Neste episódio do Botequim, fala-se sobre a mulher cigana e os desafios que enfrenta dentro e fora da comunidade. Educação, casamento e prova de virgindade são alguns dos temas abordados, num programa que conta com a participação de duas mulheres ciganas e uma investigadora que trabalha com população cigana desde os anos 90.
Alcina Faneca, advogada de 27 anos e também mulher cigana, já foi discriminada dentro da comunidade por seguir o objetivo da magistratura. Mas espera ser uma ajuda para que outras raparigas ciganas possam fazê-lo.
"Em Torre de Moncorvo e no distrito de Bragança, já me conhecem. Abordam-me na rua e perguntam-me: 'A menina é aquela advogada cigana?'" Alcina Faneca, de 27 anos, já não é uma cara desconhecida. A história da advogada estagiária, pertencente à comunidade cigana, foi destaque em vários jornais, mas a protagonista, retratada como um dos rostos da mudança, fala da importância de desfocar a árvore e ver a floresta. "Eu não sou a única, era isso que eu queria dizer. Eu tenho muitas amigas e colegas que também estão a trabalhar no mesmo ramo, e noutros, que estão licenciadas. Também são ciganas e são mulheres de força e de muita garra."
Alcina Faneca, natural de Torre de Moncorvo, compreende, no entanto, que o exemplo ainda possa causar espanto, porque há preconceitos que permanecem, dentro e fora da comunidade. "No seio da nossa etnia, até há bem pouco tempo, não era muito comum os pais deixarem as filhas - principalmente as mulheres - estudar, porque havia sempre aquele receio de conhecermos alguém do sexo oposto que não fosse da mesma etnia, e, por norma, a maior parte dos ciganos quer preservar-se no seio da comunidade, e a mulher é para estar em casa", conta a advogada estagiária, em entrevista ao programa Botequim, da TSF.
Apesar de, nos últimos anos, a narrativa se ter invertido, ainda há famílias que acreditam que ir além do ensino obrigatório é contraproducente para as raparigas. "Quando são novas, sim. Depois, não estão na escola a fazer nada e supostamente estão sujeitas a muitas coisas próprias para a idade adolescente, que não são aceites na comunidade."
Uma casa onde a desigualdade de género não entra
Em casa de Alcina, isso nunca foi uma questão. A advogada diz que se lembra de um apoio que a acompanhou "desde sempre", por parte de todos os familiares, em especial o pai. "O meu pai sempre impulsionou bastante. No seio da comunidade, é o homem que tem a palavra final, e o meu pai fazia mesmo questão de que seguíssemos a vontade própria. Eu e a minha irmã mais nova sempre quisemos, a mais velha não quis por opção."
Também a mãe de Alcina Faneca compreendeu desde cedo o potencial das filhas e nunca deixou de o estimular. "A minha mãe, quando éramos mais novas, incentivava-nos a ler, comprava-nos livros, falava muito connosco sobre aquilo que gostaríamos de fazer no futuro e dizia-nos que é muito bom a mulher ter a sua independência, que devíamos sempre lutar por isso", enaltece.
Em casa dos Faneca, os filhos receberam todo o apoio para ir em direção aos sonhos. Alcina também tem um irmão, mas a desigualdade de género fica à porta. "Se há algum tratamento diferente? Não! Nós quisemos estudar, escolhemos a faculdade e a cidade para onde queríamos ir, tal como o meu irmão vai escolher."
Mas a vida também pode ser exigente para o homem cigano. Ainda há "famílias conservadoras ao ponto de acharem que os rapazes também não devem continuar os estudos, e, sim, continuar o negócio da família, casar e ter uma vida mais comum", esclarece Alcina Faneca.
Abrir caminho
A família Faneca abriu o caminho: "A minha irmã foi fazer Erasmus para Barcelona durante seis meses, uma coisa que seria impensável para a comunidade ou para algumas famílias. Houve muito esforço da nossa parte, pelo facto de estarmos inseridas numa comunidade um pouco mais conservadora."
Os pais de Alcina "transmitiram muita segurança e muita força" para os filhos seguirem o pensamento próprio. A advogada foi a primeira a sair de casa. Foi estudar para o Porto, a 185 km de casa, e chegou a viver sozinha numa casa, longe da vila de Moncorvo. Mas não deixou de estar debaixo dos olhares e no foco de algumas conversas."Os comentários não eram diretamente para mim nem para os meus pais, mas sei que havia comentários negativos: que eu me ia portar mal, que eu não ia fazer nada daquilo que era suposto fazer, que não ia para lá para estudar, que o meu pai não devia fazer aquilo porque ficava mal..."
