26.6.20

Quando à pobreza se junta o medo: “Eu vou fugir daqui”

João Pedro Pincha (Texto) e Nuno Ferreira Santos (Fotografia), in Público on-line

A pandemia só veio agravar uma situação que já era delicada na Musgueira, na Ameixoeira e nas Galinheiras, bairros da única freguesia de Lisboa que continua em situação de calamidade.

Já ninguém chama Musgueira à Musgueira, só Alta de Lisboa. Os moradores mais antigos, que declaram “vou a Lisboa” quando querem dizer que passam para lá do Campo Grande, usam e repetem o nome para fazer desaparecer o estigma, para vincar que aquele bocado ainda é cidade capital do país. Talvez eles próprios não acreditem muito nisso – e a lembrança chega de forma estranha, quando a freguesia a que pertencem, Santa Clara, é a única de Lisboa a manter-se em calamidade por causa da pandemia.

Numa rua do bairro, que fica praticamente encostado à zona norte do aeroporto, a irmã Ana Maria Gomes abre caminho por entre pequenos grupos de pessoas e montes de lixo no passeio para chegar à ludoteca que aqui gere a Congregação do Bom Pastor. Em tempos normais a sala estaria cheia de miúdos saídos da escola ali mesmo em frente, a Pintor Almada Negreiros, mas as cadeiras estão arredadas a um canto e as mesas enchem-se de sacos de pão. “Semanalmente chegam-nos aqui pão, bolos e alguns frescos”, explica a freira.

A realidade obrigou-as a mudar o objectivo do espaço. Muito antes da pandemia, as irmãs responderam ao apelo da Refood mais próxima para ajudarem a distribuir comida no bairro e já tinham uma lista considerável de pessoas apoiadas. A covid-19 veio aumentá-la. “Não andamos longe das 80 famílias”, diz Ana Maria Gomes, revelando que da última entrega só lhe sobraram alguns pães antigos, porque os frescos foram todos.

Não lhe causa estranheza que Santa Clara seja uma das 19 freguesias que o Governo decidiu manter a situação de calamidade na Área Metropolitana de Lisboa. “As pessoas têm casas pequenas, acabam por vir para a rua e ficam com os vizinhos a fazer sala. As famílias já estiveram mais atentas às medidas de distância, mas cansam-se. Agora já se vêem festas de aniversário e ajuntamentos nos cafés. Têm-se descuidado mais”, comenta.

Na continuação da rua encontra-se um quarteirão isolado, sem saída, o chamado PER 10, construído, como todos os do Programa Especial de Realojamento, para dar casa a pessoas que viviam em barracas. “Eu vou fugir daqui, vou para casa de uma tia”, afirma Ana Botelho. “Aqui havia uma pessoa infectada no sábado e agora já são quatro”, descreve. Na rua que contorna o bairro há grupos à conversa e famílias que jantam aproveitando o sol do fim da tarde. “Eu só saio de casa mesmo em estado de necessidade, mas as pessoas continuam a fazer vida normal. Toda a gente se conhece, toda a gente se cruza. Tenho um filho e tenho medo, porque esta zona está a ficar mesmo perigosa para apanhar o vírus”, diz a moradora.

Pobreza e abandono

O Eixo Norte-Sul divide Santa Clara ao meio e funciona como barreira entre duas faces da mesma freguesia. Na Ameixoeira já não se encontra lixo espalhado pelo chão e as ruas estão cuidadas. Na junta de freguesia não se encontra nenhum membro do executivo, informa uma funcionária.

Já quase a chegar à freguesia de Camarate, no concelho de Loures, que também é uma das 19 sob vigilância especial, dá-se com as Galinheiras. No largo central descansam os motoristas da Carris e pequenos grupos convivem à sombra. José Alcindo Armas, pároco da Charneca, descarrega pêssegos e ananases de uma carrinha. “Aqui a realidade é pobreza a todos os níveis: material, de educação e de consciência”, resume.

O núcleo antigo das Galinheiras é composto por vilas de uma só rua e casinhas baixas. Maria da Ascensão Vieira, que explora um café, lamenta a má sorte do bairro. “Até a Musgueira mudou de nome, só aqui às Galinheiras é que ninguém vem pôr um nome pomposo”, diz, apontando para um caixote de lixo a abarrotar, que indica como sinal de como a junta e a câmara olham pouco para esta zona.

“Galinheiras funciona como um bairro dormitório de Lisboa, mas está a 10 minutos do Campo Grande e a 20 do centro”, lembra o padre Alcindo. Grande parte da população que aqui reside, sobretudo de origem africana e cigana, “trabalha na restauração e nas limpezas” e habita “casas com poucas condições pelas quais pagam rendas altíssimas”, descreve. O pároco conta a história de um homem que “apanhou o vírus a trabalhar e transmitiu-o a toda a família, mas não por querer. Foi porque não tinha outra solução. Ou ia viver para a rua ou contaminava a família. É muito difícil fazer isolamento aqui.”

Também presidente do centro social e paroquial, José Alcindo diz ter avisado os trabalhadores de que a pandemia chegaria ali em força em Abril. E chegou, com muitas pessoas infectadas e com muitas mais a pedir ajuda. Nas Galinheiras o número de famílias a receber apoio alimentar passou de 41 para 51 em poucas semanas e na Charneca disparou de 76 para 101. Há ainda mais 26 famílias que recebem um apoio mensal e 50 pessoas que, na semana passada, passaram a usufruir de uma refeição diária.

“Aqui há pobreza e abandono. Não estamos a falar de um tipo de pobreza que a pandemia trouxe, ela já existia antes”, diz o pároco. “Recebemos ontem um mail da Cáritas a perguntar se podíamos ajudar mais famílias, mas não podemos mais, atingimos o nosso limite.”

Na Ameixoeira notou-se igualmente um aumento significativo dos pedidos de ajuda alimentar, que continuam a chegar. “De duas em duas semanas recebemos uma nova listagem com seis, oito, 15 nomes”, afirma Sandra Fonte Santa, directora técnica do centro social, adiantando que estão a receber alimentos 126 pessoas, das quais 29 são crianças. “Muitas pessoas deixaram de fazer limpezas e ficaram sem trabalho. O desemprego deve ter disparado”, arrisca a responsável. “As condições más já lá estavam, o cenário não mudou, quanto muito agravou-se.”

Tal como na ludoteca da Musgueira, as principais valências do centro ficaram adiadas pela emergência do combate à pandemia, mas agora começam a surgir outros problemas. “Os nossos utentes do centro de dia estão em casa, muito deprimidos e com dificuldades de locomoção”, diz Sandra. “Vamos ficar sem três porque não aguentam estar em casa e decidiram ir para lares.”