7.12.20

​"Extinção do Instituto da Droga e Toxicodependência foi um erro político que está por corrigir”

Liliana Corona, in RR

“Todos os anos são dadas datas”, afirma o responsável do CRI – Centro de Respostas Integradas da Guarda, que reivindica um serviço mais ágil, desde a extinção do Instituto da Droga e Toxicodependência, em 2011, e integração nas Administrações Regionais de Saúde. Numa altura de pandemia, em que os adictos podem recair e com o aumento do consumo de álcool, há consultas descentralizadas que estão em risco, porque não há viatura própria. As deslocações são feitas no carro do psicólogo clínico, coordenador daquele espaço.

Luís Ramos, 47 anos, tem um quiosque de artesanato, ali mesmo ao lado do Centro de Respostas Integradas (CRI) da Guarda. “Eles estarem aqui nunca me incomodou, nem incomoda”.

No coração da cidade, com vistas para a Sé Catedral, ‘eles’ entram e saem do espaço que há mais de duas dezenas de anos alberga o CRI, uma estrutura do Ministério da Saúde integrada numa rede de serviços pertencentes à Administração Regional de Saúde (ARS) do Centro, após a extinção do Instituto da Droga e Toxicodependência (IDT).

O serviço tem duas vertentes de intervenção, a comunitária, onde se enquadra a prevenção, a supervisão de projetos e formação; e uma segunda área de intervenção, que é ligada ao tratamento e à prestação de cuidados globais de utentes e suas famílias, com comportamentos aditivos e dependências. Cuidados que englobam uma equipa multidisciplinar com técnicos de serviço social, psicólogos, enfermeiros, médicos, pessoal auxiliar e administrativo.



“Cada ARS faz o que entender. A capacidade de resposta varia”

Rui Correia, 52 anos, psicólogo clínico é o coordenador do CRI da Guarda, há 25 anos, desde a data de abertura a 12 de setembro de 1995 (na altura chamava-se CAT, Centro de Atendimento a Toxicodependentes).

“Olhamos para o problema das dependências e dos comportamentos aditivos como uma doença que requer uma abordagem multidisciplinar e numa vertente de não internamento, ou seja, ambulatório (vêm e vão). Quando é preciso internar alguém, recorremos a uma Unidade de Alcoologia e Unidade de Desabituação em Coimbra”, explica o responsável.

Rui Correia acrescenta que existem seis CRI na região Centro - Guarda, Castelo Branco, Viseu, Leiria, Coimbra e Aveiro - com as suas diversas extensões, como é o caso da consulta em Gouveia.

Um total de valências da alçada da Divisão de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e Dependências (DICAD), que surgiu após a extinção do IDT, em 2011, no governo liderado pelo então primeiro-ministro Pedro Passos Coelho.

“Ano de má memória e que foi um erro político, já admitido pelos seus interventores e ainda não alteraram o rumo das coisas, um erro que ainda está por corrigir. Há uma dificuldade em alterar o que foi a desagregação do IDT, um serviço vertical com sede em Lisboa e que agregava cinco delegações regionais que tutelavam serviços de cariz local, como este”, refere, enfatizando que foi criada uma direção geral, o Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e Dependências (SICAD), que “emana diretrizes e programas, mas não tem braços no terreno, porque os braços que eram as unidades locais foram integrados nas ARS, que são serviços muito grandes, com muitos problemas, têm muita coisa para tratar, é uma coisa pouco funcional.”

“Quando havia IDT, o modus operandi era o mesmo, agora não, cada ARS trabalha à sua maneira. Precisávamos de um edifício comum e não estar espartilhados em cinco edifícios e que todos nos víssemos e articulássemos com facilidade. Cada ARS faz o que entender, uns mais rápidos e outros mais lentos. A capacidade de resposta varia, por exemplo, um contrato numa ARS pode ser pago a X e noutra ARS a Y e orientações distintas, o que dificulta a tomada de decisões e relacionamento”, confidencia Rui Correia.

Com a nova designação do CRI, o serviço começou também a dar resposta às substâncias lícitas, como é o caso do álcool, “mas, em 1995, o inimigo número um era a droga, as imagens do Casal Ventoso entravam-nos todos os dias pela televisão. Mas tem havido uma alteração do panorama e têm entrado mais utentes com problemas de álcool. As substâncias lícitas têm vindo a adquirir uma maior preponderância”, argumenta o psicólogo clínico.

Além da vertente de apoio e tratamento do utente, o CRI destaca-se na promoção de projetos “financiados por receitas do Estado e que vêm dos jogos da Santa Casa da Misericórdia”, revela o responsável, adiantando alguns desses projetos.

