Textos Cátia Mateus, in Expresso
Aumento do desemprego gerado pela pandemia vai, forçosamente, ter um impacto negativo nos salários. É cedo para saber quanto. E antes da queda a remuneração média pode até dar sinais de aumentar
Apesar da subida do desemprego, impacto da pandemia nos salários não será imediato
assim a lei da oferta e da procura e não há como fugir. As estatísticas do desemprego registado (número de inscritos nos centros de emprego), divulgadas esta semana pelo Instituto do Emprego e Formação Profissional (IEFP), mostram que, pese embora um abrandamento no ritmo de novas inscrições durante o último mês — onde 16 mil novos inscritos comparam com os 48 mil registados entre março e abril —, os níveis do desemprego continuam a aumentar no país. Portugal tem mais 93 mil desempregados registados do que no início da pandemia e mais 103 mil do que há um ano. Um rápido aumento da oferta de profissionais disponíveis, que terá como efeito prático uma redução do que as empresas estão dispostas a pagar para contratar. Parece haver poucas dúvidas de que a pandemia vai conduzir a um ajuste nos salários. Só não se sabe quanto nem quando. E o economista João Cerejeira antecipa mesmo que antes da redução de salários, “que é certa”, o nível médio de remuneração dos portugueses possa até aumentar “estatisticamente”.
Antes da pandemia ‘congelar’ as empresas e empurrar milhares de trabalhadores para lay-off, Portugal enfrentava níveis de desemprego próximos do estrutural. Fechou 2019 com uma taxa de desemprego de 6,5% e sofria, em alguns sectores específicos e mais qualificados, de dificuldades de contratação. Um contexto de escassez de mão de obra disponível que nos últimos anos vinha pressionando a subida de salários. Desses dias só resta a memória.
Economistas e recrutadores têm poucas dúvidas de que o impacto do aumento do desemprego (e, consequentemente, do stock de trabalhadores disponíveis no mercado) vai forçar uma redução de salários, que será mais evidente em algumas áreas e grupos funcionais do que noutros. Mas o efeito não será imediato e nos próximos meses os dados oficiais até podem dar a ideia de que os salários de quem continua no ativo estão a subir.
Aconteceu na última crise. João Cerejeira chama-lhe “ilusão estatística” e pode repetir-se agora. Com o desemprego a subir e a crise instalada, a remuneração média mensal base dos trabalhadores por conta de outrem (TCO) pode mesmo aumentar nos primeiros meses ou anos pós-covid. Durante a crise financeira mundial de 2009 foi assim. Até 2012, e já com o país em contexto de austeridade e a ser intervencionado pela troika, a remuneração dos TCO portugueses continuou a subir. Viria a cair cerca de 3% em termos nominais nesse ano, para só iniciar nova recuperação a partir de 2015 (ver infografia). O fenómeno é fácil de explicar.
“Em situações de crise, os primeiros trabalhadores a ser dispensados pelas empresas são aqueles com vínculos precários e contratos a termo. No fundo, os que têm remunerações mais baixas. Permanecem nas empresas os profissionais mais seniores, com contratos sem termo e remunerações mais elevadas”, explica o economista João Cerejeira, salientando que “ao reduzirmos o peso dos baixos salários no total da remuneração dos TCO, estatisticamente a média de remunerações sobe, porque há uma maior representação de salários mais elevados”.
Na prática, a quebra de remuneração só se torna evidente quando as empresas começam a dispensar a franja de trabalhadores dos contratos sem termo, substituindo-a por novas contratações a um valor inferior. E esse movimento não é imediato. Não o foi na crise anterior e, admitem economistas e especialistas em recrutamento, também não o será na crise atual, ainda que esta em nada se compare ao que já vivemos antes.
