30.6.20

Ciganos “traiçoeiros”, jeovás “fanáticos”: o preconceito nas decisões judiciais

Tiago Soares, in Expresso

Investigadores estão a analisar mais de meio milhar de sentenças para avaliar como os tribunais portugueses lidam com minorias e conceitos de “raça” e “etnia”. Comunidade cigana é o maior alvo da discriminação

O primeiro passo foi pesquisar no arquivo de sentenças do Ministério da Justiça por palavras-chave como “raça”, “etnia”, “cigano” ou “homossexual”. O resultado foi um levantamento de mais de 550 decisões judiciais proferidas desde 1976 que uma equipa de investigadores composta por juristas, antropólogos, sociólogos, psicólogos e linguistas está agora a analisar, para “avaliar o modo como os tribunais portugueses atuam em processos que envolvam minorias étnicas, religiosas ou linguísticas”.

O projeto Inclusive Courts (IC, Tribunais Inclusivos), que resulta de uma parceria entre o Centro de Investigação em Justiça e Governação da Universidade do Minho e o Centro em Rede de Investigação em Antropologia, foi criado em 2018, e a análise de muitas das sentenças de tribunais como o Supremo Tribunal Administrativo, o Supremo Tribunal de Justiça e o Tribunal Constitucional entretanto analisadas foi agora publicada num site de livre acesso, online desde segunda-feira. Para aumentar a sua base de dados, o IC está a pedir a outros tribunais acesso a decisões de primeira instância, que não são públicas, bem como a organizações não governamentais.

“De um modo geral, os tribunais portugueses não se mostram recetivos a estereótipos negativos a respeito de grupos ditos minoritários, mas há exceções”, diz ao Expresso Patrícia Jerónimo, coordenadora do projeto e professora na Universidade do Minho. Um dos problemas identificados tem a ver com os “apartes” nas sentenças: “A decisão é prejudicada por argumentos desnecessários e comentários laterais inúteis”, explica.

Numa sentença, a juíza utilizou expressões como “traiçoeira” e “subsidiodependente” sobre a comunidade cigana
Os casos “mais frequentes” são os que envolvem ciganos, diz Patrícia Jerónimo. Em 2008, por exemplo, uma juíza do Tribunal de Felgueiras utilizou expressões como “coitadinhos” (ironia), “pouca higiene” e comunidade “traiçoeira” e “subsidiodependente” para se referir a pessoas de etnia cigana. Referências à “raça negra” surgem amiúde no acervo do IC, mas “raramente há lugar a comentários e descuidos racistas [para com negros] por parte dos juízes” de forma tão direta como acontece com os ciganos.

Outro exemplo de preconceito é um acórdão do Supremo que destaca a “discriminação sexual em função do género” como uma das “características da cultura” e “crença” do arguido (de religião muçulmana), um tipo de linguagem comum em processos que envolvem minorias religiosas.

Num caso envolvendo uma Testemunha de Jeová, o coletivo de juízes classifica aquela comunidade religiosa como uma das “seitas” que “pululam no mundo” e cujos “fiéis aderentes” procuram “impor a toda a gente fanatismos e fundamentalismos de diversa ordem, quantas vezes com finalidades inconfessáveis pelos dirigentes que os ditam”. E seguem com um apontamento humorístico: “Como acontece em toda a sociedade que se diz e quer civilizada, as normas de conduta aprovadas pela autoridade legitimamente constituída sobrelevam os preceitos e ensinamentos prescritos por qualquer minoria de intolerantes, sejam eles ditados em nome de Maná (será aquele pão que caiu do céu?), Jeová ou mesmo Satanás.”

Para o presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, António Ventinhas, este projeto vai permitir “melhorar algumas práticas”, já que “só o facto de se abordar o assunto leva à reflexão sobre o mesmo”. “Os apartes devem ser evitados, pois só servem para fragilizar as decisões judiciais e do Ministério Público.”

Manuel Soares, presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, lembra o Compromisso Ético dos Juízes, que determina que o juiz não deve “exprimir opiniões ou considerações pessoais de natureza política, ideológica ou religiosa que não sejam estritamente necessárias para a respetiva fundamentação” da sentença.

ONU instou Portugal a fortalecer esforços para combater o “preconceito e a discriminação” contra minorias

O caso mais badalado será um acórdão do juiz Neto de Moura em que era citada a Bíblia para desculpabilizar um processo de violência doméstica. Uma outra sentença polémica, mais antiga, resolve um processo de violação escrevendo que as duas queixosas se puseram a jeito, por estarem a pedir boleia “em plena coutada do chamado macho ibérico”.

“É pacífico que para aplicar a lei de forma igual é necessário diferenciar pessoas e situações — a chamada discriminação positiva. Essa dimensão do princípio da igualdade exige que as pessoas não sejam prejudicadas por fatores suspeitos, mas também pode exigir diferenciações de tratamento para alcançar igualdade efetiva”, diz Patrícia Jerónimo. “É essencial compreender como os tribunais fazem a conciliação entre o princípio da igualdade e os direitos culturais.”

Sobre o problema, Manuel Soares lembra que “o respeito pela diversidade cultural é uma imposição constitucional” que os tribunais têm “obrigação” de promover. “Não é com meia dúzia de decisões escolhidas a dedo que se pode concluir que a Justiça não cumpre o dever de promover a igualdade”, diz. Ainda assim, o presidente da Associação Sindical dos Juízes reconhece a importância de os magistrados terem uma “formação integral”.
Patrícia Jerónimo sublinha que o IC é uma ferramenta de “crítica construtiva” ao sistema judicial. “Os juízes não são máquinas, e muitas vezes acontece não termos noção dos nossos próprios preconceitos”, explica. Assim, é crucial reconhecer que “o problema reside no facto de termos ideias feitas sem nos apercebermos de que podem prejudicar ao ouvir rea­lidades diferentes da nossa.”

Em abril deste ano, o Comité de Direitos Humanos da ONU publicou um relatório sobre Portugal que urge o Estado a “fortalecer os esforços para combater intolerância, estereótipos, preconceito e discriminação” contra grupos vulneráveis e minorias (ciganos, descendentes africanos, muçulmanos e LGBT). Para isso, é necessário “aumentar a formação dada a polícias, procuradores e juízes”, salienta o documento.

O financiamento do IC termina em 2021, mas o projeto irá continuar. Serão realizadas entrevistas com juízes e procuradores, no sentido de se obter “uma visão panorâmica” do sistema. O projeto “tem sido bem recebido” por órgãos como o Conselho Superior da Magistratura, o Conselho Superior do Ministério Público e o Centro de Estudos Judiciários, adianta a responsável. “Temos tido provas de vontade e disponibilidade em melhorar a atuação nestas questões”, conclui Patrícia Jerónimo. E António Ventinhas não esquece um “grande problema”: “Muitos cidadãos de minorias encontram-se nos estratos mais baixos da sociedade”, o que leva a “maiores desigualdades nos tribunais.”