23.6.20

Combater a pobreza no meio da pandemia: “Estou sem dinheiro. Nem para comprar um ovo”

Rui Pedro Paiva e Rui Soares, in Público on-line

Nos Açores, a região com mais pobres do país, prevê-se o aumento da pobreza devido à crise da covid-19. Primeiros indicadores revelam diminuição do desemprego, mas um aumento dos beneficiários do rendimento social. O desafio reside nos próximos meses.

Mais uma quarta-feira, dia da distribuição dos cabazes. Paulo Cabral, 52 anos, carrega uma caixa de cereais, um pacote de manteiga, arroz, mortadela, doce de laranja, febras congeladas, pão, bolos, iogurtes, barras de cereais e salsichas distribuídos por três sacos. Quando os voluntários, de máscaras e com um longo fato de protecção branco, entregam o cabaz, Paulo observa entre os sacos e diz: “Eu agradeço muito a ajuda que me estão a dar.”

A ajuda – fornecida pela cooperativa solidária Cresaçor - não é só para ele. É também para a mulher e para a filha de cinco anos. Paulo Cabral é beneficiário do Rendimento Social de Inserção (RSI), recebe 180 euros por mês e a renda do quarto custa 230 – “quem me ajuda a pagar o resto é a segurança social”.

Pertence ao grupo de utentes que foi reencaminhado pela Segurança Social para o projecto ‘Sertã Solidária’, daquela cooperativa, aquando do início da pandemia, há dois meses. “Estou sem dinheiro. Nem para comprar um ovo. Vai fazer quatro dias que não tenho gás em casa. Muita complicação e muita necessidade”, diz. Necessidades mitigadas por um projeto que o “ajuda muito” e que teve “muito impacto” na sua vida: “para muito melhor”.

O relato é de uma das 22 pessoas que ali acorrem naquele dia para receber o cabaz fornecido pelo ‘Sertã Solidária’. É uma das valências da Cresaçor, que procura combater a fome nos Açores, a região com a maior taxa de pobreza em Portugal: 31,6%, após transferências sociais e segundo dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), conhecidos no final de 2019 e referentes a 2018. Números que devem aumentar como consequência da pandemia.

“Houve um aumento e vai continuar a haver. Estamos a prever que isso ainda não é nada”, diz Isabel Antunes, a responsável, referindo-se aos utentes do projecto que assenta no desperdício alimentar. A iniciativa começou em 2012 mas sofreu uma mudança na organização devido à covid-19. Antes recolhiam diariamente os excedentes dos restaurantes. Com estes fechados (em São Miguel só reabriram a 29 de Maio), passaram a ter apenas doações dos supermercados. As grandes superfícies já eram parceiras, mas aumentaram a quantidade de doações nos últimos meses “o que deu para compensar as perdas” da restauração.

Por isso, as refeições deram lugar aos cabazes, entregues à quarta-feira a pessoas individuais e à sexta-feira a famílias. No total, são 75 pessoas: 22 individuais e 53 pessoas organizadas por famílias, onde se incluem 29 crianças. Com a pandemia, aumentaram em seis os casos individuais, que têm alternado nas últimas semanas. “Os 22 do início da pandemia não são os mesmos 22 de agora, porque, entretanto, uns eram só mesmo uma situação de emergência”, explica, destacando que devido ao aumento de solicitações o projecto atingiu a “capacidade máxima”.

É o caso de Rita Pacheco, 67 anos, que leva um cabaz pela terceira vez. “Dão muita coisa”, diz, referindo a ajuda alimentar “essencial” quando tem um “quarto para pagar” e está “sozinha”. Por outro lado, João Maciel, 60 anos, recorre ao Sertã Solidária há três anos. “Se não fosse isso, estava a passar fome. Isso é uma coisa muito boa aqui.”

São uma amostra de uma lista de utentes que está entre os 50 e 70 anos, “maioritariamente do sexo masculino”, com “patologias associadas”, como o alcoolismo ou a toxicodependência, muitos deportados dos Estados Unidos e Canadá e todos beneficiários do RSI e do subsídio de carência económica. “Obviamente que sentimos um aumento das solicitações. Evidentemente que até a pobreza envergonhada aumentou. Tenho aqui pessoas que não tinha. O desemprego subiu”, afirma Isabel Antunes, referindo que a pobreza nos Açores é geracional.

Desemprego diminuiu, aumentaram beneficiários do RSI
A percepção da responsável do Sertã Solidária não é confirmada pelos números mais recentes do Instituto do Emprego e Formação Profissional (IEFP), que colocam os Açores com um decréscimo de 6,2% no número de desempregados inscritos em Abril face ao período homólogo, sendo a única região do país em que o desemprego diminuiu. “É com alguma naturalidade que vejo este número”, começa por dizer ao PÚBLICO o director regional da Solidariedade Social, Marco Matias, enumerando as medidas de apoio ao emprego do Governo Regional, como o complemento regional ao lay-off ou liquidez à tesouraria das empresas. “Não será expectável que nos próximos dois, três meses, até final do ano, continue uma descida [do desemprego], não será de todo expectável e temos de reconhecer isso”, assume, em seguida.