“Temos vários projetos pioneiros a decorrer, dois deles na prisão da Guarda, outro na noite. Um deles é o projeto de prevenção do Estabelecimento Prisional da Guarda, sobre a literacia em saúde (a partilha de materiais de consumo e tatuagens) e outro visa capacitar as pessoas para o emprego num projeto de reinserção (como fazer um currículo, por exemplo). O outro projeto na noite é o projeto ‘Pit Stop’, intervir nos bares noturnos”.

“Há sempre diminuição de consultas quando se faz um confinamento”

Gouveia, segundo o psicólogo Rui Correia, foi “pioneira e tem sido um grande esforço. Naquela cidade existe, desde 1995, uma consulta descentralizada do CRI da Guarda, onde fazemos deslocar técnicos do CRI ao Centro de Saúde de Gouveia, numa articulação que é pioneira na região Centro do país e esta forma articulada evita que os utentes de Gouveia, Seia e Fornos de Algodres tenham de vir ao CRI da Guarda”, explica o coordenador.

No Centro de Saúde de Gouveia a consulta é feita em colaboração com técnicos do centro de saúde (duas médicas e dois enfermeiros) “e damos, desta forma, resposta de proximidade, pois os utentes têm acesso aos mesmos serviços, o acesso à metadona”, realça.

Em 2019, de um total de 6 mil consultas, 25% dos utentes que recorreram ao Centro de Respostas Integradas, com sede na Guarda, eram oriundos dos concelhos de Gouveia, Seia e Fornos de Algodres e têm consultas no Centro de Saúde de Gouveia.

Por causa da pandemia, as deslocações a Gouveia diminuíram: “íamos três vezes por mês e agora passamos a ir duas vezes por mês. Tem ido apenas um técnico ou dois e reafirmo o caráter pioneiro de Gouveia, não encontro em nenhum CRI da Região Centro uma consulta em que os técnicos se desloquem para cooperar com os técnicos do Centro de Saúde, e está em perigo, é uma consulta que está em risco”, adverte o psicólogo.

Mas por que motivo está em risco esta consulta? “Há uma efetiva redução do número de utentes pela reorganização do espaço e pela impossibilidade de levarmos mais pessoas no carro, que é a minha viatura, a viatura que uso para deslocar a minha família. A deslocação dos técnicos à consulta, sou eu que os levo na minha viatura particular”, conta Rui Correia.

“Já demos conta deste constrangimento. Já sugerimos à tutela, a opção de rent a car, mas foi vedada. Se saíssemos de Gouveia, havia uma perda objetiva para os utentes que teriam de se deslocar sempre à Guarda, e a rede de transportes públicos é muito deficitária. Tudo isto se evita se nós formos e temos ido em espírito de missão, porque não queríamos deixar cair a consulta, mas está em risco”, alerta.

Sobre a deslocação até Gouveia, o Estado paga o quilómetro a 36 cêntimos. O “psi” vai na sua viatura própria, “porque os constrangimentos na administração pública são tantos, que esta é a única solução na impossibilidade de ter viatura própria ou recorrer a serviço de rent a car.”

“Disponho do meu carro e da minha família para levar os técnicos e a alternativa era parar as consultas. Mas nunca fechámos e nunca deixámos de atender ninguém. Sempre garantimos o fornecimento de metadona a quem está a fazer o programa”, sublinha.

A dependência é uma doença com fortes recidivas e, em tempos de pandemia, "é provável que algumas pessoas tenham recaído. Havia processos terapêuticos que vinham a ser bem encaminhados, mas um despedimento, os projetos alterados, modifica a vida da pessoa”, conta o coordenador do CRI da Guarda.

“Há sempre diminuição de consultas quando se faz um lockdown ao país, aliás o número de consultas baixou. As pessoas ficaram assustadas com a covid-19, inclusivamente, havia um utente que não queria abrir a maçaneta da porta. Foram feitas algumas alterações (se antes tínhamos a equipa toda a trabalhar) agora temos metade e houve necessidade de diminuir a prestação de cuidados com o número de horas, reduzir a vinda dos utentes ao urgente, damos reforço de medicação para quem vinha semanalmente, mas não temos lista de espera.”
“É muito difícil lidar com o estigma”

No CRI da Guarda, algumas rotinas mudaram, nomeadamente o horário e a criação de um diferente “balcão de atendimento para evitar que as pessoas fossem ao gabinete de enfermagem”, mostra Rui Correia, clarificando que houve um encurtar do horário por causa do efeito da pandemia.

“Funcionamos das 9h30 às 18h00, ininterruptamente, mas antes fechávamos às 19h00. Estamos a espaçar mais as consultas, com a equipa a funcionar em espelho. Tentamos salvaguardar a prestação de cuidados, para que o serviço não feche. Somos 13 pessoas (um psicólogo, coordenador do serviço, mais duas psicólogas, duas técnicas de serviço social, dois médicos - duas vezes por semana-, dois enfermeiros, três administrativos e os auxiliares) sendo que duas dessas pessoas estão de baixa”, descreve.

