Vera Moutinho, in Público on-line
Maria Coelho viu-se de um dia para o outro com três filhos em casa e um regime de ensino à distância que a obrigou a reinventar-se como professora. “O que tinha desenvolvido melhor já não valia nada.” O desconfinamento devolveu alguma liberdade à família, mas Maria teme que a crise imposta pela pandemia traga um desinvestimento nas escolas.
Na primeira semana de quarentena, Maria perdeu-se entre a exaustão e o piloto automático. Madrugada dentro, quando o marido, Diogo Salvador, e os três filhos - Simão, de 11 anos, Margarida, de 9, e Xavier, de três anos - já estavam a dormir, Maria dava por si a refazer uma e outra vez um horário semanal das actividades da família. “Com umas olheiras gigantes eu voltava àquele horário e dizia: isto tem de melhorar”, conta a professora de 42 anos. O mapa que ditava as horas de aulas, ginástica, dos momentos de lazer e descanso, deveria estar afixado no frigorífico assim que que os filhos acordassem. “Eu achava que aquilo era a receita da harmonia.”
Ao mesmo tempo que procurava dar rumo a uma vida que agora acontecia exclusivamente dentro de quatro paredes, Maria tentava gerir o tsunami do ensino à distância. “Montar um sistema de raiz, as escolas não estavam preparadas para isso, e rodeada dos meus três filhos. Foi horrível. Mas não fiquei bloqueada.” Avançou.
Por todo o país, milhares de professores tiveram de se adaptar a um ensino à distância forçado e a várias velocidades. A maioria dos professores do ensino básico e secundário deu aulas recorrendo a plataformas de e-learning, enviando trabalhos por email ou recorrendo às aulas síncronas. Como professora de artes visuais, Maria desenvolveu ao longo dos anos o seu método de ensino assente no cariz oficinal das aulas e numa relação muito próxima com os alunos.
“Nunca fui muito de vídeos, powerpoints, queria que eles me vissem a desenhar no quadro. Isto tirou-me o tapete completamente”, recorda. “Agora precisas da tecnologia, reinventa-te. Aquilo que eu achava que tinha desenvolvido melhor já não valia nada.” Acabaria por ultrapassar os obstáculos, encarando-os como desafios: mobilizou-a o facto de muitos alunos não terem, pelo menos na fase da quarentena, materiais com que trabalhar. “Também comecei a trabalhar mas com os outros colegas de artes, estamos mais unidos”, reconhece.
Manter a família “à tona”
Uma semana depois do início da quarentena, Diogo, especialista de informática na Secretaria Geral da Presidência do Conselho de Ministros, entrou também em teletrabalho. Juntos delinearam um plano para que a família se mantivesse à tona. “Fomos conversando, melhorando, falando com os miúdos”, recorda Maria. No plano familiar as coisas foram “encarrilhando”, mas o ensino à distância, mesmo agora que se aproxima da fase final com as avaliações, ainda é uma “montanha-russa”.
“Tive de me adaptar a novas plataformas digitais e não tinha tempo para fazer as mil formações que a minha directora sugeria.” Formada em Belas Artes, Maria é professora de artes visuais há 20 anos. Está há dois na Escola Básica Costa de Caparica, em Almada. “Por sorte”, diz. É professora contratada. “Continuo em situação precária, em Agosto fico mais ou menos desempregada, é sempre incerto. Tenho conseguido sempre colocação, felizmente.”
Este ano teve a seu cargo turmas do 7º ao 9º ano e uma direcção de turma que lhe impôs um sentido de alerta constante. “Disponibilizei o meu telefone a toda a gente, o que não me permite acalmar, desligar”, confessa. Diz que os professores encaram a nova realidade de ensino com sentido de missão, mostrando-se flexíveis com os alunos, oferecendo um acompanhamento total. “Tive situações de telefonar todos os dias de manhã a um aluno, que vi que estava mais perdido. Dizer-lhe que era hora de acordar, que lição é que tinha de ir ver, o trabalho que era para entregar”.
Um “alvo no qual não consegues acertar”
Em casa, Maria e Diogo esforçaram-se por acompanhar os três filhos. Invadida por um sentimento de culpa, Maria não queria falhar nos dois papéis que agora pareciam lutar entre si: professora e mãe. “Os tempos que estávamos em casa com os miúdos eu não estava focada no trabalho, muito menos a olhar para um ecrã. Isso mudou”.