O que temos pela frente
De resto, as projeções dos recrutadores também vão nesse sentido. “Temos alguns clientes já a recrutar e nenhum nos está a pedir para recrutar para as mesmas funções que antes por salários inferiores”, explica Carla Rebelo, diretora-geral da consultora Adecco e Portugal. Lourenço Cumbre, diretor executivo da área de banca e serviços financeiros da Michael Page, confirma a “tímida retoma” da contratação por parte das empresas e acrescenta que, embora a redução dos salários não seja ainda evidente, ela “vai acontecer, é inevitável”. O especialista recorda que muito do desemprego nacional ainda está a ser travado por medidas como o lay-off e outras que agora estão a ser lançadas. “Quando tudo isto terminar, teremos um stock considerável de profissionais muito qualificados no desemprego e disponíveis para trabalhar”, explica, admitindo que as empresas vão nivelar por baixo os salários.
Nenhum dos especialistas arrisca avançar exatamente quanto poderão cair os salários em Portugal na sequência da pandemia. E Carla Rebelo até enfatiza que “o país não tem muito mais margem para descer salários”. A especialista em recrutamento reconhece que “obviamente que esta crise terá consequências”, mas recorda que, “se comparado com o país vizinho, Portugal tem já um salário médio que corresponde a metade do espanhol e um salário mínimo 50% abaixo”. Do lado dos economistas, João Cerejeira também confirma que “nunca tivemos um salário médio tão próximo do mínimo como agora”.
Mas, mesmo não arriscando traduzir em números o ajustamento de salários que é dado como certo depois da pandemia, numa coisa os vários especialistas ouvidos pelo Expresso estão em sintonia: contratos a termo e jovens serão os mais afetados pela quebra de salários. “Vamos ter ainda muitos despedimentos depois de terminado o lay-off e os apoios agora anunciados”, admite João Cerejeira.
Essa segunda vaga de despedimentos — que sucede à que atualmente está a alimentar a subida do desemprego (ver texto ao lado) — deverá começar a afetar os profissionais mais seniores e com salários mais elevados. Será nessa altura que o impacto nos salários se começará a fazer sentir. As empresas cortarão nos salários elevados e contratarão a um custo inferior.
Para o economista, em matéria salarial “o que está a acontecer já em muitas empresas é um ajuste por via da componente variável da remuneração, nos casos em que ela existe”. Explica que “a remuneração base tem uma fixação anual e não pode ser mexida. Por isso neste momento o que estamos a ver são ajustes naquilo que já é possível ajustar, as componentes variáveis da remuneração”. O que, admite, “em muitos casos já representará uma acentuada perda de rendimento para os trabalhadores”. Quer o economista quer os recrutadores reconhecem que a redução de salários se fará também por via de mexidas nos pacotes de benefícios oferecidos pelas empresas aos trabalhadores.
Desemprego: um otimismo moderado
O desemprego continua a aumentar. Não há como ler os números de outra forma. A seis meses do final do ano, os mais de 408 mil desempregados registados nos centros de emprego em maio colocam o país a uma distância de 100 mil desempregados da previsão inscrita pelo Governo no Orçamento suplementar e da taxa de desemprego de 9,7% apontada para este ano. Há hoje mais 103 mil desempregados do que há um ano. Contudo, há uma nota positiva no saldo do desemprego registado em maio e pode ter impacto não só nos salários como na retoma do mercado de trabalho: o ritmo de novas inscrições nos centros de emprego caiu significativamente. Desde o início da pandemia, em março, o desemprego registado aumentou a um ritmo superior a 14%. Entre abril e maio, o número de novos inscritos subiu apenas 4,2% — são mais 16 mil pessoas no desemprego. É necessário esperar pelos próximos indicadores para perceber se esta tendência de abrandamento se mantém. Há, contudo, um indicador preocupante: o desemprego entre as camadas mais jovens está a aumentar. O desemprego registado em jovens com menos de 25 anos ronda os 37% e entre os 25 e os 34 anos, os 52%. Grupos onde predominam contratos precários e a termo, que são os primeiros a serem dispensados pela crise.