8.1.21

A Europa em 2021

Boaventura Sousa Santos, opinião, in Público on-line

Portugal tem boas condições para ser o timoneiro da UE neste período. Mas será lamentável se não aproveitar esta posição invejável para se libertar da chantagem dos países frugais e para cumprir plenamente a Leis de Bases da Saúde, dando ao SNS a centralidade que ele merece.

Portugal assume a presidência da União Europeia num momento de definições fundamentais que afectam as rotinas políticas e sociais dos tempos ditos normais. Desde a gestão da vacinação anti-covid-19 e do “Brexit” à preparação de um mundo ocidental pós-Trump e de uma Europa pós-Merkel, os desafios são enormes. Em vez de distinguir, como é uso convencional, entre problemas internos e internacionais, refiro-me aos temas estruturais que afectam tanto o interior como o exterior da UE. Identifico os seguintes temas principais: desigualdade e coesão; identidade histórica e reparações; direitos humanos e democracia; paz e guerra fria.

Desigualdade e coesão. A UE sai da crise pandémica com cerca de 9% de quebra do PIB. O risco da pobreza aumentou, mas é muito desigual entre os países da União e aponta para uma segmentação: entre 25%-32% para um grupo de países e entre 12%-17% para o outro grupo. O desemprego entre os jovens é de 17,3%, mas chega a 40% em Espanha. Tendo em conta que a quarta revolução industrial (inteligência artificial) vai causar adicional turbulência neste domínio, é urgente que a UE avance para uma política de rendimento básico universal que complemente e não substitua as outras políticas sociais. A legitimidade desta medida — hoje objecto de uma iniciativa cidadã na UE — está patente nas palavras de António Guterres no discurso de abertura da 75.ª sessão da Assembleia Geral da ONU em 2020: “a nova geração de protecção social [deve] incluir o seguro universal de saúde e a possibilidade do rendimento básico universal.” Agora, sem o Reino Unido, talvez haja espaço para aprofundar as políticas europeias, mas tal projecto só pode ter êxito na base de mais democracia interna na UE e da redução das assimetrias regionais.

A pandemia veio mostrar a falência do neoliberalismo e da prioridade dada à mercantilização da vida social. O Estado democrático social é, por agora, a única alternativa à barbárie da economia de morte que pretende transformar a letalidade da pandemia numa forma de darwinismo social que resolva os problemas da segurança social. A saúde é um bem público e não um negócio. Os serviços nacionais de saúde precisam de recuperar a sua centralidade, o que não se consegue com o mero reforço emergencial. Apesar de ter financiado em quase mil milhões de euros a investigação para a produção das vacinas, a UE está a comprá-las a um alto preço, talvez o negócio do século para as empresas privadas que as produzem. Não são conhecidos os detalhes dos contratos, sobretudo no que respeita à responsabilidade por eventuais efeitos secundários. E não podemos esquecer que entre os dez países com mais milionários três são da UE (Alemanha, França, Itália) e que na Alemanha 12% do aumento da sua riqueza dos super-ricos deu-se na área da saúde.

Identidade histórica e reparações. A Europa continua a ter dificuldade em saldar as contas com o passado, não apenas do mais remoto mas também do mais recente. O colonialismo não foi um progresso civilizacional, foi antes um instrumento violento para saquear as riquezas de grande parte do mundo extra-europeu. Obviamente que um processo histórico tão longo envolveu muitas outras relações, mas a principal foi o saque, um saque que continua hoje. O bem-estar relativo dos europeus não é pensável sem esse saque. As transferências de recursos do Sul Global para o Norte Global continuam a ser muitas vezes superiores às de sentido contrário. A recusa em descolonizar a história da Europa está na origem do racismo, que continua a inquinar as relações entre cidadãos europeus, da política equivocada de imigração, da transformação do Mediterrâneo em cruel cemitério líquido. É também a recusa em descolonizar a história que abre as portas ao crescimento da xenofobia, da islamofobia, do anti-semitismo e, em geral, ao incremento da extrema-direita. Em tempos de pandemia, a melhor maneira de a Europa se reconciliar com o mundo seria contribuir activamente para que o mundo menos desenvolvido, grande parte do qual foi alguma vez colónia europeia, tivesse acesso rápido e gratuito à vacinação contra o coronavírus. A identidade histórica deveria estar também presente nas relações com países cuja pertença à Europa se transformou em disputa política, sobretudo nos casos da Rússia e da Turquia. Com 27 milhões de mortos na Segunda Guerra Mundial, foram os russos quem mais contribuiu para a libertação do jugo nazi.