A advogada assegura que nunca se desviou dos objetivos, até porque "quem faz o curso na Católica e quem quer acabar o curso de Direito no tempo certo não tem grande tempo para outras vidas".
"Eu fui com o total apoio do meu pai e da minha mãe, e os comentários passavam-nos ao lado. Sei que a maior parte da nossa comunidade, por muito que, por vezes, tente ser diferente, tem raízes e coisas que já estão tão presentes. Por muito que queiram ter umas mentes mais abertas, não conseguem."
Discriminação dentro da comunidade
Alcina Faneca não esconde: "no interior, há sempre um conflito", porque "há sempre pessoas mais velhas que criticam". Mas agora já não restam dúvidas quanto ao caminho escolhido. "Somos o orgulho da nossa família, tenho noção disso", regozija-se Alcina Faneca. A comunidade também já acolheu o exemplo. "Das pessoas não ciganas daqui, temos muito carinho e muito apoio. Aqui, em Moncorvo, somos muito bem tratadas e muito valorizadas."
"Enquanto cidadãos, sabemos que temos direitos e deveres, e, como nós também cumprimos os deveres, somos muito considerados", garante. A única celeuma que, por vezes, se instala reside na ideia de que as meninas da comunidade cigana devem resignar-se a um destino universal. Alcina Faneca é perentória na resistência a esta forma de pensar. "A mulher tem de ter oportunidade. Há tanta gente que quer seguir e depois vê a sua vida estagnada por causa de tradições que podem ser cumpridas mesmo estudando, e isso revolta-me um pouco."
A discriminação não lhe é familiar, mas Alcina Faneca não a nega por inteiro."Já me senti [discriminada pela comunidade cigana]. Fiz algumas entrevistas e achei engraçado que eu estava a falar sobre uma questão que é muito conflituosa, que é o facto de os pais não deixarem as raparigas estudarem. Eu sempre dei a minha opinião e sou direta."
"O melhor de dois mundos"
A advogada quer que não haja dúvidas: "Eu não sou menos cigana do que ninguém porque fui estudar para o Porto durante cinco anos. Não me sinto menos cigana do que ninguém, porque cumpri todas as tradições." A liberdade de escolha sempre foi uma realidade para Alcina Faneca, e a diversidade sempre foi compreendida e acolhida por toda a família. "Nós temos o melhor de dois mundos. Nós temos o contacto com as pessoas não ciganas que frequentam a minha casa muitas vezes, porque adoram estar connosco e as nossas festas, e temos a nossa vida cigana, as nossas músicas, as nossas tradições, os nossos casamentos e as nossas festas."
Fez licenciatura, terminou mestrado, cumpriu a fase letiva da Ordem e depois foi estagiar para Torre de Moncorvo por altura da gravidez. Mas ainda há muito por cumprir, afiança. "Na altura, ouvia muitas vezes que os ciganos tinham problemas com a justiça e eu dizia à minha mãe que queria ser juíza, porque eu sabia que nem sempre eram justos com os ciganos. Eu gostava de fazer a diferença."
Uma nova PrimaVera da vida
A terminar o estágio em Torre de Moncorvo, Alcina Faneca afirma que "a carreira de magistrado não está fora de questão"; ter sido mãe apenas atrasou o sonho. Vera vai fazer três anos em março, e Alcina luta agora, mais do que para logro próprio, para ser uma inspiração para a filha. "Espero criar a Vera com liberdade, amor, apoio e educação. Eu gostava de construir na Vera - e eu sinto que sim, que ela tem uma personalidade forte, que, quando quer alguma coisa, tenta, tenta, tenta, como eu - um à-vontade para contar comigo e um sentido de independência", diz, esperançosa.
Afinal, o percurso de Alcina Faneca tem também como destino final abrir caminho para as outras mulheres (ciganas). "A mulher cigana tem duas saídas: ou se impõe e não liga àquilo que os outros dizem e segue os sonhos, concretiza tudo aquilo que ela quer e mostra a toda a gente que não somos menos ciganas do que as outras, ou então submete-se a tudo aquilo que a comunidade espera dela e deixa sonhos para trás, fica estagnada e leva a vida que não sonha."
Os sonhos, diz, são muito poderosos, e é preciso ouvi-los. "Não sou menos cigana do que as ciganas que não vão estudar porque os pais não querem. A minha ambição sempre foi esta. Desde os meus seis anos eu dizia que queria seguir Direito."