A rotina no CRI da Guarda é preenchida com os cuidados de enfermagem, a prescrição médica, as consultas (com psicólogos e médicos), os telefonemas.

E quem chega ao CRI da Guarda, sabe que está no centro da cidade. “É um serviço exposto. Gostávamos de estar no Parque da Saúde, mas estarmos aqui contribui para uma certa normalização das coisas”, considera o psicólogo responsável.

Lá fora, ouvem-se vozes de crianças, algumas acompanham os pais, outras ficam à porta à espera. Saem cabisbaixo e apressados sem quererem dar voz. Os olhares de quem passa perturba? Para José (nome fictício), de 35 anos, que acaba de bater à porta do CRI, a resposta é afirmativa.

“É muito difícil lidar com o estigma, arranjar trabalho na sociedade, mas graças ao CRI levamos uma vida normal”, afirma o mecânico, que arranjou trabalho numa oficina há ano e meio.

“Este é um espaço que nos permite largar os maus hábitos e permite-nos levar a vida normal”, elogia.

Também Adelino Ribeiro, 39 anos, com quatro filhos, diz que: “é muito difícil ser eu, basta acompanhar com alguém já ando a traficar”, lamenta. Utente do CRI desde 2001, relembra que foi aos 17 anos que seguiu por um caminho que o levou a quatro detenções.

“Fui fraco na altura, perdi tempo nisto. Tinha 17 anos quando comecei a experimentar drogas duras”, afirma, ao mesmo tempo que enaltece o trabalho do CRI. “Estando numa cidade fronteiriça, onde existe facilidade em adquirir drogas, aqui tenho medicação e apoio psicológico há 20 anos, porque me ajuda. Falam connosco abertamente. Às vezes saio a sorrir. Se não fosse o CRI, os consumos de droga mantinham-me na prisão. Assumi que tenho um problema e assim ando mais ou menos controlado”, conclui.
Metadona para “mudar de vida”

Com o 12.º ano de escolaridade, Adelino Ribeiro dedicou-se à poesia, ao teatro e à música (baterista) durante o total de 12 anos e oito meses de prisão.

A última das quatro vezes, estava no Estabelecimento Prisional da Guarda, de onde saiu em maio de 2018, depois de quatro anos e oito meses ali detido. Hoje trabalha em campanhas de agricultura. “Faço campanhas no estrangeiro, por exemplo na altura das vindimas e ganho uma pipa de massa. Já estive em França, Alemanha, Luxemburgo”, relata.

Adelino reitera o apoio do CRI da Guarda. “Graças a estas consultas, aprendi que não quero mais voltar para lá (para a prisão). A metadona é como se fosse uma substituição da heroína, tranquiliza a pessoa e somos obrigados a cumprir um programa. Não é algo rápido, ainda faço o programa de metadona. São 20 anos aqui”, valoriza Adelino Ribeiro, para quem nunca é tarde para mudar de vida. “Não acho que seja tarde… sinto-me bem e faço o que gosto…”

Adelino Ribeiro aguarda que o enfermeiro especialista em saúde mental e psiquiatria, Luís Andrade, 40 anos, prepare a unidose de metadona com 60 miligramas.

“Conseguimos trabalhar com eles para ter uma melhor qualidade de vida. O tratamento através da medicação, nomeadamente com o programa de metadona faz com que os utentes tenham comportamentos muito melhores”, justifica.

A metadona é um opiáceo, uma substância derivada do ópio, que produz uma certa insensibilidade à dor, usada na dor crónica e dor aguda de elevada intensidade, que quando bem aplicada permite que os utentes levem uma vida normal, sem procurarem o consumo de drogas e é fornecida pelo Laboratório Militar.

Os opiáceos em doses elevadas, como é o caso da heroína, produzem euforia, estados hipnóticos e causam dependência.

O psicólogo Rui Correia adianta que “o utente estar medicado com uma substância quimicamente pura, permite que ele tenha a sua profissão sem ter necessidade de comprar ilícitos, ou cometer pequenos ou grandes delitos (usamos a metadona e buprenorfina no tratamento da dependência opiácea da heroína)” e destaca que “uns levam medicação para uma semana, outros para 15 dias e outros diariamente, sendo que há dois tipos de apresentação da metadona: a unidose líquida e outras doses feitas por nós, com o pipetador no caso de doses mínimas, também administradas via oral”.

Desinfeta-se a porta de entrada, há mais um utente que entra. Adelino Correia, 55 anos, utente do CRI há mais de 15 anos.

“É um apoio bom porque não consumimos heroínas e cocaínas e é gratuito. Não tinha outra opção, quando enveredei por este caminho”, diz em tom apressado, sem querer revelar mais informações.