Direitos humanos e democracia. A Europa orgulha-se de ser hoje o continente que mais consistentemente respeita a democracia e os direitos humanos. Sem entrar no mérito desta afirmação, importa-me sobretudo salientar o que implica levar a sério estes valores. Implica, antes de tudo, reconhecer que neste domínio houve retrocessos graves nos últimos 30 anos. A pandemia veio mostrar que a degradação das políticas sociais levadas a cabo por imposição das receitas neoliberais, de que a Comissão Europeia tem sido a grande promotora, tornou mais difícil a defesa da vida. Por um lado, o agravamento das desigualdades sociais, a erosão dos direitos laborais e a consequente precarização dos modos de vida compõem uma das variáveis mais directamente relacionadas com a taxa de mortalidade da infecção. Por outro lado, a degradação dos serviços públicos incapacitou os Estados para dar a melhor resposta à emergência sanitária. Como vamos entrar num período de pandemia intermitente, levar a sério os direitos humanos significa inverter de imediato as lógicas de investimento público. Uma política robusta de promoção de direitos humanos e de democracia obriga a enfrentar sem calculismos a degradação destes valores na Hungria e na Polónia levada a cabo em nome de uma chamada “democracia iliberal”, uma contradição nos termos. A democracia liberal pode e deve ser criticada por ser pouca, não por ser muita.

Paz e guerra fria. Levar a sério os direitos humanos e a democracia implica seguir convictamente uma política de paz, o que repercute tanto no plano interno como no plano externo. Contra o que seria de esperar num período de emergência sanitária a nível planetário, a nova guerra fria entre os EUA e a China tornou-se mais violenta nos últimos meses. Perante o seu declínio como primeira potência mundial, os EUA têm vindo a accionar mecanismos cada vez mais agressivos para conter o que designam como expansionismo imperial chinês. As revistas que formulam a política externa dos EUA (e.g. Foreign Affairs) falam abertamente da possibilidade de conflito armado nos próximos dez anos, no que são apoiadas pelo poderoso complexo militar-industrial. Os EUA querem envolver neste processo todos os seus aliados e exigem solidariedade incondicional. Como a superioridade mais inequívoca dos EUA em relação à China é militar e como neste domínio a UE é um parceiro insignificante, a menos que a NATO se transforme num instrumento de agressão militar (mais do que tem sido já em tempos recentes, dos Balcãs à Líbia), uma aliança nestes termos não interessa à Europa.

A UE deve libertar-se rapidamente da cruzada persecutória contra o Irão e a Venezuela. Será que o fantoche Juan Guaidó, que já nem sequer é deputado e é contestado pela oposição venezuelana a Nicolás Maduro, vai continuar a ser considerado Presidente legítimo deste país e a presidir ao saque das reservas internacionais venezuelanas?

Os termos que interessam são estes: na longa duração histórica (quando os EUA não existiam) a China foi até ao século XIX a maior potência económica mundial; segundo a McKinsey, em 2040 a China representará 40% do consumo total de bens e serviços; a China acaba de promover a Associação Económica Regional Integral, que é imensamente mais vasta que o mercado comum europeu; a Índia, actualmente governada pela extrema-direita, não pode ser um aliado especial da UE apenas porque não integra esta associação; a UE não pode ser aliada incondicional, nem da China (não é uma democracia e os direitos humanos são vistos como obstáculos) nem dos EUA (estes só aceitam o unilateralismo; Biden será menos pró-europeu do que se imagina; a luta contra os privilégios das gigantes norte-americanas da comunicação, a GAFA­ — Google, Apple, Facebook e Amazon — deve continuar). Acresce que a UE deve libertar-se rapidamente da cruzada persecutória contra o Irão e a Venezuela. Será que o fantoche Juan Guaidó, que já nem sequer é deputado e é contestado pela oposição venezuelana a Nicolás Maduro, vai continuar a ser considerado Presidente legítimo deste país e a presidir ao saque das reservas internacionais venezuelanas?

Portugal tem boas condições para ser o timoneiro da UE neste período. Tem tido um bom desempenho na defesa da vida na pandemia, inequivocamente patente nos dados; foi relativamente baixa a politização da pandemia; manteve um nível de coesão política e de consenso com a comunidade científica que só a direita mais reaccionária não reconhece; pese embora o sistémico comportamento do SEF, tem uma política de imigração mais positiva que outros países europeus; sendo um tradicional aliado do Reino Unido, pode ser artífice de entendimentos num período que vai conhecer atritos. Mas será lamentável se não aproveitar esta posição invejável para se libertar da chantagem dos países frugais e para cumprir plenamente a Leis de Bases da Saúde, dando ao SNS a centralidade que ele merece.