. Isto é a diferença de um programa que vem debaixo para cima, de um programa “top-down” (de cima para baixo).

Este programa é suficiente e terá celeridade para o fazer, ou precisava de ter mais meios para ter efeito no curto prazo?
A celeridade não terá a ver com problemas de meios. Os problemas que se encontram na execução disto são porque o município não autoriza a fazer o que se quer, são mais problemas de licenciamentos e de autorizações, do que de meios. Temos em Lisboa, muitos projetos que nem chegaram aos 50 mil euros. Começaram com projetos mais pequenos. Começaram, por exemplo, com uma campanha mais especifica sobre a melhoria da imagem do bairro.
O desafio maior não é falta de meios, é fazer chegar a informação, conseguir apesar de todas as dificuldades de comunicação, e de por não podermos fazer muitas coisas presenciais, fazer chegar às pessoas a capacitação, ensiná-las a fazerem projetos.

Estão alocados 10 milhões de euros. É suficiente?
Fui eu que propus esse valor. Em Portugal achamos que é preciso grandes dinheiros para fazer coisas extraordinárias. Não é. Com pouco dinheiro podem-se fazer coisas extraordinárias. O programa BIP/ZIP em Lisboa tem 1,5 milhões de euros por ano, o orçamento da Câmara são mil milhões, o programa BIP/ZIP já vai em 200 ou 300 intervenções na cidade de Lisboa ao longo dos anos.

Com o dinheiro gasto no BIP/ZIP a Câmara não tinha feito nem uma centésima parte do que eles fazem. Acredito muito nesta energia das pessoas. Foram em muitos casos, elas que fizeram as suas próprias casas, não têm é meios, não têm recursos. Estas metodologias diferentes do tradicional é que temos de incentivar. Não podemos pensar que é o Estado que vai fazer tudo, não funciona. Não podemos estar a despejar dinheiro nas organizações, sem que haja trabalho concreto para ser feito e apresentado.

O dinheiro tem de chegar o mais depressa às pessoas, e é por isso que vou trabalhar "pro bono", e que em princípio a equipa vai trabalhar "pro bono", podemos no máximo pedir apoio a uma universidade. O dinheiro não é para gastar com as pessoas que não vivem nestes bairros.

Este programa suficiente e terá celeridade para o fazer, ou precisava de ter mais meios para ter efeito no curto prazo?
O impacto maior é as pessoas poderem participar e sentirem que podem melhorar a sua vida com um pouco de apoio e trabalhando para isso. Este não é um projeto para modificar radicalmente o quadro de vida das pessoas, mas dá um bocadinho mais de poder a quem está em territórios que são excluídos de muitas coisas. As pessoas com mais poder, ganham mais voz, com mais voz participam mais, e participando mais, a relação de força altera-se. Mas isso já não depende de mim.

Quais são os principais problemas que os bairros com condições de vida precária enfrentam, e como é que isso tem influência na saúde pública? Que impacto pode ter nessa dimensão este programa?
Em Portugal mais de 35% das habitações têm problemas graves de humidade. É natural que isso depois provoque doenças como o reumatismo, asma, e questões respiratórias, etc..
Há pessoas a mais, em casas muito pequenas, provoca condensação em interior, provoca falta de privacidade, e problemas de saúde. Podem ter deficiências nos abastecimentos, nos espaços públicos, falta de zonas verdes devidamente tratadas, recolha de lixo insuficiente. Há 'n' situações que conheço e posso testemunhar, mas não vou ser eu a escolher, são as pessoas. Elas é que sabe