Ao mesmo tempo sai um casal. O homem de poucas palavras e a mulher: “têm ajudado muito o meu marido, sobretudo apoio psicológico. Tem bons resultados, ele está diferente. Somos logo atendidos e estou satisfeita. Tudo direitinho”, elogia.

Para o psicólogo clínico Rui Correia, “a vergonha existe sempre e é preciso vencer a barreira, porque as dependências não escolhem classes, temos de tudo, todas as profissões, todas as idades (temos homens com mais de 60 anos que consumiam drogas)”.

Família e escola contra a droga

Ajudar a que as drogas ou os comportamentos aditivos deixem de ser o centro da vida da pessoa que procura o CRI é o principal objetivo do psicólogo Rui Correia, que afirma que o adicto “quer, primeiro, satisfazer a sua adição, e isto chega a uma altura que é muito difícil de gerir, ou vem por vontade própria, ou pressionado pela família, ou por ordem do tribunal”.

“Ajudamos aquelas pessoas que estão a pisar a linha, estão em risco de se tornar adictos. Existimos para dar saúde a quem nos procura”, refere, E por isso, para o coordenador do CRI, a intervenção comunitária junto das famílias e das escolas “é muito importante para evitar ou atrasar comportamentos de risco (fazemos formações a professores)”.

De acordo com os dados de 2019, o CRI da Guarda registou 480 utentes e respetivas famílias e seis mil consultas, sendo que 10% dos utentes são mulheres.

O coordenador do CRI, considera que “a curiosidade, a pressão de pares, facilita comportamentos desviantes”, sendo que “aquilo que existe são substâncias e pessoas disponíveis a consumi-las (o consumo numa fase inicial é visto como agradável).

Só que começa a criar-se um novelo e evolui para uma adição. Nem toda a gente que experimenta as drogas continua o seu uso”, alerta.

O coordenador do CRI diferencia dois conceitos: “quando as drogas invadem a vida de uma pessoa, um ‘dependente’ passa mal sem a sua substância, mas um ‘adicto’ não passa sem as substâncias ilícitas (o canábis, a heroína, a cocaína, o ecstasy). O adicto tem a substância e a satisfação dessa necessidade no centro da vida”, esclarece.

Na perspetiva de Rui Correia, as drogas estão sujeitas a flutuações e a modas. “Hoje em dia, não é nada cool a imagem das seringas, do dependente de heroína. Hoje, pouquíssimos consumidores têm hepatite ou HIV, passámos de uma situação grave para uma muito atenuada e isso é fruto do nosso trabalho”, defende.

“Os utentes são testados à entrada com métodos de deteção precoce, é feito aconselhamento. Não estamos nos anos 90 e ainda bem. Se neste momento tenho 70 a 80 utentes novos por ano, no começo tinha sempre 150 utentes novos por ano”, salienta.
Do aumento do consumo de álcool à falta de emprego

Segundo os indicadores do European School Survey Project on Alcohol and Other Drugs (ESPAD), há aumento do consumo de álcool em idades mais precoces e “é preciso fazer coisas, formar interventores”, declara o coordenador do CRI da Guarda.

Segundo o ESPAD, “o uso de álcool continua alto entre os adolescentes, na Europa, com uma média de mais de três quartos (79%) dos alunos a consumir álcool"

“Percebemos que houve mais consumos de álcool, uma substância que entrou de novo na vida de algumas pessoas. O consumo de álcool aumentou. As pessoas passaram a beber mais. Convivemos com o álcool desde pequeninos, juridicamente não é considerado droga, mas pode ser altamente desorganizador, há uma normalização do consumo do álcool”, lamenta Rui Correia.

O tratamento da dependência de álcool é feito em dois serviços de internamento, sedeados em Coimbra: a Unidade de Alcoologia e a Unidade de Desabituação.

A dificuldade em encontrar trabalho para as pessoas com dependências de substâncias, é um dos principais desafios para o psicólogo clínico.

“Tentamos que as pessoas tenham as condições necessárias para ter trabalho, que cumpram as suas responsabilidades. Mas não é fácil, os trabalhos não são abundantes e depois não há nenhum programa específico para pessoas com comportamentos aditivos.”

“Em tempos houve um programa “Vida Emprego” com o IEFP (o Decreto-lei n.º 13/2015, de 26 de janeiro, revogou o Programa Vida Emprego, criado pela resolução do Conselho de Ministros n.º 136/98, de 4 de dezembro) e que permitia que os utentes que se encontravam em situações de ir trabalhar pudessem ser financiados no seu projeto ou os seus empregadores verem parte do salário coberto pelo programa. Há pessoas a trabalhar na ULS da Guarda que encontraram trabalho ao abrigo deste programa”, exemplifica, em tom de esperança, o responsável do CRI.