“A minha esperança é que a covid-19 ajude a mudar a escola”
Simão, o mais velho, foi o que reagiu melhor ao confinamento, gerindo bem as aulas que se fizeram sobretudo por email e feliz por poder estar mais ligado às tecnologias. Margarida, um “furacão de energia”, precisou de mais apoio com as aulas síncronas e atenção. A frustração de não poder ir ao parque na sua rua, onde habitualmente passava os fins de tarde, levava-a a virar a “casa do avesso”.
Durante várias semanas, mobilizaram-se para todos os dias às 22h baterem palmas à varanda, em noites onde também houve pequenos concertos com vizinhos músicos. “Mas de todos o mais difícil foi o Xavier”, recorda Maria. Com apenas três anos, reagiu mal às tarefas que a educadora enviava por WhatsApp e sobretudo às alturas em que pais e irmãos estavam focados em trabalhar. “Houve momentos em que senti que o Xavier estava um bocadinho ao abandono”.
Agora, Xavier já bate à porta do escritório e pergunta à mãe: “Estás a trabalhar? Depois vens brincar?”. Diogo tentou encaixar-se nos longos horários de Maria, trabalhando nas janelas de oportunidade que o dia permitia. Confessa que o ensino à distância foi a grande fonte do caos dos últimos meses: “Foi um tsunami que deu conta do trabalho, das rotinas todas, de tudo. Era como um alvo em movimento no qual não consegues acertar.”
Liberdade de “desconfinar” e a maratona final da avaliação
O final do estado de emergência trouxe alívio à carga familiar. Começaram por visitar os avós, salvaguardando o distanciamento social, e dar passeios de bicicleta ao final do dia. “A essa hora as pessoas já estão mais recolhidas e vamos até ao Olho de Boi ou ao Ginjal, em Cacilhas. Os cinco de bicicleta é muito giro. O Xavier vai na cadeirinha e eu reparo nele de braços abertos… a liberdade.”
O desconfinamento foi alargando limites na própria rua, junto dos vizinhos com quem nos últimos anos desenvolveram relações próximas de amizade. No final de 2018, Maria e Diogo fizeram parte de um grupo que se mobilizou e conseguiu o apoio da Junta de Freguesia para instalar um parque infantil nas traseiras dos prédios. O espaço tornou-se ponto de encontro para as famílias, deu origem ao colectivo de artistas Estuário e nas últimas semanas fizeram melhorias no jardim, plantando árvores. Chamaram-lhes os “novos inquilinos em desconfinamento”. Em breve terão também uma biblioteca exterior. “É um elemento catalisador, permite sonhar com novos projectos e muito com esta questão do ar livre, de não estarmos confinados num espaço.” As diferenças no comportamento do filho mais novo foram imediatamente visíveis para Maria. “O Xavier está muito mais equilibrado, muito mais feliz, já não pede tanto a chucha. O dia corre muito melhor agora, os outros vizinhos comentam o mesmo.”
No que toca à escola, a fase final de avaliações voltou a deixar Maria assoberbada entre aulas e reuniões. E com muitas dúvidas: “Há alunos que falharam redondamente. Vão chumbar ou passar? Custa muito avaliar nos mesmos termos alunos que não têm as mesmas condições que outros em casa. Penso em alunos que possam estar num contexto de violência doméstica: como é que eu consigo penalizar esse aluno que não cumpriu?”
No pico da quarentena, engolida pelo tsunami, ainda chegou a pôr-se no papel de ministro da Educação e tirar lições dos tempos de pandemia para a escola e para as famílias: que bom seria diminuir o número de alunos por turma e reduzir as horas que passam na escola, o que melhoraria o desempenho de professores e alunos. Algo que obrigaria o Estado, no entanto, a apoiar os pais num trabalho a tempo parcial. No turbilhão que passava pela sua cabeça, Maria também projectou o extremo oposto e confrontou-se com receios antigos: “O que pensei foi: agora vem aí uma crise e vai voltar tudo atrás. Vão aplicar novamente medidas de austeridade, grupos de turma enormes, penalizar a área das artes - porque é sempre assim - e se calhar vou ficar no desemprego ou ter condições de trabalho muito más”.