Um dado que ajuda a prever esse possível aumento é o número de beneficiários do RSI, que cresceu em 156 pessoas em Abril. Um mês antes, em Março, a região tinha atingido o “mínimo histórico” de beneficiários do rendimento. “Do início de 2018 ao início 2020 houve uma redução de 3300 beneficiários, 18%, uma redução bastante significativa, concretamente em São Miguel”, explica o director regional, referindo também a resposta “bastante musculada” do executivo açoriano para contrariar os afeitos da covid-19.

Complementarmente ao apoio nacional, foi criado um subsídio até 150 euros para os trabalhadores que tiveram de ficar em casa com os filhos devido ao encerramento de creches e escolas (que abrem em Junho); as rendas das habitações sociais do Governo Regional – que são “largas centenas” – foram isentadas; o pagamento da mensalidade de creches e jardins de infância foi suspenso enquanto as instituições estiverem encerradas; e foi atribuída uma compensação financeira às Instituições Particulares de Solidariedade Social que poderiam ver reduzidos os rendimentos devido à medida anterior.

Iniciativas de cariz social, aliadas ao pacote de 62 medidas de apoio às empresas que visam a manutenção do emprego. No total, entre medidas regionais e nacionais, foram disponibilizados cerca de 405 milhões de euros às empresas açorianas. “É uma nova realidade. No início do ano, os indicadores eram positivos. Agora, a manutenção destes indicadores é confrontada com a pandemia. Estávamos à espera de muitos inimigos, mas não desse”, releva Marco Martins.

É “bastante previsível” pobreza já ter aumentado
Para combater o problema “estrutural” e “histórico” da pobreza nos Açores, foi lançada em 2018 a Estratégia Regional de Combate à Pobreza e Exclusão Social, que terá de “sofrer algumas mudanças”, consequência da pandemia. Sem avançar o tipo de mudanças, Marco Martins aponta para um horizonte temporal de dez anos que não poderá ser alterado. “Temos níveis de pobreza e de exclusão social acima dos desejáveis e temos de manter a aposta em médio e longo prazo.”

O primeiro autor da estratégia, o sociólogo Fernando Diogo, diz ser “bastante previsível” a “pobreza já ter aumentado” nos Açores nos últimos meses. “Nós não temos números, nem devemos ter nem tão cedo, mas é bastante previsível que a pobreza tenha aumentado a nível regional e nacional”, diz ao PÚBLICO.

Para compreender o fenómeno da pobreza no arquipélago, o professor da Universidade dos Açores realça uma diferença: “a região não é a mais pobre, mas é a que tem mais pobres”, uma vez que o PIB per capita dos Açores (17,5%) não é o mais baixo do país – está acima da zona Centro (17,2%) e do Norte (16,9%), números de 2018. A desigualdade na distribuição de rendimentos é um indicador que ajuda a compreender a nível de pobreza, uma vez que, segundo o INE, referido pela PORDATA, a desigualdade de rendimento nos Açores em 2019 foi de 37,6%, enquanto a média nacional foi de 31,9%. É a região mais desigual do país.

Tratando-se de uma “questão complexa”, Fernando Diogo ressalva que a pobreza nos Açores “não está distribuída de forma homogénea” pelo arquipélago, estando “muito concentrada” em São Miguel. Na estratégia regional de combate à pobreza foram identificadas cinco áreas prioritárias: Arrifes, Água do Pau, Fenais da Ajuda, Rabo de Peixe e Terra Chã – apenas esta última fica na Terceira e não na maior ilha açoriana.

Há uma razão histórica para tal, relacionada com a “distribuição da posse da terra”, uma vez que as áreas naquela ilha, além de mais extensas, eram propriedade da elite micaelense do século XIX. Uma elite que “concentrou a riqueza durante muito tempo” através de casamentos entre familiares, explica o sociólogo.

A resposta que procura justificar a pobreza nos Açores não é fácil. “São várias respostas interligadas”, refere. É exemplo disso a “especialização” da economia regional, “bastante vulnerável à pobreza”, uma vez que assenta em áreas com “baixos salários e trabalhos precários”, como a construção civil, a agricultura, as pescas, os serviços domésticos e o turismo.

Outra resposta pode ser dada através das baixas qualificações da população, uma vez que os Açores, por exemplo, também são a região do país onde existem mais pessoas sem o ensino secundário (70,2% na relação indivíduo – proporção). Ou ainda através das poucas mulheres no mercado de trabalho. Em 2019, os Açores foram a região do país com menos pessoas do sexo feminino empregada em comparação com o total de empregados (44,9%).

Também por ser a região mais jovem do país, com um índice de envelhecimento (número de idosos a cada 100 jovens) de 93,1 enquanto a média nacional foi de 159,4, os Açores vêem aumentar a possibilidade de ter mais pobres. “A pobreza afecta mais as famílias com crianças.”

Para o sociólogo, um dos autores de Pobreza e Exclusão Social em Portugal (Húmus, 2016), e em jeito de conclusão, os dados recentes podem ser interpretados de duas maneiras: em relação ao “tempo” as “melhorias são brutais”; quanto ao “espaço”, comparando com o resto do país, a “situação continua a ser má” porque um em cada três açorianos é pobre. Números antes da covid-19.

Assumindo que a “crise da pandemia” irá trazer para o risco de pobreza “pessoas que não pensavam ver-se em dificuldades”, o director regional Marco Martins diz ser necessário ter capacidade de “resiliência” para o futuro. “As respostas a estes desafios passam pelo sermos solidários, disruptivos, inovadores e capazes de nos adaptar.”