Natália Faria e Ana Henriques, in Público on-line
Entre 2016 e 2017, um oficial de justiça vociferou nas redes sociais contra negros, homossexuais, judeus e detractores de Donald Trump, entre outros. Durante o julgamento, mostrou-se arrependido e alegou que a tentativa de afirmação nas redes sociais procurava iludir o facto de se sentir hostilizado no local de trabalho. O tribunal obrigou-o a pagar mil euros e proibiu-o de votar durante quatro anos.
Ao longo de oito meses, um escrivão auxiliar, em funções no Tribunal Judicial de Aveiro, usou as redes sociais Facebook e Twitter para destilar o seu ódio face aos judeus, aos negros, aos homossexuais, a tudo, enfim, que se desviasse da norma. Sem esconder a sua identidade profissional, e numa altura em que até andava a estudar Direito, incitou à discriminação, veiculou simbologia nazi e desafiou os seus mais de mil seguidores à prática de crimes como o de defecar em campas. Quando foi denunciado, mostrou-se arrependido, desculpou-se com o facto de se sentir hostilizado e alegou instabilidade emocional. Tinha, aliás, começado a fazer psicoterapia. Ainda assim, o tribunal entendeu que tais publicações acarretaram uma “diminuição da sua idoneidade cívica” e condenou-o à proibição de votar em quaisquer eleições durante quatro anos consecutivos.
O crime de discriminação racial, religiosa ou sexual e de instigação pública à pratica de um crime – no caso o de profanação da campa do ex-Presidente da República Mário Soares – foi cometido no período em que o arguido, trabalhando como oficial de justiça num tribunal de Aveiro, começou, mais concretamente a 30 de Julho de 2016, a publicar nas suas contas do Facebook e Twitter mensagens contra africanos, muçulmanos, mestiços, judeus e até detractores do presidente norte-americano Donald Trump, equiparando-os a símios entre a outros epítetos dificilmente reproduzíveis. Nas suas páginas, cabia ainda o cepticismo sobre o aquecimento global, “a segunda maior mentira de sempre imposta à humanidade, logo após o holocausto”.
Até Abril do ano seguinte, as publicações mantiveram-se de acesso livre, tendo ficado condicionadas a “seguidores autorizados” a partir daquela data. Quando foi chamado a responder em tribunal, depois da queixa apresentada por uma testemunha que se sentiu “chocada”, o arguido reconheceu que tais comentários eram “incitadores e encorajadores” de discriminação e de ódio contra “pessoas ou grupos de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional, religião, sexo ou orientação sexual”, conforme se lê no respectivo acórdão a que o PÚBLICO teve acesso. E não deu sinais de não perceber que tal conduta era diminuidora da sua idoneidade cívica e funcional, além de censurável e punível criminalmente. Em sua defesa, mostrou-se “arrependido e envergonhado”. Alegou que se tratava de uma estratégia de compensação para garantir a sua “estabilidade emocional global”, que dizia ameaçada pela hostilidade que lhe era dirigida no local de trabalho e que o levara a isolar-se e a refugiar-se nas redes sociais, onde apenas se destaca quem seja “capaz de utilizar linguagem agressiva sobre temas polémicos”. Sustentou, de resto, que tinha recorrido a consultas de psicologia.
No âmbito do processo, quem lidou com ele no tribunal ficou surpreendido: “Era uma pessoa atenciosa, muito discreta, bem-educada”, descreveu ao PÚBLICO um magistrado, recordando que, entretanto, o oficial de justiça se licenciou em Direito. Na sua avaliação profissional, de resto, fora galardoado com um “Bom com distinção”, apesar de o tribunal ter dado como provado que o seu comportamento era caracterizado pela “vulnerabilidade emocional”, que lhe provocava tristeza e apatia. Dada a sua competência cognitiva “média alta para a sua faixa etária”, o tribunal concluiu que o arguido “actuou com perfeita consciência de que, assim, apelava à discriminação e ao ódio”. A favor desta tese funciona o facto de ter escrito, no mencionado período: “Bem, já vim aqui largar a minha dose diária de ódio. Estou mais calmo.”
E, tendo-se dado como provado que o incitamento à discriminação e ao ódio, ainda que cingido a 14 publicações, se prolongou durante oito meses, em clara “violação do dever de zelo no cumprimento das regras basilares de um Estado de Direito”, o Tribunal Judicial da comarca de Aveiro condenou-o, em acórdão publicado no passado dia 21, a uma pena de dois anos e um mês de prisão, suspensa na condição de o indivíduo (que, em tudo o resto, tinha boa imagem social e reconhecida competência profissional) aceitar pagar mil euros à Comissão de Protecção de Vítimas de Crimes, num prazo máximo de dois anos, a contar do trânsito em julgado do acórdão.
Mas, porque se tratava de um funcionário público, cujo crime até foi cometido em horários correspondentes ao seu horário de trabalho, apesar de não se ter provado que usasse o computador de serviço para o efeito, o juiz considerou que ficava maculada a sua “idoneidade cívica” e, para responder à necessidade de prevenir a reiteração do crime, decidiu aplicar-lhe uma pena acessória, impedindo-o de ser jurado e de votar durante quatro anos, seja em que eleições forem. Desse modo, e dado que à pena de prisão aplicada faltavam quatro meses para que pudesse ser suspenso de funções, conforme se lê no acórdão, ficou mais bem salvaguardada “a ressocialização do indivíduo, mas, sobretudo, a interiorização da censura de que as suas condutas são objecto, prevenindo assim, a prática de novos ilícitos”.