Continua a gerir aquilo a que chama ainda um “normal insatisfatório” para uma família habituada a viver ao ar livre, numa “roda viva” de convívio com família, amigos e actividades dos três filhos. Para Maria e Diogo, o lado positivo da pandemia foi o tempo que passaram juntos em casa, simplesmente por estarem uns com os outros. “Os miúdos estão a crescer e acabamos por nos conhecer noutra circunstância. Também viram como é que eu reagi a este stress, espero que tenha sido positivo”, diz Maria.
No meio do caos, Maria voltou a pintar e a desenhar. Remodelou a pequena varanda de casa durante a quarentena, com as dezenas de plantas a darem lugar a uma espreguiçadeira e um espaço para os miúdos brincarem. “Tenho uma relação especial com a varanda, é um dos meus sítios preferidos da casa”, conta. “Mas é como se eu tivesse mudado. Então tive de o transformar”. Às vezes consegue uns minutos para se sentar a pintar aguarelas. Ainda está a “lamber as feridas”, mas a voltar a algo próximo do normal. E toda a família também. “O Xavier todos os dias pergunta: ‘O coronavírus já acabou?’”, conta Maria. “Ainda não, mas está quase”, responde.
Desigualdades no acesso à Internet
O ensino à distância foi lançado com o encerramento das escolas a 16 de Março, imposto pela pandemia da covid-19 e mantém-se activo para os alunos do 1.º ao 9.º anos de escolaridade, sendo que os do 11.º e 12.º anos retomaram as aulas presenciais a 18 de Maio. Como professora do ensino básico, Maria Coelho manter-se-á em teletrabalho até ao final do ano lectivo, e os obstáculos que encontrou são em tudo semelhantes aos de milhares de professores por todo o país.
Num inquérito divulgado no início de Junho pela Federação Nacional de Professores (Fenprof), cerca de 65% dos professores inquiridos consideraram que o ensino à distância foi mais exigente que as aulas presenciais, porque, na prática, deixou de haver horários. Muitos admitiram ter atingido um grau “muito elevado estado de exaustão”.
Foram também os professores os primeiros a alertar para o aprofundar das desigualdades entre alunos com o ensino à distância. De acordo com o mesmo inquérito realizado pela Fenprof junto de 3548 docentes, cerca de 93,5% dos professores concordaram que as desigualdades se agravaram, devido não só à dificuldade que alguns alunos tiveram em aceder aos meios tecnológicos para acompanhar as aulas 'online', mas também decorrentes do facto de muitos não terem autonomia digital, dos diferentes níveis de acompanhamento por parte das famílias e da forma como as próprias escolas conduziram o trabalho à distância.
De facto, segundo dados do organismo de estatísticas da União Europeia (Eurostat), Portugal não só está ainda quase no final da tabela no que respeita à percentagem de famílias com acesso à internet - 81% em 2019 face a uma média de 90% na UE - como é dos mais desiguais na comparação entre cidades e áreas rurais: nas primeiras há internet na casa de 87% dos agregados, nas segundas esta realidade só abrange 70%. “Algumas famílias não têm sequer como garantir o acesso à internet”, um alerta deixado por Filinto Lima, da Associação Nacional de Directores de Agrupamentos e Escolas Públicas (Andaep). Só no ensino básico existirão 50.000 alunos que não têm acesso à Internet em casa. Um cálculo feito pelos economistas Hugo Reis e Pedro Freitas a partir dos dados do Instituto Nacional de Estatística, que em Novembro de 2019 davam conta de que cerca de 5,5% dos agregados familiares com crianças até aos 15 anos afirmavam não ter acesso à Internet em casa. “Como no ensino básico (entre o 1.º e o 9.º ano) estão inscritos perto de um milhão de alunos, tal poderá significar que um universo de cerca de 50 mil não terá acesso a recursos educativos online”.
O próximo ano lectivo deverá pôr em marcha uma conjugação entre ensino à distância e ensino presencial e também uma revolução digital nas escolas, já prometida por António Costa. Plano que deverá investir também na literacia digital dos professores, sobretudo quando olhamos para o envelhecimento da classe: apenas 1% dos professores tem menos de 30 anos, de acordo com a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Económico (OCDE). Portugal tem mesmo a mais baixa percentagem de docentes com menos de 30 anos.